O filósofo Antonio Paim, que estudou na União Soviética, era o papa do liberalismo no Brasil

02 maio 2021 às 00h02

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O estudioso, que havia se apaixonado por uma russa e pelo marxismo, morreu aos 94 anos. Deixou ao menos uma obra-prima
O Brasil é ingrato e, portanto, injusto com filósofos que não são companheiros de jornada da esquerda. Recentemente, numa edição especial sobre a história da Filosofia no Brasil, José Arthur Giannotti, Álvaro Vieira Pinto, José Guilherme Merquior e Roberto Romano não foram mencionados pela revista “Cult”. Mas Giannotti e Romano não são de esquerda? O primeiro passou a ser visto como uma espécie de “ideólogo” — o que, a rigor, nunca foi — do governo do socialdemocrata Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. Portanto, “merece” o ostracismo. Romano, depois de ter defendido Marilena Chaui, numa polêmica com José Guilherme Merquior, criticou desvios da esquerda, o que não agrada o establishment red. Ruy Fausto chegou a ser citado, mas, como crítico dos desmandos dos governos do PT e dos equívocos da “darling” Marilena Chaui, tão-somente en passant. Ah, Merquior era sociólogo. Na verdade, sua argumentação era filosófica, e densa. Faltou também incluir outro filósofo, Antonio Ferreira Paim. Por quê? Porque professava a defesa do liberalismo.

Baiano de Jacobina, Paim morreu na sexta-feira, 30, aos 94 anos. Seu clássico “A História das Ideias Filosóficas no Brasil” ganhou o Prêmio Jabuti de 1985. Ele publicou também “Problemática do Culturalismo”, “A Querela do Estatismo”, “O Liberalismo Contemporâneo”, “Marxismo e Descendência” e “História do Liberalismo Brasileiro”. Ao lado de José Guilherme Merquior, que viveu apenas 49 anos, Paim é o mais importante filósofo liberal patropi. Ele foi professor da UFRJ, da PUC-Rio, da Universidade Gama Filho, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, da Universidade Federal de Juiz de Fora e da Universidade Católica Portuguesa.
Em janeiro de 2019, Paim concedeu entrevista ao jornalista Guilherme Evelin, da revista “Época”. O filósofo relata que, mesmerizado pelo comunismo soviético e perseguido no Brasil — era filiado ao Partido Comunista (o Partidão) —, começou a escrever no jornal “Tribuna Popular”, de orientação comunista. Lá também escrevia o poeta Carlos Drummond de Andrade.
No governo do presidente Eurico Dutra (quiçá um bolsonarista antes do surgimento do fenômeno Jair Messias Bolsonaro), durante um confronto entre jornalistas e gráficos com a polícia, foi baleado e condenado a sete anos de prisão. “O anticomunismo brasileiro era de um primarismo brutal. Uma pessoa com o mínimo de caráter ou enfrenta aquele negócio, ou se avacalha. Aí, eu virei comuna mesmo.”
Com a pena revista, Paim ficou dois anos e dois meses preso e, ao deixar a cadeia, se tornou dirigente do Partido Comunista. O partido o enviou para estudar “teoria leninista” na União Soviética, em 1953. Tornou-se expert em “O Capital”, do filósofo e economista alemão Karl Marx. Era, nas suas palavras, um “bolchevique sem alma, sem amigo, sem família, sem p… nenhuma, integrante de uma casta devotada à causa”.
De repente, o amor adocicou o homem duro, forjado nas lutas dos reds. A russa Margarita Anatolia Rodavov, filha de uma prócer do Partido Comunista da União Soviética, conquistou seu coração. Concluído o curso, tendo se tornado um marxista ortodoxo, voltou para o Brasil para doutrinar os camaradas. Mas, apaixonado, voltou para o país de Púchkin e Tolstói e se casou com Margarita. “O amor foi um processo de humanização para mim.” A paixão o salvou do comunismo.

O Relatório Kruschev, de 1956, abalou as convicções de Paim, que estava na União Soviética quando foi divulgado. Os crimes de Stálin — que, a rigor, eram também de Nikita Kruschev, que se tornara santo ao demonizar o ex-chefe — foram expostos em sua crueza. “Fui eu que lutei para distribuir o relatório para o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Não dava para ficar no partido depois daquilo. Da minha geração, ninguém ficou”, assinala Paim. Pelo contrário, muitos ficaram e, até, alguns continuaram a defender Stálin — os que, mais tarde, romperam com o PCB e criaram o Partido Comunista do Brasil (PC do B). Com prefácio de Paim, o livro “O Retrato”, do jornalista e ex-comunista Osvaldo Peralva, é um relato da crise que o Relatório Kruschev provocou nas hostes comunistas brasileiras.
Margarita veio para o Brasil, chegou a traduzir Machado de Assis para o russo, e teve uma filha com Paim. Em 1962, com o anticomunismo grassando no Brasil — tramava-se já o golpe de direita, articulado por civis, as vivandeiras Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, e militares, como Golbery do Couto e Silva —, Margarita decide voltar para a União Soviética, levando a filha. O filósofo ficou “desarvorado”. Nunca mais viu Margarita e a filha. Mas chegou a manter contato com duas netas.
Aos poucos, Paim se libertou do comunismo e, em seguida, do marxismo. “Uma coisa é sair do Partido Comunista, outra é sair do marxismo”. Logo o filósofo, que era expert em Marx e marxismo.
Para escapar da camisa de força do marxismo, cuja linguagem se torna uma segunda pele, quase a primeira, Paim decidiu estudar outro filósofo alemão, Kant — por sinal, mais complexo e complicado do que o “pai” do comunismo. A “terapia kantiana” o ajudou a se libertar do marxismo. A expurgá-lo de vez de suas entranhas.
A transição para o liberalismo conservador foi “lenta, gradual e segura”, como a Abertura promovida pelo presidente Ernesto Geisel e pelo José de Paris dos trópicos — mais conhecido como Golbery do Couto e Silva, a eminência parda que ajudou a formular o golpe de 1964 e a “matar” a ditadura. Praticamente um filicídio.
Depois de flertar com a socialdemocracia, como um caminho do meio, Paim jogou-se nos braços do liberalismo, “em meados da década de 1970, depois de ter estudado como o liberalismo inglês se reformou, ao longo do século 19, para tornar suas instituições políticas mais representativas”.
Bolsonaro e a Igreja Católica

Dada sua experiência tanto filosófica quanto política, Paim não era dado a romantismos. Por isso sabia, mais do que qualquer um, que programas de partidos políticos no Brasil são fantasias. O programa do PDS, partido de direita, parecia programa de partido progressista de país nórdico. Há no Brasil uma falta de sintonia entre o que se coloca no papel e a prática do dia a dia. Pois, mesmo experimentado, Paim diz que leu o programa do PSL, o partido que ajudou a eleger Jair Messias Bolsonaro para presidente da República, “e achou ‘muito bom’”.
Na opinião de Paim, Bolsonaro “tem uma proposta liberal, sem dúvidas”. Frise-se que a entrevista é de 2019. Hoje, com o ministro da Economia, o liberal Paulo Guedes, emparedado pelo nacional-populismo de Bolsonaro, o que diria o filósofo? Como, a rigor, um presidente não liberal — estatista — pode fazer um governo liberal?
Mas Paim faz um alerta curioso, que merece expansão por parte de cientistas políticos e filósofos, como Marcos Nobre, presidente do Cebrap e professor da Unicamp. “O Brasil elegeu um governo militar-liberal. Tem mais milico lá do que no tempo do [presidente] Castello Branco. É um arranjo complicado. Você não pode dizer isso a priori, mas pode não dar certo. Depende muito da relação com o Congresso.” A independência mental de Paim, que produz seu ceticismo, sugere que o verdadeiro filósofo nunca é adesista. Porque, ao pensar pela própria cabeça, incomoda até as turbas aliadas. Sublinhe-se que pode ser um equívoco do filósofo falar em “governo militar-liberal”. Talvez seja mais preciso sugerir que se trata de um governo militarizado de matiz nacional-populista. Depois do populismo da esquerda, com os governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, o país tem um populismo de direita — e de caráter autoritário.
“Se não houver um cataclismo que mude sua base social, o Brasil jamais será um país desenvolvido”, disse à “Época” o filósofo. Faltou ampliar a ideia. Cataclismo de que tipo? Afinal, liberais aceitam mudanças originárias de cataclismas? Não preferem mudanças graduais, que, não forçando tanto a História, evitem o uso, por exemplo, da violência?
Paim afirma que a Inquisição impediu que o Brasil seguisse o ritmo da Revolução Industrial. “No Nordeste, havia um dito: ‘Não herdou, não roubou, emerdou’. Isso mostra que o ódio ao lucro e à riqueza é um troço arraigado, profundo, no Brasil. A moral social é muito ruim. O grande obstáculo que impede a sociedade liberal no Brasil é a Igreja Católica. A Igreja Católica é hoje uma espécie de Partido Comunista”, postula o filósofo. Não há aí um excesso de anticlericalismo oriundo de um certo marxismo que permanece entranhado num filósofo radicalmente liberal? O jornalista e doutor em História Jorge Caldeira está promovendo uma revisão da história do Brasil, com o uso de novos métodos, que reavalia os dados que deram origem a determinadas interpretações, e sua conclusão é que períodos considerados de atraso, como o colonial e a República Velho, foram, isto sim, de amplo progresso. A colônia tinha um mercado interno integrado e produtivo. Não se produzia unicamente para a economia exportadora.
A força do iliberalismo no Brasil

O cientista político Christian Lynch, professor da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, atesta o vitalidade dos trabalhos do filósofo: “Paim é autor de uma obra ciclópica e muito respeitável sobre a história da ideias filosóficas no Brasil, que é um clássico da área. A preocupação central em seus textos sobre o pensamento político brasileiro tem sido compreender as raízes do iliberalismo no Brasil, que ele acredita radicar numa incompreensão da questão da representação política”.
Ao procurá-lo para a entrevista, o repórter da “Época” o encontrou ouvindo música erudita. O que ouvirá Bolsonaro, além do goiano Amado Batista? Guilherme Evelin afirma que o filósofo era “bem-humorado, com uma conversa afiada e atualizado sobre tudo que ocorre com o governo Bolsonaro”.
Será que o entusiasmo com Bolsonaro continuava? Talvez sim, e unicamente pelo fato de o presidente ser de direita e combater a esquerda. Tanto que disse à “Época” que Bolsonaro pode “liquidar o PT”. É raro um liberal usar uma palavra como “liquidar” para falar de um adversário político. Combater e criticar, tudo bem. Mas, numa democracia, não se deve lutar para liquidar quem pensa diferente de nós. É preciso vencer o rival com a substância da argumentação ou, no caso eleitoral, pela arma do voto. Facetas totalitárias às vezes permanecem em filósofos liberais?
“O Brasil é o único país do mundo, além da França, onde o comunismo parece que não acabou”, postula Paim. Mas será mesmo que a maioria dos brasileiros atribui alguma importância ao comunismo? O tema é discutido mais por acadêmicos. A vitória de Bolsonaro, ainda que contra um PT ainda forte — e agora mais forte dados os equívocos do presidente no combate à pandemia —, talvez seja um indício de que o filósofo tenha apenas cunhado uma boutade.
Na entrevista à “Época”, Paim dá bordoadas verbais: “A USP é hostil ao pensamento brasileiro. A Capes está nas mãos dos comunas, dos marxistas. O MEC só dá passagem e bolsa para quem está na chave gramsciana. Se você não estudar Gramsci, você perde o emprego”. Para o filósofo, o italiano Antonio Gramsci é um filósofo “totalitário”.