Os militares, escolados e adequadamente preparados, por certo não permitirão que um capitão de poucas luzes os leve para uma aventura golpista

Jânio da Silva Quadros: o Jair Messias Bolsonaro de 1961 usou a renúncia como uma espécie de golpe que deu errado | Foto: Reprodução

O presidente Jânio Quadros renunciou em agosto de 1961 porque acreditava que os generais não aceitariam a posse de João Goulart e, assim, seria chamado de volta. Retomaria a Presidência da República nos braços do povo e dos militares. Deu tudo errado. Primeiro, porque houve reação no país, notadamente no Rio Grande do Sul, com o governador Leonel Brizola, do PTB, e militares que o apoiavam, e em Goiás, com o governador Mauro Borges, do PSD. Confrontados, os generais negociaram um pacto — Jango Goulart assumiria a Presidência, mas com Tancredo Neves, um moderado, como primeiro-ministro. Descontente com a perda de parte do poder, o presidente criou o plebiscito que resultou na extinção do parlamentarismo. Pouco depois, entre o fim de março e o início de abril de 1964, os militares e as vivandeiras, como Carlos Lacerda e Magalhães, derrubaram, via golpe, o governo civil, democraticamente eleito. Jango e o cunhado Brizola pagaram para ver e “caíram”.

Quase 60 anos depois, há um quadro parecido mas não igual ao de 1961 e 1964. O presidente Jair Bolsonaro foi eleito e nomeou vários militares para o ministério (talvez uma jogada para se sentir protegido, confortável e, quem sabe, evitar um impeachment). Mas demonstra não estar satisfeito com a democracia — que, teoricamente, atrapalha seus projetos. Ele está indo às ruas participar de mobilizações — ainda pequenas, e com ar quixotesco — que pregam contra o sistema democrático, daí a insistência da militância bolsonarista em fechar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (noutras palavra, o fim da democracia). Os militares apoiam o governo, estão no governo, são governo. Mas não parecem minimamente interessados na aventura golpista “sugerida” por Bolsonaro e pelo bolsonarismo.

Ernesto Geisel e João Figueiredo: o primeiro decidiu acabar com a ditadura porque ela havia se tornado uma bagunça, com vários vícios | Foto: Reprodução

Mais do que Bolsonaro, que é um dos nostálgicos da ditadura, sobretudo a de Emilio Garrastazu Médici, sua face mais cruenta, os militares atuais, com excelente formação intelectual e perfil democrático, sabem que regimes discricionários, quando acabam, deixam o lodaçal — a história negativa —, não necessariamente para civis e militares. Só para os militares, sobretudo os de alta patente, como coronéis e generais. Observe-se que parte da esquerda, sobretudo a extrema esquerda, prefere tratar o golpe e a ditadura como meramente militares. Quando, na prática, foram civis-militares. O duríssimo AI-5, um golpe dentro do golpe — quando a ditadura esteve perto de ser, mais do que autoritária, totalitária —, foi escrito pelo civil Gama e Silva. Militares até se assustarem com sua virulência e recomendaram mudanças. A política fazendária e o planejamento são construções de civis — como Octavio Gouveia de Bulhões, Roberto Campos, Reis Veloso, Delfim Netto e, entre outros, Mario Henrique Simonsen. Os militares mandaram mais, é certo (podiam demitir os civis, por exemplo). Entretanto, os civis do governo não eram eunucos técnicos e políticos. É provável, até, que alguns deles, como Petrônio Portela, tenham colaborado para moderar, eventualmente, alguns generais e seus governos.

Não se deve ameaçar com golpismo para impor mais democracia.

Radicalizar a democracia é acatar a interdependência dos poderes

O general Braga Netto, um democrata, e o presidente Jair Messias Bolsonaro: golpe militar para que se o “capitão” já está no poder  Foto: Reprodução

Os militares sabem que, com o fim da ditadura — que, sim, um dia acaba, até por cansaço, ou, como no caso da brasileira, porque “era uma bagunça”, no dizer do presidente-general Ernesto Geisel —, os civis saem de “fininho” e deixam a “bomba”, a história negativa, para os generais, que se tornam “monstros”. Bolsonaro “pensa” que é militar. Para os militares, não é. Embora tenha sido capitão do Exército, é um civil posando de militar, até, pelo fato de ser presidente, de general. Os generais, escolados e adequadamente preparados, por certo não permitirão que um capitão de poucas luzes os leve para uma aventura golpista.

Pode-se perguntar: Bolsonaro quer usar o fantasma do golpe unicamente para pressionar o Congresso a aprovar tudo o que quer? Mesmo que esteja blefando, jogando politicamente, está cometendo um grave erro. Não se deve ameaçar com golpismo — nem em termos de blefe — para impor mais democracia e beneficiar o povão. Radicalizar a democracia é acatar a interdependência dos poderes e não permitir que um poder, como o Executivo, ameace o Legislativo e Judiciário.

Tudo indica que a aventura de Bolsonaro é solo. Não é compartilhada pelos militares. Basta verificar que em todas as manifestações contra a democracia e pró-regime discricionário, realizadas antes e agora, nenhum general, nem os que estão no governo, participou ou disse uma palavra a favor (o general Augusto Heleno, um militar respeitável, deu uma escorregada sobre o AI-5, quando o deputado federal Eduardo Bolsonaro propôs a sua readoção, mas não explicitou ser favorável a algum golpe). O motivo é simples: não querem a ditadura, e também não querem, depois, ser responsáveis pela “desgraceira” que uma ditadura se torna. Os chamados porões — locais onde presos políticos eram torturados e mortos — nem deveriam ser chamados de porões. Se as figuras que “trabalhavam” lá eram “funcionários públicos” — militares, delegados e agentes de polícia —, os locais eram também públicos. Mas os chamados (os homens dos) “porões”, que parecem personagens vivos, ganham mesmo autonomia e chegam a enfrentar o poder. O presidente Ernesto Geisel teve de demitir um ministro do Exército, Sylvio Frota, e outro general que não conseguia impedir a tortura e o assassinato em dependências militares.