O que mata livrarias não é avanço tecnológico, é atraso civilizatório

07 dezembro 2021 às 08h50

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Nem um ai pela Saraiva. Nenhum lamento pela Fnac, pela Cultura e tantas outras. Nenhum verso pela Humanidade. Nenhum poema pela Civilização
Nilson Gomes
Fora políticos pilantras e cantores sertanejos, o goiano típico é tímido. Bernardo Élis, corumbaense imortal pela qualidade de sua literatura (não por ter integrado a Academia Brasileira de Letras, onde entrou com o apoio do poeta João Cabral de Melo Neto, falando nisso), sentia-se tímido mesmo em livrarias com seus romances e contos expostos. E elas são acolhedoras. Por isso, quando se fecha uma livraria, abre-se um túmulo para a tolerância e um cemitério para o conhecimento.
Livrarias compõem histórias de gente. Na adolescência, fui morador de rua em Goiânia, em cujo centro tinha um muito de tudo: a principal livraria, a Cultura Goiana, a poucos passos do Café Central, onde guloseimas e bons papos conviviam com pistoleiros à espera de foto e endereço da próxima vítima. O mesmo sujeito cruel que encomendava a morte de um rival pagava lanche pro moleque que declamava um poema. Ia à Cultura Goiana e decorava um soneto do Olavo Bilac, descia ao Café Central e ganhava leite e biscoito ao recitar os dois quartetos e dois tercetos.

Numa manhã em que bancou lanche a alguns maltrapilhos, um paulista fazendeiro no Araguaia me desafiou: caso decorasse a Via Láctea até o meio-dia, me daria uma bicicleta (eu queria ser cobrador do Clube Jaó e a pé não conseguiria). Já sabia alguns sonetos dos 35, me internei na Cultura Goiana, tinha excelente capacidade de memorização, mas só ganhei o almoço (depois, de raiva, decorei o texto de trás pra frente e frente pra trás — e nada de bike em troca).
Infelizmente, as cidades estão mais feias, mais frias, mais inabitáveis não apenas para os miseráveis, mas até para quem lê “Os Miseráveis”.
Que outra loja admite a um mendigo usufruir de seus produtos sem pagar? Aliás, outros ramos de comércio sequer permitiriam a entrada do roto interessado em ler.
Quando a Cultura Goiana fechou, foi um baque para mim. O jovem que ali por tantas vezes buscou abrigo, perdia parte de sua referência.
Nunca contei a Paulo Araújo, dono da Cultura Goiana e de imensa gentileza, que na adolescência dormi algumas noites em sua loja — não só na porta, por vezes dentro, nas prateleiras.
Araújo não teve a exclusividade do anfitrionato forçado: o jornalista Batista Custódio, outro personagem irrepetível que Goiás deu ao mundo, só décadas depois soube que morei nas oficinas do “Diário da Manhã”, onde fui de faxineiro da gráfica a editor do jornal.

A Livraria Cultura Goiana morreu, o “DM” não está passando muito bem e o que vem em socorro? Novidades comerciais ruins no País em recessão técnica.
No fim de semana, a Livraria Saraiva fechou suas lojas em Goiânia, no shopping Flamboyant. No Passeio das Águas, continua aberta; até quando, não se sabe.
Neste domingo, 5, fui dar a péssima notícia a minha filha, Bárbara. Antes de dizer, ouvi. Estava inconsolável.
Assim como a Cultura Goiana me proporcionou poemas que rendiam lanche, a Saraiva também fez parte da minha história de adulto — pai velho percorrendo com a cria os corredores do paraíso de páginas.
Inicialmente, o lugar predileto da Bárbara era a seção de papelaria da Saraiva. Corria-se o risco de esquecê-la entre canetas de trocentas cores, cadernetas e petrechos mil.
Dali para os livros infantis bastou mudar de porta. Mais mocinha, virou freguesa dos balcões de parafernália eletrônica.
A satisfação do velho pai é imensa ao confirmar seu interesse pelos livros — Bárbara era um pitoquinho de gente quando assustou Ronaldo Caiado, conhecedor da língua e da literatura francesas, ao conversar de igual para igual sobre Victor Hugo. E da Saraiva saíram “Os Trabalhadores do Mar” e “Os Miseráveis”, que encantaram a menina ainda no ensino fundamental.
Temos semanalmente, quando estou em Goiânia, o Dia de Pai e Filha, que até a pandemia era composto de Saraiva seguida de filmes. Bárbara é vegana, o que barateia os passeios, pois raramente se acha algo sem leite, sem carne… Usava as mesas da lanchonete só para ler. Ficávamos mais tempo na Saraiva que no cinema.
Livraria de shopping ir à falência é normal, como qualquer empreendimento. Difícil é conscientizar-se de que não vai reabrir no local loja no mesmo ramo. Nenhum link com avanço tecnológico, pois a Saraiva vendia Apple e Samsung. Seria a pirataria de PDF, lesando autores e editoras? Seria Amazon, fazendo dumping? Talvez. Mas o principal é o embrutecimento do Brasil, tributário do emburrecimento. Nem um ai pela Saraiva. Nenhum lamento pela Fnac, pela Cultura (em recuperação judicial) e tantas outras livrarias e bibliotecas. Nenhum verso pela Humanidade. Nenhum poema pela Civilização.
O menino que fui pelas ruas hoje encontraria nelas apenas traficantes e crack. O fazendeiro, em vez de ouvir Bilac, quereria os barões da pisadinha. Infelizmente, as cidades estão mais feias, mais frias, mais inabitáveis não apenas para os miseráveis, mas até para quem lê “Os Miseráveis”.
Nilson Gomes é advogado e jornalista.