O filme “O Poderoso Chefão 3” explica o empresário Joesley Batista e o presidente Michel Temer?
24 junho 2017 às 10h38
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Negócios ditos legais às vezes não são tão legais assim. Mas vale frisar que o chefão da JBS e o chefão da política não foram julgados nem condenados pela Justiça
O filme “O Poderoso Chefão” é tão citado que, de ficcional, se tornou realidade. O mafioso da vida real Bernardo Provenzano, capo da Cosa Nostra, da Sicília, quando foi preso, estava ouvindo músicas da película de Francis Ford Coppola. Baseado no romance de Mario Puzo, autor de uma literatura apenas razoável e de textura empolada, o filme resultou grande, não tanto por glamourizar a máfia e por torná-la palatável, e sim por apresentá-la de maneira compreensível. A empatia que o cinéfilo tem com Vito e Michael Corleone, pai e filho, gera entendimento, que não é o mesmo que identificação.
“O Poderoso Chefão 3” é a parte mais subestimada da trilogia. As duas primeiras, dada o tempo mais longínquo — com conexões entre a Sicília e os Estados Unidos —, são vistas como mais ficcionais e, portanto, mais artísticas. De fato, são mais belas, com histórias que beiram à qualidade da melhor literatura de um Alessandro Manzoni, de um Dino Buzzati e de um Giuseppe Tomasi di Lampedusa.
A parte 3 está mais próxima de todos nós, com suas jogadas financeiras e viscerais interações entre os mundos legal e ilegal. Criminosos são apresentados como tais, mas, ao se aproximarem da vida legal, convivendo com os homens honestos dos bancos e da Igreja Católica — que, além de uma religião, é um empreendimento empresarial (tem vários negócios) —, ganham nuance, às vezes aparentando serem homens de bem, sobretudo quando comparados com os “verdadeiros” homens de bem.
Os mocinhos, tanto da política quanto do mercado financeiro e da religião, são ambíguos. O astuto mafioso don Altobello diz a respeito de um religioso que cuida das finanças da Igreja Católica, ao apresentá-lo a Mike Corleone, que se trata de um “homem de dois mundos”. Quer dizer, opera com sapiência e desenvoltura no mundo da legalidade e no mundo da ilegalidade. O que o limpa são suas “respeitáveis” atividades legais e o fato de pertencer a uma instituição milenar. Seria uma referência ao arcebispo americano Paul Marcinkus (1922-2006), que geriu o Banco do Vaticano. O mais provável é que se trata de um compósito de algumas personalidades da instituição financeira da Igreja.
O que surpreende Michael Corleone, um realista absoluto, é que, quanto mais tenta limpar seus negócios — porque seus filhos, principalmente Tony, não se interessam pela máfia; Mary é mais sensível, se não aos negócios em si, ao que representa o pai —, mais passa a compreender que o mundo legal, o das altas finanças e dos poderes políticos e religiosos, não é tão legal e tão limpo. Passa a imagem de limpo, o que garante sua legalidade e respeitabilidade, mas atua à beira da ilegalidade. A diferença é que a violência é diferente da violência da máfia. Há mais sutileza e menos destrutibilidade (física, sobretudo). Negócios em alta escala, na casa dos milhões e bilhões, nunca são inteiramente limpos — talvez seja uma síntese do filme e da, digamos, realidade.
Numa entrevista à revista “Época”, massificada pelo “Jornal Nacional” e pela Globo News, que praticamente criaram uma cadeia de comunicação, o empresário Joesley Batista, o poderoso chefão (e não se trata de compará-lo aos mafiosos do filme) da JBS, afirma que o presidente da República, Michel Temer, lidera uma organização criminosa, que prefere denominar de orcrim, como fazem procuradores de justiça. A rigor, não está provado que Michel Temer lidera uma organização criminosa. Mas como pode alguém lidar e negociar com um líder de uma organização pró-crime e, mesmo assim, se apresentar como limpo? Michael Corleone queria se limpar ao negociar com os “empresários” da Igreja Católica, afinal, existe algo mais asséptico, moralmente, do que um religioso da venerável Santa Igreja? Por certo, não há, ou, se há, são poucos. Entretanto, para mantê-la limpa, executivos da Igreja rasteiram o quase imbatível em esperteza Michael Corleone.
Joesley Batista apresenta-se como “puro” entre “impuros”. Mas isto é possível? A realidade sugere que não. O país está tratando Michel Temer e seus homens como se fossem mafiosos, sobretudo depois da entrevista do empresário da JBS. Mas o corruptor é menos corrupto por quê? Por que denunciou e permitiu que o Estado pusesse as mãos nos corruptos? Trata-se de uma justiça de mão única. Até ministro do Supremo Tribunal Federal admite que, para pegar corruptos, é preciso contar com a delação premiada de um dos corruptos, como Lucio Funaro, ou de um dos corruptores, como Joesley Batista.
A vida real é mais complicada do que a vida ficcional. Michael Corleone queria se limpar — se é que de fato queria —, mas sabia que, dada sua história de agressões, assassinatos e negócios escusos, era, acima de tudo, um criminoso da pesada. Portanto, sem possibilidade de redenção. A redenção que buscava era para os filhos, Mary e Tony, assim como seu pai, Vito, havia buscado para ele. Na política e no mundo empresarial do Brasil, as nuances são mais vívidas, já que ninguém se considera bandido. Joesley Batista sustenta que Michel Temer lidera uma orcrim e aliados do presidente chamam o empresário de “bandido”. Porém, devido a pertencerem ao mundo da legalidade, os dois não se consideram criminosos e refutam, de modo veemente, as “críticas”. Frise-se que ambos não foram julgados e, portanto, não foram condenados pela Justiça.
Joesley Batista parece uma figura brejeira, quase um doutor Pangloss. Mas é só aparência. Ninguém vence no mercado empresarial, tanto faz se o brasileiro ou o americano, sendo ingênuo. Ele é um realista absoluto, como Michael Corleone, e sabe jogar como poucos. O que lhe falta não é cultura de mercado, do qual sabe tudo. O que lhe falta é cultura geral, é saber quem é Machado de Assis, Guiomar Novais, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Villa-Lobos, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Gilberto Freyre, Celso Furtado, Raymundo Faoro e Cesar Lattes. Michel Temer, depois de sua militância intensa no Congresso Nacional, sabe, de cátedra, como funciona Brasília. Ao contrário da ex-presidente Dilma Rousseff, uma neófita em política do real (leitora de John Updike e Philip Roth, parece não ter entendido os matizes realistas de sua prosa), sabe quais são as peças que devem ser manejadas para se governar sem atropelos. Tanto que, se não fosse a denúncia recente de Joesley Batista, era bem provável que conseguisse aprovar até mesmo a Reforma da Previdência.
Afinal, Joesley Batista e Michel Temer são mafiosos como Vito e Michael Corleone? Não são. As ações da máfia, a ficcional e a verdadeira, são mais brutais e incontroláveis. Mas, de fato, a política e os negócios empresariais mantêm um pé na ilegalidade. E, o que pode deixar tristes os que acreditam na existência de pureza na vida, talvez não seja possível ser muito diferente. A criação de determinadas regras pode gestar um país menos, por assim dizer, “sujo”, mas um mundo empresarial inteiramente “limpo”, asséptico, talvez seja uma impossibilidade.
Resta concluir que “O Poderoso Chefão 3” ilumina a realidade brasileira atual (não deixa de ser curioso que Joesley Batista incrimina um italiano, Guido Mantega, quiçá para tentar salvar um aliado mais graúdo). Vale rever o filme, que é tão bom quando “O Poderoso Chefão 1” e “O Poderoso Chefão 2”. Só é menos valorizado, porque, sendo tão real, seria menos artístico. Talvez desagrade a tese de que a ruína da máfia começa quando tenta se limpar.