O Geraldo Vandré radical é uma invenção de um tempo em que a estética submetia-se à política

07 novembro 2015 às 13h28

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Biografia sugere que o compositor e cantor tinha interesses variados e, apesar de certo engajamento, conseguiu ir além da música meramente política e datada
“Vandré — O Homem Que Disse Não” (Geração, 278 páginas), de Jorge Fernando dos Santos, explica muito bem, sem sociologismo e psicologismo baratos, a trajetória de um dos mais complexos e importantes artistas do país. A biografia é, ao seu modo, uma história cultural do país, embora não seja sua pretensão. Rastreia a vida de Geraldo Vandré, o autor das belíssimas canções “Disparada” e “Pra não dizer que não falei das flores”, do nascimento na Paraíba até agora. O artista de 80 anos vive em São Paulo e, segundo amigos ouvidos pelo biógrafo, continua compondo, embora não se mostre disposto a gravar músicas ou publicar poemas. A biografia tem outras virtudes: é muito bem escrita, com o máximo de clareza, e não é laudatória. Não é uma hagiografia. As virtudes e contradições do homem e do artista são expostas às vezes com precisão cirúrgica — sem excessos, pró ou contra.
José Vandregíselo, o pai, era comunista
Geraldo Vandré nasceu em 12 de setembro de 1935, em João Pessoa, capital da Paraíba. Seu pai, o otorrinolaringologista José Vandregíselo de Araújo Dias, era comunista. A mãe, Maria Marta Pedrosa Dias, costumava perguntar a Geraldo Pedrosa de Araújo Dias o que queria ser quando crescer. A resposta do menino não variava: “Cantor de rádio”. Começando a cantar em casa, já “mostra um temperamento forte e irritadiço”.
Há duas explicações para Geraldo Pedrosa de Araújo Dias ter se tornado Geraldo Vandré. O pai, numerólogo, teria dito ao filho que Geraldo + Vandré lhe traria força e sucesso. O artista garante que “a escolha foi apenas sua, para homenagear o pai”. Vandré advém de “Vandregíselo”.
Para tentar conter sua rebeldia, os pais o colocam no internato do Ginásio São José, em Nazaré da Mata, em Pernambuco. “Entre as aulas e as obrigações religiosas, o novo aluno se diverte ouvindo cantadores de feira, bandas de música e prestando atenção nos autores de cordel. Tal influência poderá ser notada mais tarde em suas composições, não apenas em algumas temáticas, mas principalmente no rigor das redondilhas e, em alguns casos, no deslocamento da sílaba tônica na pauta melódica.” O jornalista Vitor Nuzzi, autor da biografia “Geraldo Vandré — Uma Canção Interrompida”, sugere que lá o garoto deve ter conhecido grupos de maracatu.
Por ser louro e ter olhos verdes — era bonito —, os colegas o chamavam de “Vaca Loura”. A primeira apresentação artística de Geraldo Vandré ocorreu no internato. Aos 14 anos, se apresenta na Rádio Tabajara, em João Pessoa.
Em 1946, José Vandregíselo lança-se candidato a governador pelo PCB, mas desiste do pleito. Logo depois, acusado de ser comunista, é preso pela polícia. Perseguido em seu Estado — “na Paraíba não tem anistia, não”, escreveu o paraibano Ariano Suassuna —, o médico levou a família para o Rio de Janeiro. Há outra versão: a mãe, que tinha parentes no Rio, queria mudar-se do Estado de José Lins do Rego e pressionou o pai de Geraldo Vandré. Antes do Rio, moraram uns tempos em Juiz de Fora (MG).
Mesmo dedicado aos estudos, exigência da mãe, que o queria formado, Geraldo Vandré não larga a música. “Aos 16 anos, se inscreve como calouro no ‘Programa César de Alencar’”, na Rádio Nacional, no Rio.
“Geraldo se enche de coragem e ataca de cantor de bolero, interpretando ‘Sinceridad’, do nicaraguense Rafael Gastón Pérez. De terno e gravata, ele se apresenta com o nome artístico de Carlos Dias em homenagem ao ídolo Carlos Galhardo”, anota Jorge Fernando. É reprovado pelos jurados.
Em Copacabana, une-se ao pianista Paulo Borges, da Boate Tudo Azul, onde toca Tom Jobim. Nessa época, Geraldo Vandré e João Gilberto eram meros figurantes. O radialista e folclorista Waldemar Henrique apoia as aspirações de Carlos Dias.
Em 1955, Geraldo Vandré conhece o violonista e compositor Carlos Lyra e defende a canção “Menina” no festival da TV Rio e ganha o prêmio de melhor intérprete. “Ele começou a cantar música brasileira quando escolheu ‘Menina’ para o festival”, revela o parceiro.
Carlos Lyra, com quem compôs “Aruanda”, foi o primeiro parceiro musical de Geraldo Vandré. “Ele compõe a melodia e conta o enredo a Geraldo, que não tarda a escrever a letra.”
“Quem quiser encontrar o amor”, segunda parceria entre Carlos Lyra e Geraldo Vandré, se tornou tema musical de “Couro de Gato”, curta-metragem “que marcará a estreia do diretor Joaquim Pedro de Andrade”.
Ouvido por Jorge Fernando, Carlos Lyra explica o processo de criação de Geraldo Vandré: “Era curioso, porque eu fazendo a música mostrava a ele, que ficava rodando em volta da minha cadeira. Enquanto eu mostrava com o violão, anotava a letra que ele ia dizendo enquanto se inspirava. Geraldo era rápido, não levava pra casa. Fazia ali mesmo, sentado do meu lado. Ele era uma pessoa extremamente emotiva. Quando se emocionava, chorava copiosamente”.
A cantora e compositora Alaíde Costa (na foto com João Gilberto) corrobora o depoimento de Carlos Lyra: “Mostrei duas músicas de minha autoria e” Geraldo Vandré “foi logo fazendo as letras. Naquele tempo não havia os recursos de hoje e eu nem tinha gravador. Solfejava a melodia me acompanhando ao piano e Vandré escrevia os versos na hora. Outras vezes decorava a melodia e depois voltava com a letra pronta”. Da parceria, conta Jorge Fernando, “nasceram dois clássicos da MPB: ‘Canção do breve amor’ e ‘Canção do amor sem fim’”. A segunda saiu no LP “Joia moderna”, de 1961, com arranjos de Baden Powell.
Convidado por Carlos Lyra, Geraldo Vandré participa de um show de bossa-nova no Teatro Record, em São Paulo, ao lado de Alaíde Costa, Baden Powell, Elza Soares, Juca Chaves e da atriz Norma Bengell.
O governo democrático e desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek criou uma expectativa para o país. “O clima de prosperidade influenciará Geraldo na busca de uma canção participativa e, acima de tudo, nacional.”
“Arte não é panfleto”
O Centro Popular de Cultura (CPC), da UNE, chamou a atenção de Geraldo Vandré. Mas o artista afastou-se logo e deu uma explicação que talvez esteja na base do fato de se ter tornado uma esfinge: “Arte não é panfleto”. Numa entrevista, acrescentou: “Todas as minhas músicas são de amor. De amor particular por uma mulher ou de amor geral por todo um povo. Além do mais, não sou profissional da política”.
Em 1961, forma-se em Direito e se torna funcionário da Comissão Federal de Abastecimento, posteriormente Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab). No Juão Sebastião Bar, Geraldo Vandré, no lugar de cantar, recita poemas, impressionando Baden Powell. “Geraldo sempre falou bem, com aquela voz bonita. Ele recitava poemas de Fernando Pessoa e de Vinicius de Moraes. Depois ele surgiu com aqueles letras maravilhosas. Nós fizemos muitas parcerias”, contou o violonista. Os dois compuseram “Fim de tristeza”, “Nosso amor”, “Samba de mudar”, “Se a tristeza chegar” e “Rosa Flor”.
Em 1961, Geraldo Vandré lança seu primeiro disco profissional, com as músicas “Quem quiser encontrar o amor” (com Carlos Lyra) e “Sonho de amor e paz” (de Baden Powell e Vinicius de Moraes)”. Ele “ia de rádio em rádio, pedindo aos disc-jockeys para tocarem ‘Quem quiser encontrar o amor’”.
A TV Tupi contratou Geraldo Vandré, em 1961, “para participar de um programa produzido por Abelardo Figueiredo”. Em 1962, mais experiente, faz “sua primeira composição musical sem parceiro”, o baião “Fica mal com Deus”. “A mensagem solidária e justiceira se dá em redondilhas ora menores, ora maiores, com nítida influência da música, da poesia e do ambiente nordestinos”, assinala Jorge Fernando.
“Trago dentro de mim os sonhos do Nordeste. O Nordeste é fundamental, o maior repositório de cultura popular. No Norte é pelo menos metade de mim, não só as tristezas, mas também as alegrias”, disse Geraldo Vandré ao jornalista Lourenço Diaféria. O artista ouve Debussy, Moacir Santos, jazz, Frank Sinatra e Johnny Mathis. Lê Guimarães Rosa, Maksim Górki, Fernando Pessoa e Gonçalves Dias. Torce pelo Botafogo… da Paraíba.
Em 1962, Geraldo Vandré grava, com a cantora Ana Lúcia, a música “Samba em Prelúdio”, de Vinicius de Moraes. A música faz sucesso. O lado B do compacto simples contempla “Você que não vem”, do artista. Ele e João Gilberto eram habitués no Beco das Garrafas, onde iam para ouvir Lúcio Alves e Dick Farney.
O primeiro sucesso de Geraldo Vandré é “Fica mal com Deus”. O “acompanhamento”, sublinha Jorge Fernando, “exige poucos acordes”. Convivendo com vários artistas, “bebe de todas as fontes, mas prefere não formar opinião. (…) Ele se mantém fiel às suas raízes, procurando uma forma simples e direta para se expressar musicalmente”.
Surge o “artista engajado”
Embora não se avaliasse como panfletário, Geraldo Vandré acabou por se engajar — quem não o fazia era patrulhado ideologicamente. Ele teria abordado o compositor Roberto Menescal: “Temos de fazer música participante. Os militares estão prendendo, torturando. A música tem de servir para alertar o povo”. O artista paraibano queria fazer “música socialista”, segundo Menescal. “Diante da gravidade do momento político” — os militares, em abril de 1964, estavam no poder” —, “ele agora se mostra disposto a fazer do violão uma arma contra a ditadura militar”, registra Jorge Fernando.
No mês em que os militares consolidam-se no poder, abril, sai o LP “Geraldo Vandré”, o primeiro do artista. Há três parcerias de Baden Powell e Vinicius de Moraes (como “Samba em prelúdio”). A bela “Fica mal com Deus”, letra e música do artista, com arranjo de Moacir Santos, é o destaque. “As duas melodias têm poucos acordes, num estilo modal que vai caracterizar a obra autônoma do compositor”, escreve Jorge Fernando. Ele diz para Zuza Homem de Mello: “Em canção popular a música deve ser uma funcionária despudorada do texto”.
José Ramos Tinhorão, tido como o crítico mais ranzinza de parte da música popular patropi, notadamente da bossa-nova, escreve que Geraldo Vandré é “um dos primeiros da geração ligada à bossa-nova a escandalizar os jovens universitários da época com essa heresia da pesquisa de formas regionais brasileiras… Ao cantar ‘Canção nordestina’ pela primeira vez em um show no Colégio Mackenzie de São Paulo, a música que inaugurava o rompimento com os esquemas do movimento foi recebida com uma exclamação por parte de jovens estudantes filhos da alta classe média paulista, que revela o seu espanto: mas isso não é bossa-nova!”
O filme “A Hora e vez de Augusto Matraga”, de Roberto Santos, tem trilha musical feita por Geraldo Vandré. Ele atua no filme como figurante e co-produtor. “Ao fazer a pesquisa musical, Vandré descobre o universo da viola caipira no Sudeste e Centro-Oeste do país.” O tema de abertura, “Réquiem para Matraga” (https://www.youtube.com/watch?v=ojYIe7CMukQ), é um dos momentos ricos em que o compositor dialoga com Guimarães Rosa. “A gravação da trilha levou horas de estúdio devido ao perfeccionismo do compositor. Sem dominar a escrita musical, cada hora ele cantava as melodias de um jeito, sendo informado pelo maestro que acabara de compor outro tema”, relata Jorge Fernando. Teria sido influenciado pelo autor de “Sagarana”? “Se influência advier daí eu acho válido, pois é representativa da cultura popular”, admite o artista.
Militares prendem o artista em 1964
Em 1964, Geraldo Vandré é preso no vapor Raul Soares, em Santos. Os militares, mesmo antes dos festivais, já estão de olho no compositor. Os militares o interrogaram, mas não teria sido torturado.
Em 1965, o compositor e cantor lança “Hora de lutar”, o segundo LP. Gilberto Gil teria dito: “Quando ouvimos ‘Hora de lutar’, lá na Bahia, aquilo mudou a nossa cabeça”.
No 1º Festival Nacional da MPB, na TV Excelsior, Chico Buarque inscreve “Sonho de um carnaval”. Geraldo Vandré interpreta a música do filho de Sérgio Buarque de Holanda e “Hora de lutar”.
“Sonho de um carnaval”, mesmo vencendo a eliminatória, em março de 1965, fica em sexto na finalíssima. Cantada por Elis Regina, “Arrastão”, de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, levou a melhor.
“Hora de lutar” não foi classificada, mas aproximou Geraldo Vandré de Torquato Neto e Gilberto Gil. Os três são autores de “Rancho da rosa encarnada” (belíssima na voz do baiano). No 2º Festival Nacional da MPB da TV Excelsior, não é classificada, mas Geraldo Vandré, em parceria com Fernando Lona, sagra-se vitorioso com a marcha-rancho “Porta Estandarte”, defendida por Airto Moreira e pela cantora Valeniza Zagni da Silva (Tuca). As portas estão abertas para o artista.
Millôr Fernandes escreveu um show, “Mulher, esse super-homem”, com músicas de Geraldo Vandré, direção de Gianni Ratto e com os atores Carlos Zara, Lilian Lemmertz e Walmor Chagas.
Com Hermeto Paschoal, Airto Moreira, Heraldo do Monte e Théo de Barros, que formam o Quarteto Novo, Geraldo Vandré aproxima-se do jazz. Gravaram um disco em 1967. “A sonoridade do grupo é arrebatadora, quase ao nível do jazz, como pretendia Vandré, ele próprio admirador do gênero musical americano que havia influenciado vários bossa-novistas”, anota Jorge Fernando.
Como criada a canção “Disparada”
Parceria com Théo de Barros, o processo de criação de “Disparada”, uma das músicas mais celebradas de Geraldo Vandré, é um dos mais interessantes. Numa viagem de 400 quilômetros, entre Catanduva e São Paulo, o artista rascunhou a letra. “Ele ia pedindo, meio afobado, emocionado, até mandando… O Airto [Moreira], que ia no banco do carona, anotava a letra”, conta Hilton Acioli. “Ele [Vandré] me apresentou a letra bem longa e em duas ou três noites conseguimos fazer a composição”, relata o violonista Théo de Barros.
Com o subtítulo de “Moda para viola e laço”, Geraldo Vandré inscreve “Disparada” no 2º Festival da MPB da TV Record. Jair Rodrigues é o intérprete, aceito com relutância. “Além da força da canção e da interpretação contagiante de Jair Rodrigues [https://www.youtube.com/watch?v=82dRs2z6iQs], ‘Disparada’ também conta com o exotismo de uma queixada de burro, introduzida nos ensaios pelo percussionista Airto Moreira”, anota Jorge Fernando.
“A Banda”, interpretada por Chico Buarque e Nara Leão, ganha de “Disparada”. “Chico se recusa a ganhar o prêmio e ameaça devolvê-lo. Para evitar constrangimentos, em acordo com os jurados, a direção da emissora declara empate técnico e as duas composições dividem o primeiro lugar.” O autor de “Construção” avaliou que “‘Disparada’ era muito melhor que ‘A Banda’”. Curiosamente, o público ficou com “A Banda”.
Caetano Veloso, no livro “Verdade Tropical”, observa: “É curioso pensar que ‘A banda’, de Chico, e ‘Disparada’, de Vandré, empataram nesse concurso, quando se tem em mente que aquela canção de Chico, que o fez definitivamente popular, está muito aquém de sua grandeza como poeta e músico, enquanto ‘Disparada’ é muito superior ao que Vandré fez antes e depois”. Poderia se acrescentar que falta um livro que examine, técnica e esteticamente, a música e o processo criativo de Geraldo Vandré (na foto com Carlos Lyra). Em geral, o compositor é definido a partir unicamente de suas músicas mais conhecidas, como “Disparada” e “Caminhando”. O livro de Jorge Fernando mostra que sua música, apesar dos acordes simples, e seus interesses artísticos eram mais variados.
Na opinião do compositor, “Disparada” é mix do sertanejo com Guimarães Rosa. O refinamento do simples — algo assim. O Brasil discutia Chico Buarque e Geraldo Vandré. “Foi a única vez na vida que eu vi o Brasil discutir cultura”, diz Alberto Helena Jr., que era assessor de imprensa da TV Record.
Numa entrevista à revista “O Cruzeiro”, o artista explicou seu processo criativo: “Música, para mim, é trabalho artesanal, e eu a moldo à minha feição, trabalhando-a como o marceneiro trabalha a madeira. ‘Disparada’ foi feita intencionalmente moda de viola e quando pedi ao Théo para fazer a música, eu tinha em mente duas coisas: a fabulosa musicalidade desse moço, ao qual expliquei o espírito que eu pensava imprimir à letra, e que ele transformou na música espetacular da ‘Disparada’, e ao mesmo tempo provar que a moda de viola, trabalhada assim, não é pobre em harmonia” (há uma interpretação original de Hamilton de Hollanda, ás do Bandolim, que pode ser conferida no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=Ku4S5xOYovQ].
Em 12 de dezembro de 1968, Geraldo Vandré fez um show em Goiânia, onde apresentou um poema, com o título de “Disparada”. Trecho final: “Na mente tenho somente/uma fé e uma razão:/Libertar todo esse campo,/correndo todo sertão./Numa mão, laço e chicote,/na outra, os marcos do chão”.
Em 1966, com “O cavaleiro”, Geraldo Vandré fica em segundo lugar no 1º Festival Internacional da Canção (FIC) da TV Globo. Ganha “Saveiros”, de Dori Caymmi e Nelson Motta, interpretada por Nana Caymmi.
No 3º Festival da MPB da Record, em 1967, Geraldo Vandré perde com “Ventania — De como um homem perdeu seu cavalo e continuou andando”. É vaiado e não vai à final. “Ponteio”, de Capinam e Edu Lobo, ganha o festival.
Durante três meses, ele a
resenta o programa “Disparada” na TV Record. Ganhava mais do que Roberto Carlos (na foto Geraldo Vandré, Roberto Carlos e Chico Buarque).
No 2º FIC da TV Globo, sua música “De serra, de terra, de mar”, parceria com Hermeto Pascoal e Théo de Barros, não obtém sucesso. Ganha “Apareceu a Margarida”, de Gutemberg Guarabyra.
A “derrota vitoriosa” de “Caminhando”
No célebre 3º FIC da TV Globo, em setembro de 1968, com os jurados sob pressão — o regime militar havia endurecido —, “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, e cantada por Cynara e Cybele, vence. “Pra não dizer que não falei das flores”, ou “Caminhando”, de Geraldo Vandré, fica em segundo lugar. No palco, ele quase declama a música. “Poucos acordes e voz cansada, Vandré derrama sobre o auditório sua canção despojada, limpa, linda. Um refrão chama para o canto em conjunto, comunicação imediata, armada sobre dois únicos acordes, repetitivos… Há o desejo de luta”, escreve o maestro Júlio Medaglia.
O país quase entra em guerra civil — a guerra militar já havia sido declarada entre a direita e a esquerda — porque “Pra não dizer que não falei das flores” não ganhou o festival. A música se tornou uma espécie de hino alternativo do país, tanto para os engajados quanto para os não-engajados, e “Sabiá” recebeu vaias estrondosas.
Geraldo Vandré interferiu: “Gente, sabe o que eu acho?… Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque de Holanda merecem o nosso respeito. (…) A vida não se resume a festivais”. O público vaia e fala em “marmelada”. No “júri” do povo, “Caminhando” era a grande vitoriosa. Tom Jobim teve de sair pelos fundos, chorando.
Vaiado ao cantar “É proibido proibir”, Caetano Veloso protestou: “Mas então é isso que é juventude que diz que quer tomar o poder?… Vocês não estão entendendo nada”. Naquele momento, de fato, a estética estava submetida à política das esquerdas. O cantor e compositor baiano deixou Geraldo Vandré irritado.
Há indícios fortes de que a ditadura não queria que “Pra não dizer que não falei das flores” fosse vitoriosa. Mas, para o público, se tornou a campeã moral. Eliana Pitman interpretou à perfeição o clima: “O FIC é o único festival do mundo onde a música vencedora nunca é cantada pelo público”. “Sabiá” venceu até a fase internacional do festival.
Millôr Fernandes corroborou Medaglia e Pitman. “Pra não dizer que não falei das flores”, enfatiza o filósofo do humor, “é o hino nacional perfeito; nasceu no meio da luta, foi crescendo de baixo para cima, cantado, cada vez mais espontânea e emocionalmente, por maior número de pessoa. É a nossa Marselhesa”.
O poeta e jornalista Francisco de Assis Angelo afirma que, para compor “Caminhando”, Geraldo Vandré inspirou-se na Passeata dos 100 mil, um protesto contra a violência da ditadura civil-militar. “Inspirou-se no alto de um edifício da Cinelândia quando observava o movimento.”
Jorge Fernando aponta a versão do critério Tárik de Souza. Ele estava no bar Juão Sebastião Bar, em São Paulo, “quando Vandré chegou dizendo: ‘Acabei de fazer uma música para cantar sozinho. Não sei se vai dar pé’”.
Os pesquisadores Gilberto Cotrim e Jaime Rodrigues, no livro “Saber e Fazer História: História Geral e do Brasil”, sustentam que “Caminhando” é uma resposta tropical a “Revolution”, dos Beatles.
Celso Lungaretti, que participou da luta armada, disse que certa vez, vaiado e apedrejado por trabalhadores, em 1º de maio de 1968, o governador Roberto Abreu Sodré escondeu-se na Catedral da Sé. Recebeu ao apoio do amigo Geraldo Vandré, que foi chamado pelos radicais de “pelego do Sodré”.
Mal recebido num encontro de estudantes da USP, Geraldo Vandré recebe a proteção de Lungaretti. “Na mesa do bar, Vandré exibe o rascunho da letra de ‘Caminhando’ rabiscada em papel de pão. O jornalista garante que a canção foi escrita ‘para responder aos esquerdistas que o estavam hostilizando. Quis lhes dizer que continuava acreditando nos mesmos valores, que nada havia mudado’.”
O jornalista Leon Cakoff foi secretário de Geraldo Vandré. “O apartamento dele era um aparelho [da esquerda]… A gente tinha uma causa, derrubar a ditadura”, disse.
No fascículo da série “Nova História da Música Popular Brasileira”, o próprio Geraldo Vandré explica suas posições: “A expressão ‘artista revolucionário’ é pleonástica. Um artista só pode ser considerado artista quando sua arte é revolucionária. Para as pessoas que têm medo do termo ‘revolucionário’, a denominação pode ser ‘de vanguarda’. E de vanguarda e revolucionário é tudo aquilo que acrescenta algo de novo à vida, em qualquer estrutura, em qualquer sociedade, em qualquer tempo”.
Ao ser informado que “Caminhando” poderia ser proibida, o artista disse: “Minha canção diz tudo o que penso e por isto me responsabilizo por ela. Cantarei em qualquer lugar onde haja um violão, pois minha função é cantar. ‘Caminhando’ não é uma canção de guerra e os versos ‘nos quarteis se aprende a morrer pela Pátria e viver sem razão’ não se referem somente a militares, mas é um modo de me exprimir para explicar todo tipo de profissão que restringe as pessoas a um certo modo de vida… Aliás, muitos militares concordaram com os versos”. Contemporizador ou não, é relativamente convincente. O problema é que nenhum artista tem controle do que fazem com sua arte. Nas mãos da esquerda, e também devido ao excessivo temor dos militares, “Caminhando” se tornou, sim, uma canção de guerra. A música acabou proibida, mas em 15 dias vendeu 180 mil exemplares.
A música teria contribuído para a edição do AI-5? Há quem diga que sim. Mas é provável que as questões políticas do país, com a “ameaça” da esquerda, eram mais graves para os militares.
Ao ouvir “Baby”, de Caetano Veloso, Geraldo Vandré deu murro na mesa e gritou: “Isso é uma merda”. Caetano ficou irritado.
Dulce Maia, da organização guerrilheira VPR, contou que Geraldo Vandré “fazia shows para ajudar grupos que se opunham ao regime militar”.
Geraldo Azevedo frisa que “Vandré tem um trabalho fortíssimo e intuitivo, muito importante para a MPB, principalmente pós-bossa-nova”. O cronista Rubem Braga escreveu: “Geraldo tem talento e me parece um bom letrista, com alguns achados felizes e algumas coisas forçadas como esse ‘esperar não é saber’”.
O mundo começa a ser atraído pela arte do jovem paraibano. Tanto que sua música foi gravada, mais tarde, pelo cantor italiano Sergio Endrigo e cantada por Joan Baez.
Muito além do puramente engajado
A biografia escrita por Jorge Fernando demonstra que Geraldo Vandré é um cantor e compositor muito maior do que sua imagem de artista engajado. Sua música é mais variada e rica, apesar de simples, do que se costuma pensar. A multiplicidade de interesses — música, teatro, cinema — do artista merece uma revisão mais ampla tanto dos críticos musicais quanto dos historiadores da música. Não se deve circunscrever Geraldo Vandré unicamente à imagem do perseguido e de homem torturado pelo passado e autor de músicas de protesto. Ele é maior do que isto. É o que nos diz, com fatos e sem discursos, “Vandré — O Homem Que Disse Não”.
Geraldo Vandré, ótimo cantor e compositor, é um menestrel, mas não um guia intelectual (quase religioso) dos jovens por intermédio da música. “Pra não dizer que não falei das flores” permanece uma das músicas mais bonitas do cancioneiro universal, menos pelo engajamento e mais pela (delicadeza da) música mesmo. No fundo, é um hino quase hippie — não letárgico — e menos uma apologia à esquerda radical.
Não há um revival Geraldo Vandré porque o cantor e compositor não permite gravações. Se permitisse, sua estatura artística seria maior do que a ideia cristalizada do “maldito”, “louco”, “perseguido” e, depois, ‘integrado” pela ditadura.
Ao lado da biografia “Geraldo Vandré — Uma Canção Interrompida” (Scortecci), de Vitor Nuzzi, a biografia de Jorge Fernando é o início de um resgate espontâneo — quer dizer, não comercial — da figura de um dos mais controversos artistas brasileiros.
Editoras e biógrafos temiam, inicialmente, que o Geraldo Vandré advogado os acionasse na Justiça.
Leia o texto “Biografia tenta decifrar Geraldo Vandré, a esfinge da música brasileira. Ele continua compondo”: