“As Veias Abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano: livro renegado e ruim de um autor devotado mais à  mudança social do que à interpretação  rigorosa dos fatos históricos
“As Veias Abertas da América Latina”, de Eduardo Galeano: livro renegado e
ruim de um autor devotado mais à
mudança social do que à interpretação
rigorosa dos fatos históricos

Na década de 1980, os estudantes eram divididos assim: revolucionários (PC do B), reformistas (PCB e PT), reacionários (que não pertenciam à esquerda) e alienados.

Alienados eram aqueles que preferiam estudar a participar das reuniões das tendências estudantis e dos partidos que as dirigiam. Nessa categoria, vista como maus olhos — só menos mal vista do que os agentes infiltrados —, no curso de História da Católica, a Universidade Católica de Goiás (UCG) — estavam, entre outros, Antônio Luiz de Souza (brilhante, hoje professor da PUC e do WR), Sérgio Murilo (aluno questionador, hoje advogado atuante) e eu. Nós três éramos vistos como “sem ideologia”, porque, denunciavam, líamos “tudo”, e não tínhamos interesse algum pelas “cartilhas” de Stálin e Enver Hoxha — então guias geniais do PC do B. Mas não deixamos de ler, é claro, dois manuais do sub-do-sub: “As Veias Abertas da América Latina”, do uruguaio Eduardo Galeano, e “Ge­nocídio Americano — A Guerra do Paraguai”, de Júlio José Chiavenato.

Na época, o historiador Francisco Doratioto ainda não havia publicado o excelente livro “Maldita Guerra — Nova história da Guerra do Paraguai”. Mesmo assim, suspeitávamos do livro de Chiavenato, dados seu primarismo e, sobretudo, sensacionalismo.

Mas o livro que primeiro nos encantou e, depois, nos desencantou foi mesmo “Veias Abertas”. Porque era uma interpretação geral da América Latina, com “amplo” painel — “integrador” — da história da região e sua inserção na história universal. Lembro-me de, um dia, sentado na calçada da Faculdade de História — o nome era outro, mas é assim que a chamo —, quando o padre Luís Palacín, historiador espanhol que eu admirava e com quem discutia a literatura de Liev Tolstói, passou, sempre apressado, com suas “pernaltas” e magreza franciscana (era jesuíta), me viu com “Veias Abertas” e perguntou: “Está lendo?”. “Estou”, respondi. “Que pena!”, lamentou. No dia seguinte, Palacín, com sua discrição habitual, me sugeriu a leitura de “História da América Latina”, do historiador argentino Tulio Halperin Donghi. Li. De fato, é muito melhor. É um estudo rigoroso, não é um livro de combate direto às ditaduras latino-americanas e seus apoiadores externos — leia-se Estados Unidos. Na década de 1980, para a esquerda, não importava tanto a seriedade dos estudos, e sim o engajamento político-ideológico de seus autores. Se fossem de esquerda, poderiam cometer erros, falsear dados, esquematizar a análise, e, mesmo assim, seriam lidos, usados no dia a dia e “perdoados”.

Aos poucos, percebemos que “Veias Abertas” não se tratava de um livro de interpretação da história da América Latina — que parte da esquerda depreciava, chamando de “Latrina” —, e sim de um livro de combate, um manual revolucionário disfarçado de livro sério. Um roteiro para a ação e um “ataque” ao imperialismo.

Mais tarde, o próprio Eduardo Galeano — que morreu na semana passada — renegou o livro, sugerindo que era “esquemático” e “tedioso” e que, na época, não tinha a formação intelectual adequada para formular uma análise tão abrangente, que demandava pesquisas sérias.

Pesquisas que não havia feito e, por isso, substituía-as por opiniões radicais. Como dissemos, trata-se de um livro escrito para ser uma guia de orientação da esquerda. Uma arma de combate intelectual e um manual para a ação política contra governos pró-americanos. Por isso o livro, datado, “morreu”. Não é como “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, “Formação do Brasil Con­temporâneo”, de Caio Prado Júnior, e “Os Donos do Poder”, de Raymundo Faoro — obras sólidas, que podem ser questionadas mas não renegadas.

O que Eduardo Galeano tem de melhor é sua prosa sobre futebol e assuntos tão leves quanto.

Risíveis são acadêmicos que passaram a vida toda acreditando nas ideias de Eduardo Galeano tentando justificá-lo, quando o próprio jornalista e escritor não queria nem aceitava mais fazê-lo. Eles deveriam fazer o mesmo que o uruguaio: admitir a baixa qualidade da obra. Galeano disse que, se tivesse de lê-la novamente, desmaiaria de tédio. A esquerda já havia sido enganada antes pelo “filósofo” francês Louis Althusser, que também teve de desmascarar-se para que os esquerdistas passassem a vê-lo como empulhador.