O Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, sai com tradução de Eric Nepomuceno pela Cia das Letras

28 abril 2019 às 00h00

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Quase sexagenário, o romance se mantém de pé, com sua inventividade literária. Obra inclui textos de Haroldo de Campos e Davi Arrigucci Jr.
Não corte suas asas, afinal ninguém é Ícaro. Mas, daqui a alguns dias, deixe o entretenimento de lado — please, não “surre” os adultos que não param de ler “A Guerra dos Tronos”, “Harry Potter” e “O Senhor dos Anéis”, pois todo mundo tem direito de voltar a ser criança pelo menos uma ou duas vezes na vida —, e leia os “romances” (no plural, sim, camaradas) “O Jogo da Amarelinha”, de Julio Florencio Cortázar (1914-1984), um escritor que é de todos os lugares, inclusive da Bélgica e da Argentina. A tradução anterior, de Fernando de Castro Ferro, publicada pela Civilização Brasileira, não é ruim; pelo contrário, é boa e faz o autor “falar” em português com classe, e sem empolação. Mas uma nova versão, ainda mais de Eric Nepomuceno, que parece ter sido alfabetizado em espanhol — naquele espanhol luminoso de García Márquez, Vargas Llosa e, claro, Julio Cortázar — e traduz com uma fluência que encantaria tanto Deus quanto Lúcifer, se este não estiver, digamos, caído.
A nova tradução está saindo pela Editora Companhia das Letras — com 592 páginas — e já pode ser pedida nos sites das livrarias Travessa, Cultura e Amazon. Encomendei dois exemplares, para ler junto com Candice Marques de Lima, mais nova candidata ao melhor do “socialismo” argentino, “o cortazarismo” de Julio Cortázar — ao lado do “borgismo” de Jorge Luis Borges e do “girondismo” de Oliverio Girondo.

Julio Cortázar é, sem dúvida, um dos filhos de James Joyce, mas não é escravo. “O Jogo da Amarelinha”, como sugere o título, é um jogo literário e o leitor pode ler o romance — que apresento como “romances”, sim no plural, com “s” no final da palavra — da maneira tradicional, se se pode indicar que há uma leitura tradicional deste livraço, e de modo salteado, uma leitura indicada pelo autor (a rigor, as duas são sugeridas pelo escritor que morreu, em Paris, aos 69 anos). De certa forma, seguindo qualquer uma das leituras, somos coautores deste romance-romances. Literatura é manipulação, é exercício do viés — e Julio Cortázar é hábil na arte, por assim dizer, da desfaçatez, de nos conduzir, aparentemente de maneira frouxa, mas, no fundo, segurando nossas mãos e dirigindo nossos olhos de maneira segura, firme. Somos e não somos errantes nas suas mãos de gigante.
“O Jogo da Amarelinha” (“Rayuela” é o título original) foi publicado há 56 anos — há pouco mais de meio século. Se o tempo atesta a qualidade de um romance, com a crítica consagrando-o ou demolindo-o, o que se pode dizer do livro é que resiste de pé, com rara firmeza. O romance-romances está vivo, não ficou velho e não apenas por causa da suposta firula — porque firula certamente não é — das duas leituras (ou das múltiplas leituras). Pense num romance artificioso, altamente artificioso, milimetricamente artificioso — e que ainda assim parece “natural”. Pensou? Pois, se pensou, acabou de pensar em “O Jogo da Amarelinha”. Os “romances”, sabemos nós e Davi Arrigucci Jr. — dos críticos mais percucientes de Julio Cortázar, e os argentinos devem ficar com uma bruta inveja —, são eternos e não passarão, assim como persistirão o café, Balzac e até, quem sabe, Madame de Stäel.

No site da Companhia das Letras, há uma sinopse relativamente útil (se é que se pode sintetizar um romance caudaloso em tão poucas linhas): “Tão radical quanto inclassificável, a obra-prima de Julio Cortázar mudou para sempre a história da literatura — e chega agora em nova edição ao leitor brasileiro. ‘A verdade, a triste ou bela verdade, é que cada vez gosto menos de romances, da arte romanesca tal como é praticada nestes tempos. O que estou escrevendo agora será (se algum dia eu terminar) algo assim como um antirromance, uma tentativa de romper os moldes em que esse gênero está petrificado’, escreveu Julio Cortázar numa carta de 1959, quando iniciava a escrita do que viria a ser ‘O Jogo da Amarelinha’. Publicado em 1963, o relato de amor entre um intelectual argentino no exílio, Horacio Oliveira, e uma misteriosa uruguaia, a Maga, ao acaso das ruas e das pontes de Paris, é um marco da literatura do século 20. A nova edição brasileira traz uma seleção de cartas do autor sobre a escrita e a recepção de ‘O Jogo da Amarelinha’, tradução de Eric Nepomuceno, projeto gráfico de Richard McGuire e textos de Haroldo de Campos, Mario Vargas Llosa, Julio Ortega e Davi Arrigucci Jr.”
A Companhia da Letras recolhe frases (publicidade) de autores e críticos a respeito de Julio Cortázar e “O Jogo da Amarelinha”. O indefectível Roberto Bolaño (autor menor elevado à categoria de autor maior, dada a falta de novas e grandes referências; se escrevesse nos tempos de Cortázar, Borges, García Márquez, José Donoso, seria considerado “frango de granja”) escreve: “Cortázar é o melhor”. É grande — um dos melhores —, mas certamente não é o melhor (ah, sim, era altíssimo).

“Estamos diante de um romancista realmente criador, o único da América Latina de hoje que se pode ombrear com o nosso Guimarães Rosa”, escreveu o poeta, crítico e tradutor Haroldo de Campos. Claro que seria preciso escrever um tratado para provar que Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, para citar apenas dois autores, não podem “se ombrear com o nosso Guimarães Rosa”. Ou, dito de outra forma, talvez nem Julio Cortázar, nem García Márquez, nem Vargas Llosa podem se “ombrear” com o autor de “Grande Sertão: Veredas”. Mas quem, mesmo implicando com as posições políticas do escritor colombiano — como eu às vezes faço, não tolerando seu amor pelo ditador Fidel Castro (consta que foi visto no Inferno de mãos dadas com Fulgencio Batista, como se fosse o Enéas, o da “Eneida”, que não deu certo) —, não reconhece os méritos dos romances “Cem Anos de Solidão” e “O Outono do Patriarca” e da noveleta “Ninguém Escreve ao Coronel”? Quem há de, em sã consciência, não aceitar a alta qualidade do romance-romances “Conversa no Catedral” (trata-se de um bar), de Vargas Llosa? Não sei a que “hoje” se refere Haroldo de Campos. Mas, dependendo do que está dizendo, como esquecer o romance “Paradiso” (que deve ser lido na tradução belíssima de Josely Vianna Baptista), do cubano José Lezama Lima?
Vargas Llosa reconhece a primazia de Julio Cortázar: “Nenhum outro escritor deu ao jogo a mesma dignidade literária. A obra do autor argentino abriu portas inéditas”.
Davi Arrigucci Jr. tasca com sabedoria e precisão: “‘O Jogo da Amarelinha’ é uma construção literária e, a uma só vez, um projeto paradoxal de destruição da literatura. Uma obra em constante gestação, um texto que se vai tecendo à medida que se lê”. James Joyce o aprovaria? Por certo, até com distinção e louvor.
Alejandro Zambra anota: “As grandes obras são as que, passados os anos, continuam sendo inclassificáveis. E penso que ‘O Jogo da Amarelinha’ ainda é um romance inclassificável. Talvez só agora estejamos prontos para ler, de verdade, Cortázar”. Poderia ter acrescentado: o romance — com formatação multifacetada — é obra de gênio.