Mas ele contesta a informação de que denunciou a prosadora por “desvio” político, mas biografia e Edgar Morin garantem que, apesar da memória intencionalmente fraca, Semprún dedurou Duras

Jorge Semprún (à esquerda), escritor espanhol, ataca Santiago Carillo e La Pasionária. Marguerite Duras (à direita): desvio político de direita no Partido Comunista francês
Jorge Semprún (à esquerda), escritor espanhol, ataca Santiago Carillo e La Pasionária. Marguerite Duras (à direita): desvio político de direita no Partido Comunista francês

A biografia “Lealdade e Traição — Jorge Semprún” (sem tradução no Brasil), da alemã Franziska Augstein, provocou frisson na Espanha. Porque envolve um de seus maiores escritores vivos, o ícone Jorge Semprún, de 87 anos. Nuria Azancot, do jornal “El Mundo”, diz que a obra desnuda o autor de “Autobiografia de Federico Sánchez” e “O Morto Certo”. Apesar da admiração pela literatura e pelo homem, Augstein não deixa de relatar os fatos, alguns desagradáveis para o escritor.

Entrevistado por “El Mundo”, Semprún não ataca a biografia, mas mostra-se desconfortável com o resultado da pesquisa. Diz que não é fácil ler um livro sobre si, para o qual colaborou como principal fonte, mas no qual não se sente inteiramente reconhecido. Como vem contando sua vida, em memórias e romances (que são memórias, quase sempre ou sempre), o autor afirma que os relatos de Augstein não combinam com o que vem escrevendo. Conta que foi entrevistado durante três anos, mas, como o resultado saiu “aborrecido” e “pretensioso”, a jornalista alemã decidiu usar o material como base para uma biografia. Isto foi positivo, pois o que seria apenas a versão de Semprún deu origem, depois de uma longa pesquisa, na qual pôde confrontar versões, em um livro nuançado, polêmico e, naturalmente, mais verdadeiro.

Um dos pontos controversos apurados por Augstein não agradou Semprún. Em 1951, integrante do Partido Comunista Francês (Semprún é espanhol, mas às vezes é citado como escritor francês), o escritor teria denunciado, por “desviacionismo” (desvio político, certamente à direita), a escritora francesa Marguerite Duras e seu marido, Robert Antelme, e Dionys Mascolo (“amante de Duras e pai de seu filho”). Duras, Antelme e Mascolo sustentaram que foram “delatados” por Semprún. Laure Adler pesquisou o assunto, que permanecia adormecido havia décadas, e confirmou a denúncia. Ao “El Mundo”, Semprún foi peremptório: “Não [denunciou]. Estou cansado de repetir. Documentos do próprio Partido Comunista demonstram minha inocência. Não há um só informe oficial que me implique. Nem sequer o movimento que pretende reabilitá-los como bons comunistas se atreve a mencionar-me”. Semprún diz que, se o livro o “acusa”, está “equivocado”. Outros intelectuais, como Edgar Morin, que pertenciam à mesma célula comunista, a 722 de Paris, “creem que, sim, [Semprún] foi o responsável” pela “denúncia”.

A biógrafa ficou surpresa menos com a história de Semprún-Duras do que com o fato de que o escritor lamenta mais sua “expulsão do Partido Comunista Espanhol, nos anos 60, do que com seu cativeiro no campo de concentração de Buchenwald”, onde, como “empregado” numa espécie de setor de relações humanas, pôde salvar a vida de aliados comunistas, mas à custa da vida de outros inocentes. “Um dia, quando a SS exigiu 3 mil trabalhadores para as piores tarefas, Semprun tirou os nomes dos camaradas e os substituiu por outros prisioneiros, desconhecidos.”

A história de proteção aos comunistas, sacrificando outras pessoas, seria o motivo de Semprún ter evitado discutir, durante anos, seu encarceramento em Buchenwald? Sua explicação: “As lembranças de Buchenwald foram, durante muito tempo, muito dolorosas, mas também havia experiências positivas, como a solidariedade e a fraternidade. Ademais, eu sabia porque estava ali, por ter sido membro da Resistência, e fazia coisas úteis, havia uma compensação moral diariamente. Em troca, quando fui expulso do PCE, veio abaixo um projeto de vida que havia começado na minha adolescência. A expulsão produziu um sofrimento moral insuportável, para o qual não havia compensação possível. Depois de tantos anos, tive que reconstruir minha vida inteira, a partir de outras ilusões. E esse desengano, esse deixar de ser, provocou em mim um efeito maior do que a tortura física da Gestapo”.

Ao sair de Buchenwald, Semprún contou sua história a um amigo, mas depois calou-se. Durante quase 20 anos, o escritor recusou-se a tocar no assunto. Em seguida, admitiu que a experiência no campo de concentração foi “a mais interessante de” sua vida. Ele acredita que sobreviveu porque um funcionário anônimo, no lugar de inscrevê-lo como estudante, o citou como “estoquista. Aos estudantes e aos intelectuais” os nazistas “davam os piores trabalhos, mortais, enquanto que um estoquista, um operário especializado, sempre era necessário”. Em 1992, visitou o campo e desatou a falar sobre sua história.

O fracasso do comunismo (cuja símbolo foi a queda do Muro de Berlim, em 1989) provocou comoção em vários esquerdistas, alguns deles sinceros, como José Sobrinho, um dos mais dedicados líderes do Partido Comunista Brasileiro em Goiás. “El Mundo” pergunta: “Continua pensando que é possível transformar o mundo de forma revolucionária?” Semprún posiciona-se: “Acredito que não. É imprescindível reformar o mundo, mas a revolução é impossível”. O escritor afirma que, além de não haver mais líderes emblemáticos, como Lênin e Stálin, capazes de liderar uma revolução, “a experiência do século passado, com os horrores do stalinismo, pesa demasiado. Só subsiste a ilusão de que a classe operária pode transformar o mundo, sem capitular ante o capitalismo, mas por meio de reformas contínuas, não de revoluções”.

Em 1992, depois da extinção da União Soviética (a debacle se deu em 1991), Semprún escreveu: “A política da esquerda provocou desastres sucessivos. O preço de seus erros foi pago pelos mais fracos”. No livro, não ataca a esquerda com a mesma veemência. O escritor sustenta que as greves operárias só triunfam contra governos socialistas.

Semprún diz que “a necessidade de transformar a sociedade segue viva. O fracasso do leninismo não faz do sistema capitalista uma sociedade justa”. O escritor sugere que é preciso “manter viva a ilusão” de que é possível “reformar a sociedade”. O mercado, afirma, não é Deus e, se ficar inteiramente livre, será nefasto para a sociedade. A esquerda, ainda que não deva condenar o mercado, deve ficar atenta à necessidade de certa regulação.

Com o codinome de Federico Sánchez, Semprún viveu clandestino em Madri, sob o governo do generalíssimo Franco. “Dessa época, conservo reflexos condicionados totalmente absurdos dos quais rio intimamente. Quando vou a um restaurante com amigos, chego antes e observo o entorno para comprovar se não estou sendo seguido. Às vezes caminho pela rua e, de repente, dou um pequeno salto e me volto para comprovar que não estão me seguindo. Claro que morro de rir, mas são reflexos dos anos de vida clandestina.”

Na década de 1960, por defender o consenso e uma transição pacífica para a democracia, não para o socialismo ortodoxo, e ao postular que o Partido Comunista Espanhol deveria se afastar da obediência canina aos soviéticos, Semprún foi expulso. O escritor e Fernando Claudín (autor de livros instigantes sobre o movimento comunista internacional) defendiam que, com a morte de Franco, a Espanha teria de passar por uma transição pacífica. Pouco depois, Santiago Carrilho assumiu suas teses.

Afastado do partido, ao qual havia “sacrificado” parte de sua vida, Semprún dedicou-se à literatura. As memórias foram “levemente disfarçadas” tanto nos romances quanto nos ensaios. “A literatura me facilitou a ruptura política e a ruptura política, a literária. (…) Quando me expulsaram do PCE, a política me conduziu à literatura. Sim, fui de uma a outra como um homem aberto, sem dor.”

Pode-se falar que seus livros são uma espécie de vingança contra velhos adversários comunistas? O componente “vingança” é um fato, mas o que Semprún conta sobre alguns personalidades históricas é comprovável em livros, digamos, mais isentos. O líder comunista espanhol Santiago Carrillo é apresentado como “paranoico” e um “pragmático da pior espécie”, obcecado pelo poder. Chegou a ser chamado de “Stálin espanhol”. Dolores Ibarruri, a célebre la Pasionaria, é citada como de uma “vulgaridade intelectual insuportável”. Ficou famosa por uma frase, “!No pasarás!”, dita durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), do que por qualquer outra ideia brilhante e independente.

A biografia de Augstein nota a importância da arte na prosa de Semprún. Ao “El Mundo”, o escritor explica o motivo: “Nasci em Madri, a 255 metros do Museu do Prado [um dos mais importantes da Europa], ao qual visitava toda semana, levado pelo meu pai. Nos anos de clandestinidade, foi meu refúgio permanente. Podia falar de Patinir, de Vermeer, de Artemisia Gentileschi. O Prado foi um suporte essencial”.

Ministro da Cultura, entre 1988 e 1991, Semprún — que foi roteirista de Alain Resnais e Costa-Gravas — avalia que o cinema espanhol vive um “momento apaixonante” muito por conta de seu incentivo. Os novos diretores são “talentosos”. Surpreendentemente, afirma que a era de Pedro Almodóvar “acabou”, mas infelizmente não explica sua interpretação, nem arrola os novos diretores “talentosos”. O escritor afirma que há “prosadores esplêndidos”, mas prefere não citá-los, alegando que “todos sabem de quem falo” (Semprun ignora que, por estar na internet, o jornal “El Mundo” não é mais apenas um jornal espanhol).

Numa resenha para “El Mundo”, Juan Avilés assegura que a biografia de Semprún — um homem, digamos assim, de muitas vidas e, naturalmente, de muitas contradições — é “apaixonante” e que pode ser lida numa sentada, apesar de suas 454 páginas. Mas a vida de Semprún é tão complexa, e por certo há muito mais a revelar, que Avilés observa, possivelmente com razão, que Augstein não esgotou o tema. O crítico nota que, além de contar a vida do (ex)comunista que se tornou escritor, a autora faz uma radiografia da história espanhola do século 20. Talvez seja possível acrescentar que, como Semprún é espanhol e, de algo modo, francês, a jornalista alemã discute mais do que a história espanhola. Ela certamente descortina a história europeia.

O interessante é que, apesar da biografia escrita pela alemã Augstein desagradá-lo, pelo menos em algumas partes, as constrangedoras, Semprún não ataca a autora. Admite que há passagens inconvenientes e que ele apresentou outras versões, mas não as contesta de modo enfático, o que sugere que sua verdade precisa de acréscimos, e é isto que, aparentemente, Augstein faz — amplia aquilo que o biografado entende como verdade, tornando-a mais “verdade”, mais verdadeira, ao incorporar outros depoimentos, outras interpretações. No fundo, Semprún parece “satisfeito” de que passagens complicadas de sua vida foram expostas com sua colaboração, e ainda que não possa endossá-las, não as contradiz com demasiada ênfase. Sua verdade agora está mais completa. Se tornou mais verdade.