O Exorcista, o filme, provocou um impacto imenso na década de 1970. Pessoas vomitavam e desmaiavam
15 janeiro 2017 às 00h02
COMPARTILHAR
A película de William Friedkin baseia-se no romance homônimo do escritor americano William Peter Blatty, que morreu na quinta-feira, aos 89 anos, de câncer
Contar o que aconteceu, com sentimento e frescor da época, é sempre complicado. Mas vamos lá. O filme “O Exorcista”, de William Friedkin, entrou em cartaz no final de 1973. Na cidade onde eu morava, Porangatu, no Norte de Goiás, o filme deve ter sido exibido em 1974, quando eu tinha 13 anos. Dada a idade, tinha mais oportunidade de ver filmes de faroeste ou, como se dizia, de kung fu. Saíamos dos dois cinemas, o do Pinheiro (sua sirene até hoje ressoa no meu cérebro) e o do José de Paiva, com os dedos engatilhados e com os pés coçando para dar alguns golpes de caratê. Quando “O Exorcista” começou a ser exibido, com filas imensas, só pensava em vê-lo. A censura era rígida: 18 anos. Meu pai, Raul de França Belém, decidiu ver o filme e levou Eliane Belém, minha irmã, de 15 anos. Criaram caso, por causa da idade, mas ele se responsabilizou e Eliane pôde ver o filme. (Curiosamente, a atriz protagonista do filme, a americana Linda Blair, nasceu no mesmo ano em que nasceu Eliane, 1959.)
Hoje, com o predomínio de imagens excessivas, que a internet potencializou, não se tem ideia de como um filme poderia chocar e assustar. Na época, há mais de 40 anos, o filme causou comoção. Meu pai e Eliane contaram horrores, ficariam impressionados. As pessoas gritavam no cinema (ataques histéricos e desmaios foram registrados em todo o mundo). Meus amigos e colegas de escola contaram-me — alguns de minha idade, portanto não sei como viram o filme — que ficaram espantados e, sobretudo, assustados. Um deles relatou que a irmã vomitara. Outro me disse que não havia dormido, apavorado pelo que viu na película. Eu fiquei tão empolgado, mais do que assustado, com o que me contaram, possivelmente aumentando a história — e histórias são realmente boas e atraentes porque os indivíduos acrescentam um dedo de prosa, uma pitada de ficção —, que saí escondido, à noite, e me apresentei à porta do cinema, o de José de Paiva, como se fosse adulto. Magérrimo, de estatura mediana, não convencia ninguém, é claro. Mesmo assim, tentei enganar o vendedor de ingressos, a quem disse que estava comprando para outra pessoa, e depois o porteiro, que, não convencido, proibiu minha entrada, o que me deixou angustiado. Eu não queria outra coisa, senão ver o filme. Olhei a fila imensa, pensando que poderia encontrar algum adulto para me ajudar a entrar. Encontrei conhecidos, mas nenhum quis se responsabilizar, talvez porque meu pai tinha fama de bravo.
Fiquei nas proximidades do cinema, sapeando, como se dizia. Descobri que vários adolescentes haviam sido barrados e aí minha infelicidade diminuiu. Mas voltei para casa pensando unicamente em ver o filme, o que, na época, não foi possível. Nas escolas e nas ruas, lembro-me de que se falava do filme de maneira intensa, como se fala hoje de filmes de Bergman (se não estiver esquecido) e Woody Allen. “O Exorcista” era “o” tema — não havia outro.
Então, um amigo, Zezinho, me disse que havia um porteiro subornável. Voltei lá, ao lado de outros garotos, à procura do jovem que, por alguns trocados, nos abriria a porta do paraíso ou, no caso, do inferno. A história era falsa, o porteiro era incorruptível. Não entramos, mas o que descobrimos, conversando com os que viram o filme, é que sabíamos tudo, ou quase, que havia na fita. Éramos experts na história contada por William Peter Blatty, o autor do romance “O Exorcista”.
O problema é que, embora enojados com as histórias relatadas — minha irmã Eliane era uma das narradoras assustadiças (preciso perguntar-lhe alguma coisa a respeito) —, estávamos, os adolescentes, doidos para vê-las na tela, não queríamos mais ouvir as conversas. Acho que, ao menos durante um mês, o assunto deixou-me mesmerizado. O fato é que não vi o filme, mas, depois de ouvir a história de pelo menos umas 30 pessoas, cada uma narrando ao seu modo, acrescentando detalhes, às vezes assustadores, acabei me tornando um expert no assunto. Aos amigos incautos, aos quais decidira contar vantagem, cheguei a informá-los de que, de alguma maneira, havia visto o filme. Não havia, óbvio. Porém, como contava a história de maneira detalhada, pelos menos alguns dos colegas de escola acreditaram na lorota. O que percebi é que, no fundo, todos sabiam das minúcias do filme.
A memória resgata que, naquele tempo, eu só pensava numa coisa: me tornar adulto o mais rápido possível para… ver filmes como “O Exorcista” e, admito, algum filme erótico.
Tempos depois, morando em Goiânia, fui a uma locadora — não me lembro se a Opus, a Star Vídeo ou a Caras (uma pena que tenha fechado as portas) — e, empolgado pela memória do passado, quiçá mais pela interdição em si, vi o filme. Permanecia assustador? Não mais. O tempo era outro, o das imagens excessivas. Poucas coisas nos assustam mais, mesmo o que devia nos deixar apavorados, com ampla sensação de estranhamento. Há algo típico de um tempo, uma sensibilidade, que escapa a outro tempo, e que só pode ser descrito pela imaginação.
“O Exorcista” é um bom filme? Não é o tipo de película que excita meus neurônios. Mas não é um filme, digamos, dos piores. É bem-feito, conta uma história com começo, meio e fim. A direção de William Fridkin é segura, até precisa, e o elenco é de qualidade. Ellen Burstyn, Max com Sydow, Lee J. Cobb e Linda Blair atuam bem, de maneira convincente. Nós, os espectadores, estamos ao lado deles, viajando e sofrendo juntos. Penso que, em 1973, a identificação era ainda mais estreita.
Quedo-me a pensar: o que, em 1973 e 1974, chamava tanto a atenção? O que me movia a querer ver o filme? Acredito que, menino, queria ver o que todos estavam vendo e comentando. Numa cidade provinciana, na qual a força da televisão ainda não era tão intensa — na Copa do Mundo de Futebol de 1970, não tínhamos televisão em casa —, um filme envolvendo forças demoníacas, misteriosas, chamava mesmo a atenção dos indivíduos, mobilizava-os. O fato de que era uma garota a pessoa possuída pela “entidade do mal” comovia-nos muito mais, era como se houvesse uma identificação entre ela e nós. Quem sabe, e é provável que pensávamos sobre isso, ou talvez fôssemos afetados inconscientemente, poderia acontecer o mesmo com nós. Quando fez o filme, Linda Blair tinha 14 anos e chegou a ser ameaçada por grupos religiosos fanáticos. Teria se tornado uma “encarnação do mal” e teve de ser protegida por seguranças durante vários meses. Do ponto de vista de hoje, parece ridículo, aliás, é ridículo. Na época, dado o imenso sucesso do filme, não era. Irmanar realidade e fantasia é comum.
“O Exorcista” arrecadou 441 milhões de dólares e, em termos de filme de terror, só perde para o, admito, excelente “O Sexto Sentido”, de 1999. Mas, em termos de impactos sociais, de mobilização das pessoas, nada se compara a “O Exorcista”.
William Peter Blatty, escritor e cineasta americano, que ficou famoso por ter escrito “O Exorcista” — a fama decorre mais do filme, do qual foi roteirista (ganhou o Oscar) —, morreu na quinta-feira, 12, aos 89 anos, nos Estados Unidos. Tinha câncer (mieloma múltiplo). Não era nem Henry James nem William Faulkner. Mas, no campo que escolheu para ser escritor, não era dos piores. Escrevia bem e suas histórias tinham nexo. Ele é autor dos romances “A Nova Configuração”, de 1978, e “O Espírito do Mal”, de 1983. O romance “O Exorcista”, best seller mundial, foi lançado em 1971.