O dia em que Fabrício foi “Verdun” para Cain Velásquez

14 junho 2015 às 04h23
COMPARTILHAR
Síntese da luta: o peso-pesado brasileiro venceu o americano lutando de igual para igual, nos termos do oponente e nos seus próprios termos
O que se esperava do peso-pesado Fabrício Werdum numa luta contra o homem que devasta a terra do UFC, Cain Velásquez? O óbvio: que batesse, com os pés e as mãos, e fugisse rapidamente para evitar os golpes mortais do americano.
Em pouco tempo, com sua forma estupenda e sua luta variada, Velásquez transformaria o brasileiro num homem oco ou de palha. Era o que se esperava. Noutras palavras, Werdum, se quisesse sobreviver um ou dois rounds, teria de lutar em seus termos — bater e rezar para escapar à reação. Pois a vida sempre surpreende nossas formas tradicionais de pensar. Fabrício acabou por ser Verdun, aqui com “v” no início e “n” no final, de Velásquez, este, um belo exemplar de Diego.
O que se viu no primeiro round, na selva do octógono — onde nem o árbitro se torna pai —, foi um Velásquez tradicional, partindo para cima, como um touro furioso. Seu objetivo era preciso: levar a luta em seus termos, fazendo com que o oponente não respirasse e, sobretudo, não tivesse tempo e fôlego para impor outro jogo.
Porém, se o notável Velásquez se apresentava de maneira previsível, a caminho de um novo massacre — no estilo das duas últimas lutas contra Júnior Cigano —, o brilhante Werdum nem parecia o Fabrício de outras lutas. Werdum, discípulo tardio de Muhammad Ali, deixara de “picar” e “escapar”, cansando e desnorteando o adversário, para se tornar uma espécie de George Foreman ou, vá lá, Mike Tyson.
Surpreendente, Werdum aceitara, de cara, os termos de Velásquez — o que sugeria suicídio. Não fugiu. Boxeou, trocou chutes e deu joelhadas.
A atitude de Werdum, de não fugir à luta, aparentemente desconcertou Velásquez, que esperava uma espécie de Júnior Cigano 2, talvez apenas um pouco mais ágil e sólido no jiu-jítsu (tanto que o americano fez o impossível, nos dois primeiros rounds, para não lutar no chão).
Velásquez — perdoem-me Nelson Rodrigues e a esquadra fantasmal do politicamente correto, mas o homem se tornou um anão, digamos, de Diego — pode alegar cansaço (a tal altitude é um pretexto-álibi sempre perfeito), falta de ritmo (não lutava havia muito tempo; só treinava). Nada disso explica bem o que ocorreu no octógono — na batalha do México —, pois é preciso considerar, acima de tudo, o xadrez do adversário. Pois, como se disse acima, Werdum aceitou as regras de Velásquez, a luta franca. Por momentos, cheguei a pensar que seria nocauteado, tal a fúria do americano intranquilo e circunspecto.
Entretanto, como Werdum reagia bem, não caía, não se mostrava abalado com os golpes, alguns até contundentes, e, sobretudo, atacava com eficiência — Velásquez nunca havia ficado com o rosto tão marcado e sangrando —, a luta foi mudando de configuração. O americano venceu o primeiro round e o brasileiro, o segundo. Mas este venceu bem e aquele, mal.
Na volta para o terceiro round, o corner de Velásquez deu-lhe uma recomendação errada, porém não por tolice, e sim por perceber que na luta em pé seu homem estava em desvantagem e poderia sofrer um nocaute vexatório. Um dos orientadores de Velásquez, talvez seu treinador, deu-lhe uma senha mortal: leve a luta para o chão. Ante a resistência de Werdum em pé — parecia uma pedra ao receber os golpes; pouco se incomodando —, Velásquez, que nos dois primeiros rounds fugira do chão como o Diabo e os vampiros às vezes fogem da cruz, mudou os termos da luta, aceitando os termos do oponente.
A luta estava empatada, com ligeira vantagem para Werdum, quando os termos eram os de Velásquez. Porém, ao tentar levar a luta para o chão, nas regras de Werdum, Velásquez perdeu-se e foi brilhantemente finalizado.
Fica-se com a impressão de que, finalmente, um lutador encontrou a forma correta de bater Velásquez. Primeiro, é preciso enfrentá-lo em seus termos, buscando resistir mas, ao mesmo tempo, atacando com firmeza. Isto desconcerta e fragiliza o americano. Em seguida, com sua tática falhando — encantoar o adversário, sufocando-o, criando a ideia de que será derrotado e, portanto, é melhor ceder logo —, pode-se levá-lo a lutar em outros termos. Saindo de seu elemento, a marcação cerrada, Velásquez parece tão confuso quanto o personagem K do romance “O Processo”, do tcheco Franz Kafka.
O que se deve sugerir, por fim, é que Werdum “baleou” Velásquez nos próprios termos deste e derrotou Velásquez quando este aceitou lutar segundo suas regras.
Werdum é um lutador inteligente, mutante — como o Júlio romano e não como o César patropi — e tático formidável. Estrategista e tático, por assim dizer. O campeão peso-pesado do UFC provou que não se trata de um burocrata do octógono.
Qual será o próximo na lista de Werdum? Os comentaristas sugeriram Júnior Cigano. Mas acho que um adversário mais interessante seria Stipe Miocic. Este talvez seja o próximo adversário de Velásquez, que, para voltar a lutar contra Werdum, terá, possivelmente, de “varrer” a categoria, ou pelo menos lutar contra Miocic e Cigano.
Abaixo, leitor, um bônus, “Os homens ocos”, de T. S. Eliot, na escorreita tradução de Ivan Junqueira.
OS HOMENS OCOS
“A penny for the Old Guy”
(Um pêni para o Velho Guy)
T. S. Eliot
Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca
Ou pés de ratos sobre cacos
Em nossa adega evaporada
Fôrma sem forma, sombra sem cor
Força paralisada, gesto sem vigor;
Aqueles que atravessaram
De olhos retos, para o outro reino da morte
Nos recordam – se o fazem – não como violentas
Almas danadas, mas apenas
Como os homens ocos
Os homens empalhados.
II
Os olhos que temo encontrar em sonhos
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem:
Lá, os olhos são como a lâmina
Do sol nos ossos de uma coluna
Lá, uma árvore brande os ramos
E as vozes estão no frêmito
Do vento que está cantando
Mais distantes e solenes
Que uma estrela agonizante.
Que eu demais não me aproxime
Do reino de sonho da morte
Que eu possa trajar ainda
Esses tácitos disfarces
Pele de rato, plumas de corvo, estacas cruzadas
E comportar-me num campo
Como o vento se comporta
Nem mais um passo
– Não este encontro derradeiro
No reino crepuscular
III
Esta é a terra morta
Esta é a terra do cacto
Aqui as imagens de pedra
Estão eretas, aqui recebem elas
A súplica da mão de um morto
Sob o lampejo de uma estrela agonizante.
E nisto consiste
O outro reino da morte:
Despertando sozinhos
À hora em que estamos
Trêmulos de ternura
Os lábios que beijariam
Rezam as pedras quebradas.
IV
Os olhos não estão aqui
Aqui os olhos não brilham
Neste vale de estrelas tíbias
Neste vale desvalido
Esta mandíbula em ruínas de nossos reinos perdidos
Neste último sítio de encontros
Juntos tateamos
Todos à fala esquivos
Reunidos na praia do túrgido rio
Sem nada ver, a não ser
Que os olhos reapareçam
Como a estrela perpétua
Rosa multifoliada
Do reino em sombras da morte
A única esperança
De homens vazios.
V
Aqui rondamos a figueira-brava
Figueira-brava figueira-brava
Aqui rondamos a figueira-brava
Às cinco em ponto da madrugada
Entre a ideia
E a realidade
Entre o movimento
E a ação
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino
Entre a concepção
E a criação
Entre a emoção
E a reação
Tomba a Sombra
A vida é muito longa
Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a Sombra
Porque Teu é o Reino
Porque Teu é
A vida é
Porque Teu é o
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Assim expira o mundo
Não com uma explosão, mas com um suspiro.
(tradução: Ivan Junqueira)
.