O espanhol Luis Palacín, maior historiador de Goiás, ganha magistral ensaio de Lena Castello Branco
03 fevereiro 2020 às 13h21
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A pesquisa rigorosa, com base em documentos, e a interpretação precisa dos dados: eis dois legados do historiador que, espanhol, se tornou brasileiro
Saiu um livro excelente, “Memória de Nossa Gente”, organizado pelo escritor e médico Hélio Moreira, mas infelizmente não está nas livrarias. Trata-se de uma edição especial, com capa dura, patrocinada pela Unicred Centro Brasileira. Ao receber o livro, pensei: “Mais um livro maçante de homenagens”. Qual nada! Os ensaios – vá lá, biográficos – são de alta qualidade. A obra contém perfis de Anis Rassi (por Hélio Moreira), Joffre Marcondes de Rezende (Hélio Moreira), Nelly Alves de Almeida (Ângela Jungmann), Eli Brasiliense (Edival Lourenço), Rosarita Fleury (Edival Lourenço), Belkiss Spencière (Heitor Rosa), Francisco Ferreira dos Santos Azevedo (Heitor Rosa), Hugo de Carvalho Ramos (Lêda Selma), José J. Veiga (Lêda Selma e um texto de Luiz de Aquino), Cora Coralina (Lena Castello Branco), Luis Palacín, Anatole Ramos (Luiz de Aquino). Os textos são muito bons, e nem mesmo a emoção, decorrente da amizade, impede alguns dos autores de escreverem textos de relativa densidade. Dada a escassez de trabalhos sobre o Professor Ferreira (seu “Dicionário Analógico da Língua Portuguesa” era amplamente consultado por Sérgio Buarque de Holanda e não sai da mesa de Chico Buarque de Holanda) e sobre o historiador Luis Palacín, os ensaios são muito bem-vindos. Os textos de Heitor Rosa e Lena Castello Branco, de tão bem feitos, deveriam servir de base para uma pesquisa mais alentada – deles ou de outros pesquisadores. O doutor em economia Luís Estevam, da PUC, autor de um dos livros mais importantes da história econômica de Goiás, chegou a elaborar um projeto para biografar Palacín.
Espanhol de nascimento, Luis Palacín (1927-1998) é o maior historiador goiano e um dos maiores do Brasil. Lena Castello Branco, doutora em história pela USP e dona de um texto de escritora, no ensaio “Padre Luis Palacín — O Amigo e o Historiador”, de 22 páginas, com vasta iconografia, conta a história do pesquisador infatigável — rigorosa e amorosamente. Antes de expor o conteúdo do seu material, publico algumas lembranças de Palacín. Na década de 1980, eu era aluno do curso de História da Universidade Católica de Goiás e Palacín foi meu professor. Lembro-me da esquerda comunista e da esquerda petista tratá-lo como “franquista”, porque era espanhol, e “reacionário” (o preconceito maior talvez fosse porque era religioso, jesuíta). Como era pouco dado a “rifar” pessoas por critérios ideológicos, assistia a aulas do mestre com prazer, fazendo um esforço redobrado para entender o que falava – num misto de espanhol e português que se aproximava, por assim dizer, do portunhol. Quando percebeu que eu era mesmo interessado em estudar, começou a me sugerir de livros de história e literatura. O historiador Nasr Chaul, meu professor na mesma época, conta que o tcheco Franz Kafka, o francês Marcel Proust e o irlandês James Joyce eram seus escritores preferidos. A mim, Palácin falava mais dos russos, e apaixonadamente. Uma vez, ao término de um comentário sobre a invasão napoleônica na Rússia, em 1812, Palacín perguntou-me, com um sorriso rápido no rosto: “Quer saber mais sobre o assunto?” Sem que eu dissesse nada, acrescentou: “Leia ‘Guerra e Paz’, o portentoso e belo romance de [Liev] Tolstói”. Li e comentei com ele, que ficava surpreso com meus múltiplos interesses e leituras. “Apreciou?”, indagou, atento, com aquele olhar de raposa esperta. “Muito, sobretudo da parte da paz”, disse-lhe. Ele ficou curioso, pois queria saber exatamente o que eu queria dizer com a “parte da paz”. Depois, recomendou-me Fiódor Dostoiévski, que, segundo ele, dizia alguma coisa sobre as profundezas da alma russa e, mesmo, à alma do homem em geral.
Além das aulas bem dadas — embora seu forte fossem as pesquisas e os livros —, recordo-me daquela figura magra, alta, com camisas (de mangas curtas) para fora das calças — as roupas eram sempre espartanas —, e sempre rápida. Parecia não gostar de perder tempo (era praticamente impossível vê-lo jogando conversa fora nos corredores) e dava pouca atenção à preguiça dos alunos. “Tímido, irônico e dotado de fino senso de humor”, afirma Lena Castello Branco, com precisão milimétrica. A mim parecia que tinha feições irônicas quando não queria tê-las. Parecia, sabe-se lá, uma máscara. O riso era mínimo, contrito.
Sérgio Buarque de Holanda e Palacín
Lena Castello Branco, que prefere Palacin, sem acento, começa seu texto apresentando a defesa da defesa de livre-docência de Palacín, com a presença na mesa de Sérgio Buarque de Holanda. Presença intimidadora, dado o profundo conhecimento (e renome) de Sérgio Buarque da Holanda. Palacín expôs sua pesquisa e debateu com os integrantes da banca e seu trabalho “Goiás: 1722-1822. Estrutura e Conjuntura de uma Capitania de Minas” foi aprovado com distinção. “A tese do padre Luis Palacín marcou o início de uma nova era da historiografia goiana, calcada em estudos teóricos e pesquisas sistemáticas, com a valorização da documentação e dos acertos locais.” A segunda edição saiu com o título de “O Século do Ouro em Goiás”.
Palacín formou-se em Filosofia, na Universidade Jesuítica de Comillas, em História, nas universidades de Salamanca e de Santiago de Compostela, e em Teologia, em Comillas. Era doutor pela Universidade Complutense de Madri, na área de história moderna. O padre chegou ao Brasil em 1958, aos 31 anos. Radicou-se no Rio de Janeiro e, dois anos depois, foi enviado para Goiânia. “Os jesuítas haviam assumido a direção da Universidade Católica de Goiás.” Depois, em meados da década de 1960, ele se tornou professor, por concurso, da Universidade Federal de Goiás. Lá, como único doutor na História, foi fundamental para que os mestres tivessem acesso à moderna historiografia europeia e outras. Lena Castello Branco conta que, por intercessão de Palacín, conheceu as obras de Fernando Braudel, Marc Bloch e Lucien Febvre.
No lugar da opinião pura e simples e do exame rápido de alguns documentos, nem sempre confrontados, Palacín patrocinou, com ele mesmo dando o exemplo, ampla investigação de documentos, escarafunchando arquivos, além de consultar, sem preconceito, os trabalhos dos historiadores locais e textos dos viajantes e cronistas estrangeiros. Os documentos contêm uma verdade factual, mas precisam ser interpretados, o que não significa necessariamente forçá-los, e sim dotá-los, por assim dizer, de vida, de alma. O próprio documento em si é uma interpretação, por mais que seja factual, pode-se dizer. Lena Castello Branco afiança que, com Palacín, iniciou-se “no interesse pela pesquisa documental”.
O ensaio de Lena Castello Branco incorpora um delicioso depoimento de Nasr Chaul, que, de aluno, se tornou colega de Palacín. O historiador conta que era campeão de xadrez, era expert em baralho, jogava tênis, “praticava natação” e “adorava arte e cultura”. Seu vinho preferido era o Vega-Sicilia, “o mais prestigioso e lendário vinho espanhol”. Tomou pouco desse vinho, possivelmente por não ter recursos e, mais, por ser “franciscano” mesmo. Lena Castello Branco anota que, “mais do que tudo”, o doutor em história gostava mesmo era de “uma boa pescaria”. Uma vez, pescando em companhia dos professores Juarez Costa Barbosa e Sérgio Paulo Moreyra (meu querido professor no curso de Jornalismo da UFG) — dois mestres de excelência rara —, Palacín fisgou um grande peixe. Ao puxá-lo para a canoa, pediu a ajuda de Juarez, que, descuidado, deixou o “belo barbado” escapar. Em geral fleumático, o pescador irritou-se: “Foi de propósito, non?”
Palacín dirigia mal seu Fusca, às vezes assustando os caronas, com os quais era gentil e solícito.
O doutor em História pela USP Nasr Chaul diz que aprendeu com o mestre “a decodificar os documentos e buscar na ausência o discurso preciso”. O discípulo tem razão quando nota “que a maior contribuição da Espanha para Goiás havia sido o próprio Luis Palacín Gómez”. De fato, foi a melhor “importação”. O verdadeiro vinho Veja-Sicilia.
Nasr Chaul observa que, como era um estudante contínuo, “questionava o marxismo com propriedade” e reconhecia a importância do marxista húngaro György Lukács para a análise da cultura e das ideias. “Amava pesquisar, adorava escrever e não tinha nenhuma aptidão para administrar burocracias.” Palacín dizia que, “para um historiador, o que importa é escrever sempre, mesmo que não existam leitores ou que suas obras sejam referências para um pequeno grupo de aficionados e colegas de profissão. É uma contingência necessária”. Ele poderia ter dito que, além de escrever sempre, o historiador deve escrever bem, evitando jargões e a prosa amarrada ou grandiloquente. A prosa de Palacín era de escritor consumado — às vezes, aqui e ali, dura (talvez pelo uso amplo mais de substantivos e verbos do que de adjetivos e advérbios), mas elegante, sem ser pomposa, e sólida, no sentido de precisa (Lena Castello Branco e Nasr Chaul escrevem como escritores que, de fato, são).
Ao ser homenageado na UFG, um mini-auditório ganhou seu nome, Palacín disse: “Vieira dizia que ,quando a gente fala com a razão, temos uma grande chance de errar, quando falamos com o coração, aí é que erramos mesmo”. A missão do professor era ensinar, mas não reprovar. “Reprovar para que? A vida é quem reprova”, disse Palacín aos seus pares.
O historiador Luis Palacín também era poeta
Luis Palacín, padre espanhol, consagrou-se como principal historiador de Goiás e um dos maiores do país. Mas também era um poeta admirado pelo historiador Nasr Chaul, compositor do primeiro time, e pelo poeta e jornalista Helverton Baiano.
Palacín era um poeta refinado, o que não quer dizer experimentalista; antes, um poeta de matiz clássico.
Do sempre e do instante
Luis Palacín
Toda vida, Senhor, vive um instante
de essencial e terrível claridade,
para sempre nos vemos sós e errantes
num deserto sem fim de inanidade.
Por baixo do tumulto de viver
do desejo, do amor e da violência,
por baixo do gozar e do sofrer,
descobrimos então a grande ausência.
Descalços pelo tempo, qual mendigos,
gastas nossas moedas de alegria,
quando em torno de nós se
apaga o dia,
e nos deixam os pássaros antigos,
do silêncio do nada surge imensa
tudo enchendo, Senhor, vossa presença.
Texto publicado no Jornal Opção na edição de 2 a 8 de junho de 2013.