O equívoco do arquiteto Lucio Costa que, aliando-se à ditadura, patrocinou a demolição do Palácio Monroe
01 novembro 2024 às 16h22
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Há um excelente livro de história — e histórias — passeando pelas livrarias do país. Trata-se de “Tempos Modernos — O Rio Metrópole, a Exposição de 1922 e a Incrível História do Palácio Que Desapareceu Durante a Ditadura Militar” (Litteris Editora, 294 páginas), do pesquisador, poeta e escritor Carlos Eduardo Drummond.
As histórias valem por si, mas uma das delícias da obra é a maneira como Carlos Eduardo Drummond as conta. Há aquele sabor do cronista atento tanto aos fatos quanto à forma de narrá-los.
Não vou comentar a maioria das exposições universais, como a de Paris. Concentro-me em duas, a de Saint Louis, de 1904, e a brasileira, de 1922, e na saga pela construção e demolição do Palácio Monroe. Mas o leitor não deve perdê-las. Recomendo também a leitura dos capítulos que historiam a mudança arquitetônica-urbanística do Rio de Janeiro no início do século 20. É uma narrativa de uma cidade em mutação, às vezes para o bem, mas nem sempre.
As fotografias do livro são em geral de Augusto Malta, que documentou o Rio do começo do século 20. Carlos Eduardo Drummond deveria escrever uma biografia deste importante e quase onipresente repórter-fotográfico.
O Brasil participou da Exposição Universal de Saint Louis, nos Estados Unidos, em 1904. Um engenheiro militar, o coronel Francisco Marcelino de Souza Aguiar (1855-1935), chefiou a Comissão de Representantes do Brasil na feira americana. Indicado pelo ministro Lauro Müller, ele foi nomeado pelo presidente Rodrigues Alves. O talentoso construtor foi, mais tarde, prefeito do Rio.
Competente, o engenheiro Souza Aguiar construiu um palácio, para sediar o pavilhão brasileiro, com 41 metros de altura, “todo em cores claras, em estilo que imitava o da Renascença”. Os vitrais eram do pintor Henrique Cavallero. Dois leões esculpidos em mármore eram arte de Vaccari Sonino.
O pavilhão brasileiro encantou o público, sobretudo por causa do palácio. Americanos e outros povos também apreciaram o café do país de Machado de Assis.
“Não havia um edifício mais bonito no local da exposição do que aquele erguido pelo Brasil”, registrou “The Book of the Fair: St. Louis 1904”. Santos Dumont, o pai da aviação, e o presidente dos Estados Unidos, Theodore Roosevelt “prestigiaram o festejado Pavilhão nacional”.
A construção era tão bela que o Júri Oficial decidiu conceder ao Pavilhão a Medalha de Ouro do Grande Prêmio de Arquitetura. A beleza da construção, além do tempo recorde em que foi construído, provou a excelência da arquitetura e da engenharia do Brasil.
Terminada a exposição, Souza Aguiar deu início ao desmonte da estrutura metálica para despachá-la para o Rio de Janeiro, num navio. O prédio seria reconstruído com material permanente.
Apesar de inexistência de recursos tecnológicos avançados, como os de hoje, o Palácio foi reconstruído em oito meses. Um feito extraordinário para a época.
Com a reforma urbana do Rio, operada pelo prefeito Pereira Passos, a cidade era vista como a Paris dos Trópicos. Além de avenidas vistosas, como a Avenida Central, o Rio ganhou o Theatro Nacional, novo prédio para a Biblioteca Nacional e, claro, o Palácio.
Os salões do Palácio “seriam destinados a exposições e eventos oficiais do governo” patropi. O edifício sediou a 3ª Conferência Pan-Americana, em julho de 1906. Mestres da diplomacia, o Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco “defendiam um alinhamento com os Estados Unidos”. Quincas o Belo era embaixador no país de Henry James.
O Palácio precisava de um nome. Pois, acatando pedido de Joaquim Nabuco, o Barão do Rio Branco anunciou que o Pavilhão Permanente de Exposições ganharia o nome de Palácio Monroe. Era uma homenagem ao presidente americano James Monroe (1758-1831), conhecido pela frase lendária: “A América para os americanos”.
A poeta francesa e a Cidade Maravilhosa
Corte para a história de como o Rio se tornou conhecido como Cidade Maravilhosa. A poeta francesa Jane Catulle Mendès pode até não ter criado o termo, mas o consolidou. Ela esteve no Rio em 1911. Na volta para Paris, publicou versos no livro “La Ville Merveilleuse”.
A reforma empreendida pelo prefeito Pereira Passos encantava os cariocas, os demais brasileiros e os estrangeiros.
Apesar da fama de Jane Catulle Mendès, pode ter sido Coelho Neto o primeiro, ou um dos primeiros, a chamar o Rio de Cidade Maravilhosa, em 1908, numa crônica para o jornal “A Notícia”.
Carlos Eduardo Drummond assinala que reportagens “noticiavam que o próprio recinto da Exposição de 1908, com sua vasta beleza arquitetônica, era chamado de Cidade Maravilhosa”. Mais do que a francesa, os pais da expressão eram mesmo brasileiros.
Ditadura de Vargas fecha o Palácio Monroe
O ano de 1922 ficou na história do país por causa da Semana de Arte Moderna, na qual pontificaram os artistas plásticos Anita Malfatti e Di Cavalcanti, a pianista Guiomar Novaes, o compositor Heitor Villa-Lobos e os escritores, Mário de Andrade, Oswald de Andrade e, entre outros, Graça Aranha. Mas naquele ano se comemorou o centenário da Independência do país e, por isso, o governo decidiu organizar a Exposição Internacional do Centenário da Independência-Rio de Janeiro de 1922.
Sede da Câmara dos Deputados, o Palácio Monroe, a Pérola de Saint Louis, seria usado na Exposição. Convocados para novas construções para a Exposição, arquitetos optaram pelo estilo neocolonial. O prefeito Carlos Sampaio, um empreendedor, era o responsável pelas obras.
A Exposição contou com expositores de vários países, como México, Argentina, Estados Unidos, Inglaterra, Japão, Portugal, Itália, Suécia, Dinamarca, França. Cada um deles contava com seu pavilhão. Os edifícios eram, no geral, belos. Alguns foram desmontados, mas outros continuaram.
Em dez meses, a Exposição recebeu 3,6 milhões de visitantes. O número de expositores era grande: 10.131. Tanto do Brasil quanto dos países convidados.
O Palácio Monroe, adulto aos 18 anos, continuava firme, admirado pela população do Rio e visitantes. Uma espécie de “escultura” em formato de edifício pré-Oscar Niemeyer.
A partir de 1925, e durante 12 anos, o Palácio Monroe passou a abrigar o Senado.
No Estado Novo, o presidente-ditador Getúlio Vargas fechou o Palácio Monroe, símbolo da democracia, como sede do Senado.
A queda de Getúlio Vargas, em 1945, devolveu o Palácio Monroe à democracia, agora como sede do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). No mesmo ano, o edifício voltou a ser sede do Senado.
Lucio Costa prega a demolição do Palácio Monroe
Influenciados pelo russo Gregori Warchavchik e pelo franco-suíco Le Corbusier, arquitetos modernistas, como Lucio Costa, começaram a vociferar contra o Palácio Monroe. “O antes intocado Monroe passou a ser visto como uma aberração arquitetônica. E, especialmente em função de servir ao Senado Federal, um prédio com espaço insuficiente”.
Comprando o discurso de Lucio Costa e outros, o jornal “O Globo” começou uma campanha contra o Palácio Monroe, chamando-o de “trambolho”. A primeira reportagem contra a obra clássica saiu no jornal da família Marinho em 10 de janeiro de 1961.
Em 1961, ainda na democracia, o Palácio Monroe passou a sediar o Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa).
Carlos Eduardo Drummond diz que “dois fatores seriam determinantes para iniciar uma campanha pela demolição do Monroe: a ideia de construir um arranha-céu no lugar de prédios históricos da Avenida Rio Branco e o avanço nas obras do Metrô da Cinelândia”.
Apesar da ferocidade e da fama dos detratores, como Lucio Costa, o Palácio Monroe “ganhou” aliados na sua luta para persistir embelezando o Rio.
O poderoso Lucio Costa, o derruba-edifícios, disse, num parecer, que o Palácio Monroe havia perdido “toda e qualquer significação e deve ser demolido em benefício do desafogo urbano”.
Criando uma fake news, Lucio Costa acrescentou que o projeto da Biblioteca Nacional “não era de Souza Aguiar, e sim de um francês” (Hector Pepin).
Endossando a diatribe de Lucio Costa, a museóloga Lygia Martins Costa, chefe da Seção de Arte do Iphan, “argumentou que ‘o conjunto nunca teve unidade’”.
O arquiteto Paulo Santos ousou discordar do monstro sagrado Lucio Costa e defendeu, num alentado relatório, a permanência do Palácio Monroe e do edifício da Biblioteca Nacional. Ele percebia “valor nos estilos de cada época… concebia o ideal de conciliar arquitetura moderna e tradicional”. (Ainda bem que gregos e italianos não contrataram Lucio Costa para reformatar suas arquiteturas. O Coliseu? Lixo! Vamos remover o que resta. O Parthenon? Vamos acabar com tudo, até com as fotografias.)
Ante o exposto por Paulo Santos, de modo consequente, “o Conselho Consultivo do Iphan votou pelo tombamento de todo o conjunto”.
Mas Lucio Costa, por ser um mestre da arquitetura, continuou jogando pesado. “Como um jurado com sangue nos olhos, Lucio Costa parece querer condenar tudo que Souza Aguiar fizera, especialmente o Palácio Monroe, em que ele despejava todo seu desprezo”, denuncia Carlos Eduardo Drummond.
As palavras demolidoras de Lucio Costa intimidaram Paulo Santos, que, junto com o Iphan, recuou.
Membro do conselho consultivo, talvez com a intenção de salvar o Palácio Monroe, Afonso Arinos recomendou que se fizesse um novo estudo.
Em 1974, por causa das obras do metrô, o Palácio Monroe voltou à baila. “A marcha do progresso precisava prosseguir nos subterrâneos da cidade e o enorme Palácio estava no caminho. Para não condenar o prédio, os técnicos projetaram um traçado que contornaria o terreno, bem em frente à entrada da Avenida Rio Branco. Mas havia uma incômoda condição, a imponente escadaria teria de ser desmontada”, anota Carlos Eduardo Drummond.
Os detratores do Palácio Monroe voltaram a insistir com a tese de que precisava ser demolido. Uniram-se a Lucio Costa o arquiteto Maurício Roberto, o historiador José Honório Rodrigues e o deputado Mário Saladini. “O Globo” continuou na linha de frente dos jornais combatentes. (Em editorial, “O Globo” pediu desculpas por ter apoiado o golpe de Estado de 1964 e a ditadura civil-militar. Não teria chegado a hora de fazer o mesmo em relação à demolição do Palácio Monroe?)
Ditadura de Geisel articulou derrubada de edifício
Carlos Eduardo Drummond diz que os ataques ao Palácio Monroe na imprensa não eram espontâneos. “Forças autoritárias do governo militar agiram nas sombras para intensificar a campanha pela demolição.”
“Na ata de uma reunião secreta realizada em 9 de julho de 1974, na qual o ministro da Justiça, Armando Falcão, despachou com o presidente Ernesto Geisel, ficou registrado: ‘Item 5. — Palácio Monroe — Dentro do pensamento do sr. presidente, com referência ao destino do ‘Palácio Monroe’, no Rio, diligenciei junto à direção de ‘O Globo’, ‘Jornal do Brasil’, ‘Manchete’ e outros órgãos de divulgação, a fim de criar, no espírito da opinião pública, clima favorável à demolição do velho imóvel. Várias notas já foram publicadas, no rumo do pensamento governamental’”. (O documento está na página 247.)
A turma da ditadura, com seus aliados civis, inclusive jornalistas, não aceitando que o Palácio Monroe era uma “construção que representa um poema”, continuou a fuzilaria. O edifício persistiu sendo chamado de “trambolho”, “inútil”, “arquitetura pobre”, “estorvante”, “monumento ao equívoco”, “falso palácio”.
Ante o rebanho de civis e militares, ergueu-se a voz do diretor da Divisão do Patrimônio Histórico e Artístico do Iphan, professor Trajano Quinhões. “Seria um desses heróis que lutariam até o fim pela preservação do Monroe”, registra Carlos Eduardo Drummond.
Filho de Souza Aguiar, o general Raphael de Souza Aguiar, destoando da turma de Ernesto Geisel, também defendeu a permanência do Palácio Monroe. Na lista dos defensores do edifício estavam o senador Danton Jobim, o diretor do Serviço do Patrimônio da União (SPU), José Alfredo Nunes de Azevedo, e o chefe da Divisão Técnica Especializada do Clube de Engenharia, arquiteto Durval Lobo. Este fez uma defesa contundente da preservação do prédio.
O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) elaborou um estudo “defendendo não só a preservação como a restauração do prédio, a fim de corrigir as mutilações que tanto alimentavam a lista de argumentos em prol de sua demolição”.
Se quisesse, o Iphan poderia ter mudado de posição, mas não o fez. Pelo contrário, encaminhou o Processo Iphan nº 860-T-72 ao presidente da República, Ernesto Geisel, insistindo na devastação do edifício. O general-ditador seguiu o parecer do Iphan, endossado por Lucio Costa, contra o tombamento e pela demolição do Palácio Monroe.
Carlos Eduardo Drummond informa que, “em 9 de outubro de 1975, o ministro-chefe da Casa Civil, Golbery do Couto e Silva, informava ao ministro da Fazenda, Mario Henrique Simonsen, recomendações do presidente Geisel para ‘demolição do prédio e subsequente transformação da área em logradouro público’”.
Delicadeza poética não interessa à barbárie do concreto
O Palácio Monroe começou a ser demolido em janeiro de 1976, “exatos 71 anos e oito meses depois de inaugurada sua primeira versão como Pavilhão Oficial do Brasil na Exposição de Saint Louis”, nos Estados Unidos.
“O impiedoso trabalho dos operários duraria até julho daquele ano [1976]. Como um cadáver sem dono entregue aos seus algozes, o Monroe teve antes seu ‘corpo’ mutilado e saqueado, até virar poeira e escombros por completo”, lamenta, por si e pelo país, Carlos Eduardo Drummond.
As etapas da demolição foram documentadas pelo artista, gravador e fotógrafo Rossini Perez. O Palácio Monroe aparece nos filmes “Roberto Carlos em Ritmo de Aventura” e “Interlúdio, de Alfred Hitchcock, e na abertura da novela “Selva de Pedra”, da TV Globo.
Antes da demolição, numa carta ao Iphan, publicada em “O Globo”, o artista plástico Roberto Golzi Salvia escreveu o que cada carioca (e fluminense) certamente gostaria de ter dito: “Antes de demolirem o Monroe, iluminem-no em uma bela noite escura e estrelada. Depois, se tiverem coragem, destruam-no; mas, antes, admirem-no ao longe”.
Entretanto, os demolidores da história não apreciam a delicadeza da, digamos, poesia.
(O Palácio Monroe foi construído primeiramente nos Estados Unidos, pelo governo brasileiro, sob a batuta de um patropi, Souza Aguiar. Depois, foi reconstruído no Brasil. O que terá incomodado tanto o nacionalista Ernesto Geisel? O nome Monroe? O fato de um pedacinho dos Estados Unidos estar incrustado em território brasileiro? Não se sabe. O que se sabe é que, em 27 de junho de 1975, o governo do general-presidente assinou um acordo nuclear secreto com a Alemanha, então Ocidental. A gestão ditatorial deixou de lado a parceira com os Estados Unidos do presidente Gerald Ford.)
No final do livro, Carlos Eduardo Drummond conta o que sobrou, em termos de edifícios, da guerra pelo “progresso”. O autor deveria escrever uma guia do que restou (a base já está pronta), com textos e fotografias. Dará um opúsculo supimpa.
A pesquisa de Carlos Eduardo Drummond resulta num desses livros de excelente qualidade, mas que, por falta de cobertura da imprensa, às vezes passa despercebido dos leitores. Sua pesquisa, esboçada por meio de um texto primoroso — com a leveza dos grandes cronistas, como Rubem Braga e Paulo Mendes Campos —, é uma delícia. Ao lado de Marcio Nolasco, ele é autor de “Caetano, Uma Biografia — A Vida de Caetano Veloso, o Mais Doce Bárbaro dos Trópicos” (Seoman, 544 páginas). É também compositor de sambas de enredo e servidor público federal da Cultura.
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