Entenda como uma obra de arte, um filme, pode iluminar um dos problemas dos seres humanos, o mal de Alzheimer

Marcos Antonio Ribeiro Moraes

Especial para o Jornal Opção

O mal de Alzheimer tem sido, até o momento, um dos desafios para o campo das ciências em saúde, no que se refere a evitar a sua ocorrência, cura, ou mesmo a paralisação da evolução dos casos. Desafio também para o sujeito acometido por esse mal, para seus cuidadores e familiares.

Não é fácil a abordagem do tema. Mas, ainda assim, tem sido frequente a tentativa de falar dessa realidade, sobretudo por intermédio de filmes sobre o assunto. Destaco o recente longa-metragem “Meu Pai”, do diretor Florian Zeller, com a admirável atuação do ator galês Anthony Hopkins (ganhou o Oscar de Melhor Ator), de 83 anos, no papel de Anthony, um idoso, e Olivia Colman, que interpreta sua filha Anne.

No filme, o diretor faz uma escolha interessante: ao longo da trama, não dá nenhum nome ou diagnóstico para a condição de sofrimento e desorganização cognitiva e psíquica vivida pelo protagonista. Tudo se desenrola na intenção de nos fazer entrar no ponto de mirada dos personagens, sobretudo na condição em que se encontra esse idoso, mas também, por consequência, sua filha. A trama que se desenrola em “Meu Pai”, nos introduz em temas importantes sobre a velhice, paternidade e mesmo sobre a ambivalência dos amores vividos no contexto familiar — e como tudo isso passa a ser potencializado quando nos vemos ameaçados pela perda de nossas referências na relação com o outro, com tempo, espaço e nossas memórias.

Com sua genialidade, Florian Zeller nos ajuda a pensar relevantes questões acerca da atenção aos sujeitos acometidos por patologias neurovegetativas, como a demência do tipo Alzheimer. Questões que nos remetem à necessidade de revisitar conceitos, modos de condução, escuta e tratamento desses sujeitos. Tais entendimentos se relacionam ao que entendemos ser a constituição do eu e do sujeito. Uma vez que, na condição de estar demenciando, o sujeito parece vivenciar o avesso ou a corrosão daquilo que o representa no mundo e para o outro, o que de si mesmo se encontrava constituído e estruturado de forma singular. Aqui falo de uma fronteira que nos remete a um dos aspectos extremos da fragilidade humana, a perda da linguagem, enquanto condição de fala, que nos vincula ao outro, nos diferentes laços sociais. Nesse sentido uma pergunta formulada com frequência é a respeito da consciência, ou seja, da existência de uma vida emocional e psíquica nos quadros de demência, ou seja, da possibilidade de falar e se fazer compreender por esses sujeitos, e de estabelecermos com eles os vínculos transferenciais. Quase como uma condição prévia, a definir nosso modo de interagir com a pessoa que se encontra em processo de demência.

Anthony Hopkins no filme “Meu Pai”, que lhe rendeu um Oscar | Foto: Reprodução

Essa pode ser também a dúvida e insegurança que atravessa o cotidiano dos filhos de pacientes com mal de Alzheimer, pois algo de muito relevante se passa na cena, em que, de um lado, se encontra um pai ou uma mãe em processo de demência e do outro uma filha ou um filho. É nessa mesma cena — que um dia foi necessária para que um corpo de um filho fosse investido pela linguagem e existisse enquanto eu e depois sujeito — que se encontra agora um pai ou uma mãe sendo desapossado do campo da linguagem, desvanecendo paulatinamente e tendo diluída a sua condição de eu e de sujeito. Aqui os papeis passam a ser revirados. No ato da constituição psíquica de um filho, os pais estão, de forma indispensável, na função de apoio à essa existência. O que dará a eles, por toda a vida, um lugar simbólico na existência desses filhos, ficando, assim, inscritos    psiquicamente, como parte relevante do grande Outro, na cena inconsciente à qual estamos referidos em nossas escolhas, posições e ações cotidianas.

Entretanto, nessa reviravolta, os filhos são deslocados. De algum modo, é retirado de sua frente esse espelho, ou parte das referências desse Outro. Sobre isso, Jacques Lacan dirá que, na demência, verificamos a experiência do estágio do espelho de forma invertida. Abrindo assim uma ferida narcísica, no lugar de sustentação do nosso ideal de eu, de nossos sonhos e das imagens que asseguram nossos referenciais de limites e possibilidades de existir. O que quase inevitavelmente pode se traduzir por sentimento de perda do nosso apoio, em nosso objeto primitivo de amor. De tal forma as fundações psíquicas parecem abaladas, nesse instante em que os filhos são convocados a se deslocarem de seu lugar, passando ao lugar de “pais de seus pais”. São com essas questões que venho me deparando, no atendimento de analisandos que se encontram na condição de filhos de pais com diagnóstico de Alzheimer. O que esses sujeitos vivenciam é, sim, uma verdadeira crise, mas é também um momento fecundo para a escuta de fragmentos, que, nessa hora, retornam da cena inconsciente como possibilidade de serem analisados.

Olivia Colman é Anne e Anthony Hopkins é Anthony no filme “Meu Pai” | Foto: Sean Gleason

Quanto aos sujeitos com sinais de demência, também é de muita importância que possam ser acompanhados em análise. Tenho observado que o mal de Alzheimer nem sempre é um diagnóstico feito tão de imediato e com tanta clareza. Alguns casos que tenho atendido, se tratam de diagnósticos ainda não decididos por exames de imagem. Muitas vezes apontam para a possibilidade de um comprometimento da memória, por consequência de sofrimentos emocionais, como a depressão. Em situações assim, com frequência me deparo com sujeitos que já vinham carregando, em suas histórias, lutos não elaborados, estados melancólicos, inibições e angústias que já os acossavam há muito tempo. Nessa hora, o trabalho em análise possibilita uma oportunidade de fortalecimento da condição de sujeito e de sua saída de estados de “apagamento” para uma melhor qualidade de vida.

Nos casos de diagnósticos definidos como Alzheimer ainda assim vale lembrar que é uma doença de lenta evolução, que estamos diante de sujeitos que merecem acolhimento e escuta da expressão do seu desejo. Muito embora tais sujeitos apresentem uma desorganização no campo da memória, da noção de espaço e tempo, isso não significa necessariamente, de imediato, um prejuízo ou a perda da referência ao outro. É possível percebermos que tais referências continuam operando e retornando pela via de significantes, metáforas e metonímias que atestam esse endereçamento ao outro, ao tempo e ao espaço. Bem como a possibilidade de formular diferentes metáforas para a atualidade do seu desejo.

No filme citado, temos vários exemplos disso. Um deles é a correlação significante que Anthony estabelece entre sua nova cuidadora, com a qual nutre finalmente uma simpatia e sua filha falecida num acidente.

Como formação metonímica, destaco a figura do relógio de pulso, um significante do tempo para o personagem, aludindo ao seu medo de perda e reencontro no tempo. Nesse sentido, um fragmento, no caso uma máquina, é tomado como significante desse tempo, que precisa ser assegurado pelo protagonista, em sua angustiante sensação de estar se perdendo em seu referencial cronológico e de memória.

Um exemplo belíssimo é a cena em que Anthony, em profunda angústia, por se sentir uma arvore perdendo suas folhas, grita pelo socorro e o aconchego do colo de sua mãe. Nessa hora a enfermeira o acolhe com um abraço, fazendo da ternura de seu gesto, metáfora viva da função materna. Todavia, isso não significa que devemos tratar tais sujeitos de forma infantilizada, recado que nos é dado pelo protagonista em dois momentos de sua interação com a sua cuidadora.

A psicanálise, a partir de Lacan, baseia sua teoria sobre o inconsciente, no campo da linguagem, com seus retornos metonímicos e metafóricos, como possibilidade de escuta da fantasia que conduz o desejo de cada pessoa atravessado pela castração. De tal forma, nossa prática clínica é conduzida por essa lógica da produção de metáforas e metonímias, de seus efeitos no ato da fala, na edição e reedição do mito e história de cada analisando.

Partindo então desse paralelo, entre a constituição psíquica e o esvanecimento, a diluição do eu e do sujeito em quadro de demência, vale considerar que, se no transcorrer de uma constituição psíquica é fundamental o apoio e a sustentação do outro, para diminuir angústias e dar referências para que o sujeito situe seu lugar, é preciso pensar na relevância desse papel do outro, também na demência, como continente de um grande mal-estar vivenciado por esses sujeitos. Como apoio para eles, enquanto possível, no campo da linguagem, se servindo dos significantes, de metáforas e metonímias, que funcionariam como referências necessárias e medidas de alívio dos quadros de angústia e sofrimento.

Se a questão, como foi dito anteriormente, é a impotência que sentimos, dados aos limites que o sujeito em quadro de demência apresenta no campo da linguagem e a suposição de que ele esteja impossibilitado de falar de seu mal-estar e estabelecer vínculo transferencial, vale então nos questionarmos sobre o que vem primeiro. Nesse sentido, recordo o que disse Lacan na introdução de seu seminário 8 “A transferência”, ao fazer um jogo com as palavras que estão no prólogo do Evangelho de João, “no princípio era o verbo”. De sua parte, Lacan afirmar: “No início era o amor”.

Marcos Antônio Ribeiro Moraes é psicanalista, membro da Appoa, professor da PUC-Goiás, especialista em saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia. É colaborador do Jornal Opção.