Revela pressões de Flávio Bolsonaro pra demitir auxiliares e diz que o presidente não entendeu a extensão da pandemia do novo coronavírus

“Um Paciente Chamado Brasil — Os Bastidores da Luta Contra o Coronavírus” (Objetiva, 240 páginas), do médico e ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, é uma ressonância magnética tanto da saúde nos tempos da pandemia quanto do baixo nível da política nos tristes mas calientes trópicos.

Trata-se de um livro vingador e irado contra o presidente Jair Bolsonaro, que defenestrou Mandetta do Ministério da Saúde? Não parece. O médico, por sinal, tem um comportamento sereno e equilibrado. A obra não tem e nem pretende ter a energia criadora e reverberante de “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, “Os Donos do Poder”, de Raymundo Faoro, “Formação Econômica do Brasil”, de Celso Furtado, e “O Povo Brasileiro”, de Darcy Ribero. Trata-se de um texto de circunstância, uma evidência de um governo que é tão errático quanto seu líder máximo. Seu caráter errático parece sistêmico…

Não fosse a pandemia do novo coronavírus, Mandetta teria continuado no governo? É provável. Mas o combate à Covid-19 acentuou a diferença e as contradições entre o médico e o ex-militar. Se há divergências inconciliáveis, entre o homem da caneta e o indivíduo descanetado, só há uma possibilidade: o primeiro fica e o segundo escafede-se.

Jair Bolsonaro e Luiz Henrique Mandetta: aliados políticos e administrativos que se tornaram adversários figadais| Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Mas Mandetta teria caído unicamente por que, apóstolo da ciência e da transparência na divulgação dos dados sobre a pandemia — que, derivados do público, têm de ser públicos —, passou a contradizer o presidente “gripezinha”? Também por isso. Mas não só. O médico relata que, a partir de certo momento, o senador Flávio Bolsonaro começou a pressioná-lo para demitir quatro técnicos do Ministério da Saúde. O motivo não era, digamos, técnico. O interesse, segundo Mandetta, era outro. O filho do presidente queria a nomeação de “gente nossa”. “Será que foi um mal-entendido ou tem gente do Rio querendo assumir cargos no Ministério?” — ironiza Mandetta. O Rio, como se sabe, está “exportando” mais corrupção do que petróleo. A verdade postulada pelo ex-ministro: “Quem impôs os nomes [Flávio Bolsonaro] mirava o controle de mais de 80% do orçamento do Ministério da Saúde”. Como se vê, um negócio pouco católico e com a escassa saúde…

Em nome da convivência social, que exige uma certa diplomacia, todos os seres humanos mentem, uns mais e outros menos. Não haveria o mínimo de harmonia social sem uma gota de hipocrisia. Mas uma mentirinha para ajustar relações entre indivíduos não faz mal algum. Pelo contrário, às vezes melhora a interação social. Já governantes mentem de maneira articulada e, quase sempre, para enganar a sociedade — não apenas os eleitores. Na questão da pandemia, sobre seus números e gravidade, enquanto Mandetta falava a verdade, parte do governo faltava com a verdade (um eufemismo, claro).

Luiz Henrique Mandetta e Paulo Guedes: o ministro da Economia não queria saber da pandemia do novo coronavírus | Foto: Reprodução

Mandetta relata que Bolsonaro, com um comportamento pré-infantil — até crianças entendem a gravidade dos problemas —, se comportava “como se o coronavírus não existisse”. Mas o presidente não acreditava mesmo? Tudo indica que sim. Porque teorias conspiratórias começam, como diz a expressão, como teorias conspiratórios. Aos poucos, seus mentores parecem acreditar realmente naquilo que “inventaram” (copiaram ou adaptaram), por falta de informação precisa ou conveniência. O ex-ministro revela que, no seu gabinete do Palácio do Planalto, Bolsonaro não mantinha nenhum frasco de álcool em gel ou qualquer outro. O que prova que a história de “gripezinha” não resulta tão-somente de sua “macheza” e de sua “brabeza” latino-americanas.

Ortopedista por formação, Mandetta chegou a pensar em se especializar em psiquiatria, e, pelo livro, parece ter estudado o assunto. Por isso, e talvez não de maneira excessiva, examina Bolsonaro como se fosse seu psiquiatra. O presidente opera, segundo o ex-ministro, em três níveis. Primeiro, prevalece a negação — a Covid-19 “é só uma gripezinha”, não é altamente contaminante e mortal. Segundo, chega a vez da raiva do médico, no caso Mandetta (mas também de vários outros que duvidavam da história da “gripezinha”). O milagre — a cloroquina — é o terceiro ponto. Faltou falar na salvação — o que acrescentaria mais lenha na fogueira —, já que Bolsonaro se comporta como um fundamentalista religioso. Não chega a ser um Jim Jones, claro.

O livro revela que aquilo que Bolsonaro dizia num dia para Mandetta — a aceitação do isolamento social — era esquecido no dia seguinte, quando o presidente decidia abraçar apoiadores nas ruas ou no cercadinho na porta do Palácio Alvorada. Loucura ou cálculo político? É provável que nem o médico Simão Bacamarte — de “O Alienista”, o genial conto de Machado de Assis — tivesse condições de apresentar um diagnóstico preciso. Frise-se que Bolsonaro é um político atentíssimo. Falta-lhe cultura, mas não inteligência. O “cerco” que pretende fazer no Supremo, mudando sua configuração jurídico-ideológica, é uma evidência de que não se trata de nenhum néscio. Não é um iluminista, por certo. Mas, estulto, não é. Subestimar um “atleta da perspicácia” — como parece fazer Mandetta — é um equívoco.

Donald Trump,  presidente dos EUA, e Xi Jinping, presidente da China, estão usando o peso     de suas estruturas numa guerra pela hegemonia mundial | Foto: Reuters/Damir Sagolj

Quando Mandetta falou em mais de 100 mil mortos por Covid-19 (chegou a apontar um número mais alto — 180 mil), Bolsonaro duvidou. Já morreram mais de 146 mil pessoas. Culpa de Bolsonaro? Não inteiramente. Mas o número poderia ter sido menor se o presidente tivesse manifestado mais empenho no combate à pandemia? Talvez. Não se deve tratar os cidadãos como meras vítimas indefesas. Se estão se aglomerando, em praias e bares, a responsabilidade é das pessoas. Adultos têm de assumir a responsabilidade pelo que fazem. “Culpar” Bolsonaro é não perceber que os seres humanos estão, neste momento, fazendo o que querem: conviver e se divertir em grupos.

Bolsonaro às vezes não tem foco, ou seu foco é mais político do que administrativo. “Você vai elogiar o [João] Doria?”, perguntou o presidente a Mandetta. Motivo: o governador de São Paulo se coloca, desde já, como seu possível rival na disputa presidencial de 2022. Soldado invernal da Guerra Fria, o presidente disse ao ex-ministro que “na Fiocruz só tem comunista”, portanto o laboratório do Exército é que deveria produzir cloroquina — a água bentíssima do governo Bolsonaro.

Segundo Mandetta, o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, seria um “agente para desestabilizar a direita na América do Sul e promover a volta da esquerda” ao poder. Verdade? Nada disso. A China não está interessada em promover revoluções em nenhum país — tampouco em instalar governos de esquerda na América do Sul. O que os chineses querem, de verdade, é comprar commodities e vender produtos industrializados para os países — reforçando sua balança comercial. A China opera para, dentro de alguns anos — talvez décadas —, superar a economia dos Estados Unidos, a mais rica do mundo. Para tanto, esqueceu a ideologia comunista no bolso esquerdo e retirou o capitalismo do bolso direito para negociar com praticamente todo o mundo. O que o país busca é a hegemonia econômica para, só mais tarde, sedimentar a hegemonia política. O que sabe Bolsonaro a respeito disso? Tudo, evidente. Usa o fantasma da Guerra Fria, não exatamente por que acredita inteiramente nela, mas para aglutinar apoio contra a esquerda no Brasil. De fato, é um soldado invernal da Guerra Fria, mas bem menos do que o filósofo Olavo de Carvalho. Porque, ao contrário do pensador da Virginia, é, como todo político, adepto da realpolitik e cético em relação às teorias.

Rodrigo Maia, deputado federal, e Onyx Lorenzoni, ministro do governo Bolsonaro: o segundo teria gravado parlamentares na casa do primeiro | Foto: Reprodução

Bolsonaro parece — ou parecia — acreditar que o novo coronavírus era uma “arma biológica”. Pode ter embarcado na ficção interesseira criada pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Este, na verdade, nem acredita realmente no que diz, orientado que é por algumas cabeças científicas mais qualificadas do planeta. O que afirma, de maneira peremptória, faz parte da guerra comercial dos ianques contra a China. A “saúde” — o uso e abuso da pandemia — esconde a luta para tentar enfraquecer o país do presidente Xi Jinping. Os militares brasileiros, inclusive os que assessoram Bolsonaro, têm uma cabeça científica e, por isso, sabem o que está de fato acontecendo. São realistas e, daí, pragmáticos.

Assim como Lula da Silva, que é inteligente e perspicaz, Bolsonaro não tem paciência para ouvir explicações sofisticadas. Por que não consegue compreendê-las? Em parte, sim. “Eu tentava explicar as coisas em um linguajar bem raso, porque se você falar em um linguajar normal ele não demonstra interesse, não dá atenção”, relata Mandetta. Não estaria o ex-ministro subestimando um fenômeno — Bolsonaro — que não consegue entender com precisão? Talvez sim. Talvez não. A direita tentou fazer o mesmo com Lula da Silva, sugerindo que era obtuso. Não era. Não é. Há pessoas “incultas” — e até toscas, e os dois o são — que, paradoxalmente, são inteligentes, dotadas de uma intuição tão poderosa quanto funcional.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, um chicago-old, é, sem dúvida, qualificado. Mas lembra, e não vagamente, o personagem Chance (Peter Sellers), do excelente filme “Muito Além do Jardim”, de Hal Ashby. A película, baseada no romance “O Videota”, do escritor polonês Jerzy Kosinski, relata a história de um jardineiro que, de repente e sem querer, passa a pontificar sobre tudo — um verdadeiro Posto Ipiranga — e todo mundo passa a acreditar no que diz. Paulo Guedes era unanimidade no governo — estava quase acima do próprio Bolsonaro, o homem da caneta cuja tinta dura quatro e pode durar oito anos — e, de repente, não é mais. Por quê? Porque é o popular “burro inteligente”. O burro inteligente não é burro, mas, ao se comportar como “único” inteligente — ignorando a diversa inteligência alheia —, o dono da verdade, se torna, digamos, burro inteligente. O primeiro equívoco de um dirigente é quando começa a acreditar que é o único inteligente na face da Terra. Parece ser o caso do iluminado Paulo Guedes — que, embora não seja inteiramente o Chance da vida real, está pedindo para ser exonerado. Tende a ser devorado pelo Moby Dick dos oceanos turvos e incandescentes do governo Bolsonaro — Marinho, de prenome Rogério. Um sujeito que tem “mar” e “rio” no nome é sempre um perigo para os que, como Paulo Guedes, talvez só saibam nadar em piscina.

Mandetta sustenta que Paulo Guedes não tinha interesse pelo combate à pandemia do novo coronavírus. Não parece ser um problema dele. A faceta de mal informado é uma revelação. O ministro da Economia não sabia, por exemplo, que os medicamentos eram tabelados — e desde o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

O ministro Onyx Lorenzoni, que pertence ao mesmo Democratas de Mandetta, também não faz boa figura no livro. Em 2016, quando Bolsonaro ainda era deputado federal e ninguém acreditava que pudesse se tornar presidente da República, Onyx Lorenzoni gravou escondido uma conversa com parlamentares, na casa de Rodrigo Maia, e ainda a mostrou para Mandetta.