Se o resto do continente se arrasta a um ritmo de tartaruga na vacinação, os números mostram um Reino Unido na vanguarda mundial da campanha de imunização

Halley Margon

De Barcelona

Na mesma semana em que o ex-presidente do governo espanhol José Maria Aznar (1996-2004) concedia uma entrevista a Jordi Évole, uma das estrelas do jornalismo espanhol, o ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair (1997-2007) falava ao jornal “El País”. Se há algo em comum entre os dois políticos, o liberal Aznar e o trabalhista ou socialdemocrata Blair, é o de terem servido como fiéis escudeiros de George W. Bush na farsa montada pelos americanos para atacar e ocupar o Iraque.

Jordi Évole e José María Aznar: o político da Espanha é um entrevistado que não reconhece erros e mentiras | Foto: Reprodução

Jordi Évole manteve por mais de uma década um programa de enorme sucesso na Espanha e na América Latina, “Salvados”, no qual entrevistou, entre outros, o papa Francisco, o ex-presidente do Uruguai José Mujica (2010-2015) e o presidente venezuelano Nicolás Maduro. Em 2016, a bordo do barco Astral (veleiro de luxo doado por um milionário italiano), “colocou diante dos olhos do espectador a realidade da imigração e os problemas de gerenciamento” da crise migratória que desafiavam (e seguem desafiando) a União Europeia. O jornalista embarcou no navio “para conhecer em primeira mão o drama da imigração e, junto com sua equipe, filmou o dia a dia dos salva-vidas que trabalham na guarda do mar e no resgate de refugiados”. Foi um dos marcos na trajetória do “Salvados”. Deixou o programa em 2019, após 12 temporadas e 212 episódios. A entrevista com Aznar, emitida em 28 de fevereiro último, era a estreia do novo programa do jornalista (“Lo de Évole”).

Évole é um duro e experimentado entrevistador (o único que parece ter deixado o jornalista em estado de puro encanto foi Mujica, entrevistado duas vezes, uma delas na modesta casa de subúrbio onde o ex-presidente residia). Um dos seus métodos recorrentes é, a certa altura da entrevista, trazer alguma imagem ou declaração do passado do entrevistador em questão para indagar sobre sua trajetória. Com Aznar foram muitos esses momentos. Num deles, e é o que nos interessa aqui, em 13 de fevereiro de 2003, o então presidente do governo espanhol diz: “O regime do Iraque tem armas de destruição de massa. Eu estou seguro e podem estar seguras todas as pessoas que nos assistem que estou dizendo a verdade”.

A mesma linha de declaração estava sendo repetida mundo afora por outros chefes de governo subordinados aos interesses de Washington. Tony Blair foi o ponta de lança desses interesses na Europa e um dos mais ativos porta-bandeiras da pregação do presidente americano. Mas, à diferença do espanhol, anos depois Blair, ainda que meio dissimuladamente, reconheceu o erro e pediu desculpas pela mentira: “Peço desculpas pelo fato de que a informação que recebemos estava errada”.

O certo, sabemos todos, seria dizer: “Peço desculpas por ter sustentado uma afirmativa que sabíamos ser falsa com o propósito de realizar uma invasão que interessava ao chefe”. Mas Aznar, ao contrário de Blair, é incapaz de pedir desculpas e reconhecer que mentia. Tudo o que é capaz de dizer é que tomou uma decisão política — pouco lhe importa que essa decisão política estivesse amparada numa escancarada fraude para enganar a gente do seu país e a opinião pública mundial. É esse o estilo do homem e isso é sabido.

Boris Johnson e Tony Blair: o conservador ganha elogio do socialdemocrata| Fotos: Reprodução

Mesmo assim, na grande estreia do seu novo show, Jordi Évole tinha esperanças de arrancar algo de inédito do astuto liberal. Havia anos que vinha tentando conseguir aquela entrevista. O pressuposto básico, pensava o jornalista, “é que os personagens já aposentados falam com mais liberdade que os que continuam na ativa”. Mas não foi assim. Aznar “não reconhece nenhum erro. Ele não pede perdão… O que eu queria é que desse sua versão dos acontecimentos, com as perguntas que fossem necessárias. Mas ele não deu nem um único passo atrás”. A verdade é que este homem, um dos ídolos da direita espanhola no pós-franquismo, é um agente tão frio quanto um experimentado assassino profissional na hora de puxar o gatilho ou rasgar a garganta da sua vítima.

Tony Blair e o elogio a Boris Johnson

Não se pense que seu contemporâneo inglês seja uma nobre e encantadora donzela. Quando, doze anos depois da guerra contra o Iraque, pediu desculpas pela lorota que contou aos seus compatriotas, a ministra-chefe da Escócia, Nicola Sturgeon, disse suspeitar que, com aquelas escusas, o que pretendia Blair “era preparar o terreno frente às possíveis críticas que suscitem a conclusão das investigações” sobre o conflito, iniciadas alguns anos antes. Mas que há nuanças e variações no modus operandi de uns e outros, isso há.

A conversa com “El País” lembra o quanto seria fácil para o ex-primeiro-ministro destacar “os erros do atual premier, ou relembrar constantemente que sempre considerou a saída do Reino Unido da União Europeia um imenso erro estratégico” — defendido com entusiasmo juvenil por Boris Johnson. Ao invés disso, o que diz Tony Blair é que, na questão da vacinação (para conter a pandemia), relativamente ao Reino Unido quem perdeu foi a UE. “Se o Reino Unido ainda fizesse parte da União jamais contemplaríamos aquela situação em que o controle da aquisição de vacinas foi retirado dos Estados membros”, diz Blair, antes de afirmar sem meias palavras: “Que o governo de John fez bem sua estratégia de vacinação é um fato verificável. A chave foi deixar a capacidade de agir nas mãos de um pequeno grupo de pessoas.”

George W. Bush como Pinóquio (a respeito do Iraque) | Foto: Reprodução

É verdade que um político tão curtido não vai se expor em batalhas onde os fatos são francamente favoráveis ao adversário, mas poderia encontrar outras maneiras de fazer isso sem precisar tecer elogios explícitos ao oponente. E, afinal, que fatos são esses que obrigam não apenas a Tony Blair, mas a todos reconhecermos que Boris Johnson, depois de tanto titubeio, erros de cálculo e fanfarronices que custaram vidas, finalmente acertou?

Enquanto o resto do continente se arrasta a um ritmo de tartaruga na urgentíssima vacinação, os números mostram um Reino Unido na vanguarda mundial da campanha de imunização. Por número de pessoas vacinadas até 4 de março com pelo menos uma dose ficava em quarto lugar, com 21,9 milhões de pessoas vacinadas, atrás de Estados Unidos (82,5 milhões), China (52,5 milhões) e Europa (37,4 milhões). Por cada 100 pessoas, era o terceiro país mais bem-sucedido, com 32,3% de vacinados, atrás apenas de Israel (98,8%), Emirados Árabes Unidos (62,7%) e na frente dos Estados Unidos (com 24,7%).

Então o que mais podia dizer Tony Blair? Mesmo assim, há os que não dizem o que precisa ser dito e não voltam atrás, incapazes de reconhecer erros e políticas desastrosas levadas a cabo sob o seu comando.