Talvez seja mais interessante comemorar o fim do comunismo na União Soviética do que o movimento que criou uma ditadura totalitária que durou 74 anos

Vladimir Lênin, Liev Trotski e Óssip Stálin: três políticos criaram o totalitarismo soviético e o exportaram, cada um à sua maneira, para vários países. Para a sedimentação do comunismo na União Soviética e no Leste Europeu, o terceiro é o homem-chave

“O Popular” publicou material especial sobre os 100 anos da Revolução Russa de 1917. A pesquisa é, no geral, qualificada — faltando, porém, a indicação de livros cruciais para entender as faces visíveis e ocultas do comunismo na União Soviética. Livros como “A Tragédia de um Povo: A Revolução Russa — 1891-1924” (Record, 1106 páginas, tradução de Valéria Rodrigues) e “Sussurros — A Vida Privada na Rússia de Stálin” (Record, 822 páginas,. tradução de Marcelo Schild e Ricardo Quintana), de Orlando Figes. Há outros livros, igualmente de qualidade, mas os dois contam muito bem a história da revolução e a maneira como se vivia sob o comunismo (sussurrar era um artifício para sobreviver).

Lista mínima de problemas ou questionamentos (há outros, não mencionados):

1 — O jornal mudou o prenome do poeta Vladimir Maiakóvski, que se tornou “Mikhail Maiakovski”. Tradutores categorizados, como Boris Schnaiderman, Augusto de Campos, Aurora Fornoni Bernardini e Haroldo de Campos, preferem grafar Maiakóvski com acento.

2 — O editor optou por usar grafias antigas a respeito de alguns nomes e deixando de acentuar Lênin. Acentuando, porém, Stálin, como se deve. Os historiadores começam a usar Ióssif, e não Josef Stálin. Não se usa mais Leon Trotski, e sim Liev Trotski. Só o “Pop” ainda usa “Máximo Gorki”. As editoras (como a 34) e tradutores, como Boris Schnaiderman, preferem Maksim Górki. O nome do comunista chinês é Mao Tsé-tung, e não Mao Tsé-Tung. O segundo “t” é minúsculo. Em Cuba e fora de Cuba grafa-se Fulgencio (e não Fulgêncio) Batista.

3 — “Como a superpotência comunista russa.” A rigor, não está errado. Até porque todos os historiadores, com ligeiras restrições, escrevem mesmo “Revolução Russa de 1917”. Mas é um erro histórico quando se menciona a “superpotência”. Afinal, a Rússia era apenas uma das repúblicas soviéticas. Não dá para ignorar a Ucrânia, a Geórgia (terra de Stálin), a Letônia, a Estônia, a Lituânia, a Bielorrússia (Belarus), entre outras repúblicas que voltaram a ser países. Em alguns, como a Ucrânia, há, até, um profundo “ódio” à Rússia, aos russos.

4 — No texto “E a Rússia mudou o mundo” — o correto seria “E a União Soviética mudou o mundo” (a Rússia sozinha não teria condições de fazê-lo) —, o competente Rogério Borges comete ao menos uma impropriedade. Talvez nem seja impropriedade, mas uma interpretação diferente dos fatos. “Motor de uma insurreição armada dentro de um movimento revolucionário, Lenin foi o maior responsável por colocar o comunismo no mapa geopolítico mundial, criando uma superpotência que teria importância crucial no planeta”, escreve o repórter. Trata-se de um equívoco? De fato, Lênin foi decisivo para a Revolução de 1917. Porém, como morreu em 1924 — quase sete anos depois da chegada dos bolcheviques ao poder —, não foi exatamente o político responsável “por colocar o comunismo no mapa geopolítico mundial”. Stálin pode até ser tachado de “monstro”, por ter comandado um regime que matou de 25 milhões a 30 milhões de soviéticos, mas não pode ser subestimado. Na verdade, Stálin, e não Lênin, é o responsável “por colocar o comunismo no mapa geopolítico mundial”. Quando Lênin morreu, a União Soviética atraía o interesse do mundo, todos estavam de olho na experiência dos bolcheviques, mas o país não tinha influência nas decisões globais. A União Soviética deve muito mais, do ponto de vista pragmático, a Stálin, que a governou de 1924 (e até um pouco antes, porque Lênin estava incapacitado para a gestão) até 1953, quando morreu.

5 — Rogério Borges afirma que Lênin “tinha enorme senso prático”. Não há dúvida de que era um político pragmático. Entretanto, como governante, cometeu sérios equívocos, exatamente pela falta de “senso prático”. Ele era um teórico, um intelectual, sem experiência política e administrativa. Nunca havia gerido nada até chegar ao poder em outubro de 1917. Curiosamente, Stálin, que começa a ser menos subestimado por historiadores gabaritados, como Stephen Kotkin, autor do livro “Stálin — Paradoxos do Poder” (Objetiva, 1144 páginas, tradução de Pedro Maia Soares), e “Stálin — A Corte do Czar Vermelho” (Companhia das Letras, 912 páginas, tradução de Pedro Maia Soares), podia ser brutal, mas, como gestor e político, não era um néscio.

6 — Está errado escrever, como faz Rogério Borges, “os Gulags”? A rigor, não. Mas usa-se com frequência “o gulag”.

7 — A reportagem do “Pop” comete uma injustiça histórica com Alexander Kerensky, aparentemente por ser favorável aos comunistas de Lênin e Stálin. Rogério Borges assinala que seu governo “não solucionou os graves problemas econômicos que assolavam a população, sobretudo a mais pobre”. Ora, como Kerensky poderia ter resolvido problemas sociais e econômicos históricos em menos de um ano, com o país envolvido na Primeira Guerra Mundial e sob convulsão social? A revolução que propunha, dado seu caráter democrático, era, quem sabe, um prenúncio da socialdemocracia. Tornou-se hegemônica a corrente totalitária, a de Lênin, Trotski e Stálin — a ímpia trindade comunista — e a democracia ficou esquecida por 74 anos.

8 — “O Popular” afirma que Kerensky era menchevique. Na verdade, era socialista-revolucionário. O livro “Do Czarismo ao Comunismo — As Revoluções Russas do Início do Século XX” (Três Estrelas, 279 páginas), de Marcel Novaes, conta a interessante história do político russo, quase sempre visto pelo viés dos bolcheviques.

9 — O “Pop” sugere que Stálin pode ter sido envenenado. É possível, mas historiadores recentes não endossam a informação. Assim como é possível que tenha morrido por não ter recebido assistência médica a tempo. O jornal tem razão quando diz que Maksim Górki, ao voltar à União Soviética, sob Stálin, tornou-se o escritor de bolso do stalinismo. Mas deixa de ressaltar que, por fazer restrições ao totalitarismo, pode ter sido envenenado pela polícia secreta de Stálin.

10 — Pura questiúncula: ao mencionar a proibição do romance “Doutor Jivago”, o “Pop” parece ignorar que Boris Pasternak era mais poeta do que prosador. “Jivago”, romance do século 19 publicado no século 20, era uma espécie de vingança do escritor contra o stalinismo (convém realçar que Stálin prezava o poeta, se é que prezava alguém).

11 — O professor Wilson Ferreira da Cunha, mestre em Antropologia por uma universidade soviética, é mencionado como tendo dito que Nikita Kruchev (ou Kruschev) era “presidente” da União Soviética. De fato, funcionava como “presidente”, mas governava o país como secretário-geral do Partido Comunista.

12— Talvez seja mais interessante comemorar a queda do comunismo na União Soviética, em 1991, do que a Revolução Russa de 1917. Mas aí é uma questão de perspectiva política e ideologia. Há quem ainda acredita na chamada utopia comunista, que talvez mereça ser vista como uma distopia…