Washington Luís fez um governo modernizador, sem fisiologismo, mas sucesso do varguismo “sepultou” sua história

Governantes longevos tendem a “apagar” a história de governantes anteriores. Tal aconteceu com o presidente Washington Luís Pereira de Sousa (1869-1957). Por meio de um golpe de Estado, Getúlio Vargas chegou ao poder em outubro de 1930 e só o deixou em 1945 – derrubado pelos militares que, durante 15 anos, haviam sido aliados do ditador. O presidente que caiu perdeu, além do poder, sua história – que, a rigor, não era ruim.
“Washington Luís – O Fim da Primeira República” (Folha de S. Paulo, 58 páginas), do historiador Pietro Sant’Anna, não é um livro exaustivo, mas consegue recuperar a história de um político que a história “esqueceu”, ou melhor, os líderes posteriores, com o apoio de seus Goebbels patropis, como Lourival Fontes, fizeram questão de silenciar, sugerindo que simbolizavam o atrasado que havia sido vencido e superado… para sempre. Pesquisas do historiador Jorge Caldeira têm mostrado que a República Velha, com o “Velha” sendo uma forma de depreciar o período, nada tinha de arcaica e que o país cresceu, de maneira extraordinária, no período. Mas esta não é a história corrente e que figura nos livros didáticos. O que se conta, ad nauseam, é que havia corrupção, fraude eleitoral e baixo crescimento econômico.
“Paulista de Macaé” (a cidade fica no Rio de Janeiro), Washington Luís é, no dizer de Pietro Sant’Anna, “uma figura histórica um tanto injustiçada”. Deputado, senador, prefeito da cidade de São Paulo e governador (na época, dizia-se presidente) do Estado de São Paulo, sua história é pouco conhecida. Ficou conhecido pelas frases “a questão social é um caso de polícia” e “governar é abrir estradas”. Mas quem sabe que era um dos políticos “menos fisiológicos do período”? Conciliador, ante as desavenças dos Estados, entregou o Ministério da Fazenda ao gaúcho Getúlio Vargas. Ele foi eleito “com mais de 99% dos votos. Mandou soltar presos políticos, afrouxou a censura e suspendeu o estado de sítio em vigor desde o governo anterior, de Arthur Bernardes”.
Sofisticado e bon vivant, Washington Luís frequentava teatros e bailes de carnaval, e até cantava, com voz de barítono. Como governador de São Paulo, implementou reformas modernizantes e, para evitar o fisiologismo, nomeou uma equipe mais técnica. “Seu Lulu” era um advogado com espírito de engenheiro. “Reformou o chamado ‘Caminho do Mar’, a ligação entre São Paulo e Santos. Apaixonado que era por automobilismo, foi o primeiro a percorrer de carro aquele trajeto, hoje conhecido como ‘Estrada Velha de Santos’.”
Antes mesmo de tomar posse, Washington Luís visitou o sertão nordestino – o que, na época, era raro. Queria conhecer o Brasil profundo e, claro, pobre. Ele assumiu a Presidência no dia 15 de novembro de 1926. “Desfilou em carro aberto pelo Rio de Janeiro, sem nenhuma proteção.”

Washington Luís com ministros, como Getúlio Vargas (primeiro à esquerda do presidente da República) | Foto: Acervo da Assembleia Legislativa de São Paulo

O presidente americano Abraham Lincoln, 65 anos antes, montou um ministério (lá, secretariado) com aliados e adversários. Era um time de rivais, mas deu certo. Washington Luís montou um ministério tido como fraco, porque queria que “o único a governar” fosse “ele próprio”. Getúlio Vargas não entendia nada de economia – tanto que se recusara participar da Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados por “não entender” do assunto –, mas, convidado, aceitou o Ministério da Fazenda. Era uma nomeação estratégica, porque o Rio Grande do Sul estava se tornando forte politicamente, um contrapeso à força de Minas Gerais.
Logo ao assumir, o presidente “iniciou uma espécie de ‘soltura em massa’ de presos políticos”. Depois, em 1927, ordenou a libertação de 800 pessoas que estavam presas em Clevelândia, no Amapá. Jornalistas que haviam sido condenados com a base na Lei de Imprensa também foram liberados. A censura perdeu força.
Mas nem tudo eram flores. Washington Luís se recusou a anistiar aqueles que estavam condenados “por ações revolucionárias praticadas nos anos anteriores. Os tenentistas já condenados pela Justiça permaneceram na cadeia – e, aliás, muitos outros foram sentenciados e presos ao longo do mandato de Washington Luís”, anota Pietro Sant’Anna. Mostrando que tinha um quê de Arthur Bernardes, o presidente aprovou, em agosto de 1927, a Lei Celerada ou Aníbal de Toledo. “Tornaram-se crimes inafiançáveis os atos de ‘desviar os operários e trabalhadores dos estabelecimentos em que forem empregados” e “procurar cessação ou suspensão de trabalho por meio de ameaças ou violências, para impor aos operários ou patrões aumento ou diminuição de serviço ou salário”.

Washington Luís, presidente da República, e o embaixador da Inglaterra no Brasil, no Palácio do Catete | Foto: Arquivo Nacional

O Partido Comunista do Brasil se tornou legal por sete meses e elegeu um deputado, Azevedo Lima, pelo Bloco Operário. A Lei Celerada o tornou clandestino de novo.
Ao contrário de Arthur Bernardes, que governou o país sob estado de sítio, Washington Luís restaurou a ordem constitucional. Logo cancelou o estado de sítio. No plano externo, reaproximou o Brasil da Liga das Nações.
Washington Luís, relata Pietro Sant’Anna, “construiu a primeira via pavimentada entre São Paulo e o Rio de Janeiro”, hoje conhecida como Rodovia Presidente Dutra. “Ela permitiu ir de uma capital à outra em dez horas – antes, o mesmo trajeto de carro demorava cerca de 140 horas”, registra Pietro Sant’Anna. O presidente construiu também a estrada Rio-Petrópolis, que, inaugurada em 1928, hoje tem o nome de Rodovia Washington Luís (BR-040).
Até por seu estilo sereno e equilibrado, o governo de Washington Luís foi um dos mais moderados da República Velha.
Política do café (São Paulo) com leite (Minas)
Se o acordão conhecido como “política do café com leite”, uma aliança-rodízio entre São Paulo e Minas Gerais para governar o país, era eficaz e seguro, por que Washington Luís decidiu rompê-lo? Possivelmente, sugere Pietro Sant’Anna, porque, julgando-se poderoso – São Paulo era a locomotiva do país –, avaliou que conseguiria eleger o governador de São Paulo, Júlio Prestes, para presidente e que ficaria por isso mesmo.
O candidato pactuado pela política do café com leite era Antônio Carlos de Andrada, o governador de Minas Gerais. Washington Luís não tinha simpatia pelo “coronel” mineiro. Ao perceber que seria “traído”, Antônio Carlos passou a articular com políticos do Rio Grande do Sul. O Estado era governado por Getúlio Vargas.
A desavença política era um fato, mas havia outro problema. “A administração de Washington Luís vinha prejudicando financeiramente Estados exportadores como Minas Gerais – veja-se, por exemplo, a decisão de cobrar a dívida pública mineira, ou a manutenção da moeda nacional em um patamar elevado.” Já o Rio Grande do Sul se consolidava como uma terceira força econômica e, também, política.
A Aliança Liberal, entre Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraíba, nasceu em julho de 1929 e apresentou a candidatura de Getúlio Vargas a presidente da República. Em setembro de 1929, Washington Luís lançou Júlio Prestes para presidente, consolidando a divisão com os três Estados.
A crise internacional, com a quebra da Bolsa de Nova York, em outubro de 1929, abalou o Brasil, o que enfraqueceu o governo de Washington Luís. A crise global “fez o preço do café despencar. Washington Luís, comprometido com sua reforma monetária, em vez de baratear a moeda brasileira, manteve a taxa de câmbio fixa. Consequentemente, os estoques começaram a se acumular e a renda dos cafeicultores declinou”. Os produtores rurais começaram a se postar contra o governo federal. Outra crise decorreu da Revolta de Princesa, na Paraíba, em fevereiro de 1930. O coronel José Pereira de Lima rebelou-se contra o governador João Pessoa e o governo de Washington Luís não agiu em defesa do gestor estadual. Em seguida, em 26 de julho de 1930, João Pessoa, o vice de Getúlio Vargas, foi assassinado. O crime, vingança pessoal, foi transformado em questão política.
Em 3 de outubro de 1930, com Minas, Paraíba e Rio Grande do Sul conflagrados, os militares tenentistas se insurgiram, no Sul, e começaram o movimento para derrubar Washington Luís. Tropas leais a Getúlio Vargas cercaram o Palácio do Catete, em 24 de outubro, e derrubaram o presidente. “Não renuncio; do palácio só saio morto”, disse Washington Luís. Pouco depois, com a intermediação do cardeal dom Sebastião Lemes, renunciou e saiu vivo. Encarcerado, ao ser liberado, foi exilado e viveu 17 anos na Europa, só voltando em 1947, depois da queda de Getúlio Vargas. “Morri em 1930 e fui sepultado com honras imerecidas, em 1947”, disse o presidente.

Júlio Prestes discursa na sua campanha presidencial em 1930: ganhou mas não levou | Foto: Arquivo público de São Paulo

Causas da Revolução de 1930
Pietro Sant’Anna frisa que, apesar da intransigência de Washington Luís, o presidente não foi a “causa” central da Revolução de 30. O historiador nota que, a partir de determinado período, deu-se uma dissonância “entre as oligarquias proprietárias e o restante da população”. Agora organizado, o movimento operário começou a contestar as medidas adotadas pelo capitalismo tardio. As camadas médias urbanas – incluindo militares, como os tenentes que deram nome ao movimento tenentista – também começaram a se tornar independentes e a contestar o status quo. Daí, do tenentismo, saiu o braço armado que possibilitou o golpe de Estado de 30, mais conhecido como Revolução de 30.
Além do choque entre os “sem-dinheiro” e os “com-dinheiro”, os proletas e os proprietários dos meios de produção, ocorreu uma crise entre os grupos dominantes. “As tradicionais elites agrárias, ligadas ao café, passaram a conviver com uma nova elite industrial e urbana” – que, naturalmente, queria se tornar hegemônica, e se tornou, depois de 1930. Antes, a oligarquia rural controlava o poder político, e em 1930 este domínio foi duramente questionado. A crise de 1929 contribuiu para reduzir o poder das elites exportadoras de café, que, depois de perder força econômica, acabou por perder o poder político.
O historiador Boris Fausto postula que “a Revolução de 1930 respondeu à ‘necessidade de reajustar a estrutura do país’”. O golpe de 30 não mudou tudo, por isso a expressão “Revolução de 1930” precisa ser relativizada – ainda que tenham ocorrido grandes mudanças posteriormente, com o Brasil se tornando de fato “mais” capitalista, mais industrializado. A rigor, frisa Pietro Sant’Anna, “o Estado brasileiro não foi democratizado, mas repartido menos desigualmente entre as diferentes oligarquias”. O historiador Edgard Carone sugere que a mudança de 30 seja vista mais como “evolucionista” do que como “revolucionária”.
“O ‘novo’ Brasil que surgido em 1930 era, portanto, ainda muito parecido com aquele governado pelo último presidente da República Velha”. Mas uma coisa é certa: o “sucesso” de Getúlio Vargas, que ficou no poder de 1930 a 1945, governando sem eleições – e voltou ao poder, em 1950 (por meio de eleição), e administrou o país até agosto de 1954, quando cometeu suicídio –, apagou o sucesso do presidente-cantor. Nem sua decência, tão cobrada hoje, é lembrada.