O Darth Vader da América Grande — e por que as pesquisas falharam, de novo

08 novembro 2020 às 00h01

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Uma das dramáticas consequências do fenômeno Trump é fazer de cada um de nós ferrenhos partidários de tipos como Joe Biden, o líder do Partido Democrata
Halley Margon
De Barcelona
Na noite de domingo, primeiro de novembro de 2020, véspera de finados, quarenta e oito horas antes de um dia que seria histórico para os americanos (e para o resto do mundo), o clima de expectativa extremada disputava a atenção com o crescimento descontrolado da segunda onda da pandemia que toma conta da Europa central (no norte do continente a coisa segue mais mansa), mas tinha algo de fantasioso, para não usar palavra mais pesada — e o que é que nos dias correntes não tem? Havia, sim, tensão e muito radicalizada, inédita na história do país, mas era também, ao mesmo tempo, briga entre pares, desavença aguda, mas entre os caras que inventaram o pragmatismo. Não bastassem aqueles dois elementos, meia dúzia de ataques terroristas de baixo custo operacional e fácil realização abalou a França e, no início da noite de segunda-feira, também Viena na Áustria.

É verdade que Donald Trump ultrapassa as mais lúgubres expectativas. Sua fala é precária, escorregadia, a articulação das sílabas é de difícil entendimento, provavelmente até para ele mesmo, cheira a enxofre mesmo à distância, pode ser que esteja no topo da cadeia genética da espécie à qual pertence. É difícil imaginar algo pior, embora eu não ponha a mão no fogo — quando mirava a face algo catatônica de George W. Bush também supunha o mesmo, e vejam aonde chegamos. Fossem outras as circunstâncias e Saddam Hussein (ou figuras do gênero) lhe caberia perfeitamente como padrinho de casamento ou compadre para o batizado do pequeno Barron.
Mentir, e mentir muito, mentir como método na gestão do Estado e para operar a política, obstruir a justiça, trapacear os adversários e à própria gente que o elegeu tratá-la como subdotada (o que, aliás, parece agradá-la de algum modo), agir cotidiana e obstinadamente de maneira cínica e amoral, tudo isso faz parte do receituário dos que ocupam a Casa Branca, dos Kennedy a Nixon e seu inseparável parceiro Kissinger (“aquele homem que mais mente que respira”, nas palavras de Seymour Hersh), de Clinton a Bush, Republicanos e Democratas. Se há algo no comportamento de Trump que talvez incomode ao establishment do país é que sua arrogância extremada coloca sob a luz dos holofotes as chagas poucas vezes reveladas do próprio establishment.
22.247 mentiras
Dizem que Trump mente com frequência. O certo é dizer que mente com muito mais frequência que os outros. Leio num jornal daqui que o “Washington Post”, que faz um acompanhamento “de todas as falsidades ou deturpações do republicano”, teria calculado que, “até o último 27 de agosto, o presidente disse até 22.247 coisas incertas, de todos os tipos e condições”. Esse mitômano compulsivo, que elevou a mentira à categoria de ciência para gerir o Estado e a política da maior potência do planeta, pode ter parido um vírus que lhe serve à imagem e semelhança (porque é também um narcisista quase psicótico). Ao que tudo indica, esse novo patógeno começa a contaminar parte dos seus mais fiéis eleitores — e eles, agora, se empenham em tapear aqueles que realizam as enquetes.
Todos sabem que as pesquisas erraram em 2016, quando quase que unanimemente apontaram a vitória de Hillary Clinton. De lá para cá, correram atrás dos equívocos cometidos e trataram de corrigir as deficiências encontradas. Matérias e mais matérias foram escritas a respeito. Simpósios e mais simpósios foram organizados pelos pesquisadores no esforço para evitar um novo fiasco. De resto, a expectativa era de um resultado bem mais folgado que na eleição passada, com uma diferença duas vezes maior a favor do candidato democrata. Assim, tudo parecia ir bem. Até a noite de terça-feira, 3 de novembro, quando se encerraram as votações. Na madrugada da quarta-feira, 4 de novembro, muitos já se perguntavam se de novo as pesquisas não teriam dado com os burros n’água. Aí estão os resultados das urnas para provar.
Às 14:18 horas do mesmo dia, a manchete do “El País” era “Trump se declara o vencedor embora o escrutínio continue e a presidência permaneça no ar”. Com o mapa da votação atualizado às 13h40, Biden tinha 227 delegados (dos 270 necessários) e Trump 213. Àquela altura, e ninguém sabia quem seria o vencedor, embora a tendência apontasse para Biden. Mas o que todos já sabiam é que, sim, mais uma vez as pesquisas tropeçaram. E, dessa vez, o tombo foi muito mais feio que o anterior.
O eleitor (e a fúria coletiva)
Não há dúvidas de que Trump é temerário o suficiente para apostar em aventuras jamais tentadas no Estados Unidos, e atrevido o bastante para instigar a maquinaria republicana e sua base de camisas pardas para um assalto ao poder que contrarie o resultado das urnas — e o inimaginável pode, então, acontecer. Mas seja quem for que daqui a pouco assuma o comando do país, essa eleição passa, deixando para a história e para a seguinte, uma questão que quatro anos atrás não foi respondida, embora envolvesse o principal personagem do pleito. Quem é o eleitor ou o suporte de Trump e suas possíveis aventuras? Quem é esse personagem que as pesquisas não conseguiram identificar e inserir nos seus modelos matemáticos e que, no entanto, insiste em marcar presença no centro do palco?
Um personagem que incansavelmente vem perseguindo seu autor e, após seguidas tentativas mais ou menos bem-sucedidas (Nixon, Reagan, Bush…), parece ter a sua encarnação ideal na figura do megaempresário. Por que supor que o iriam abandonar na primeira onda de dificuldade? E olha que não foram poucos os maltratos feitos pelo autor ao personagem (e às suas sombras, seus arremedos ou suas flutuações, àqueles que mesmo não sendo “o personagem” ajudam a composição do tipo, são seus vizinhos, amigos e compadres de quase todas as horas, mas não de todas, dispostos a acompanhá-lo mas não a segui-lo em qualquer aventura e desventura a que o submeta o autor). A rigor, o personagem foi se tonificando ao longo das últimas décadas até que, finalmente, ao se deparar com o autor moldado às suas mais recônditas necessidades, o salto de qualidade se produziu e o casamento se consolidou. O monstro está pronto.
Mas eis que aparece o vírus e faz tropeçar o autor, apresentando-lhe um tipo de dificuldade para a qual seu espírito absolutamente não estava preparado: a preservação da vida, qualquer vida, a vida de todos, indiscriminadamente, a vida de qualquer cor e sob qualquer circunstância, a vida de qualquer um. Mesmo assim, o personagem se manteve fiel, coeso, aguerrido e em silêncio contido — como o das serpentes antes do bote. E como o dos covardes, aqueles que preferem as sombras e a mudez dos brutos, dos que odeiam as palavras. Desgraçadamente, para eles, não todos os seus companheiros de palco mantiveram o pacto. Esses, poucos, é verdade, muito menos do que era de se esperar, e muito, muito menos do que supunham e captaram as enquetes, se perderam no meio da ventania e debandaram.
Na sexta-feira, 5 de novembro de 2020, às 0h17 horas, e ainda não se sabia quem seria o quadragésimo sexto presidente americano (por aqui eles dizem estadunidense, jamais americano).
A simples possibilidade de Donald Trump continuar ocupando o cargo é de tirar o sono. Seus quatro anos na Casa Branca, na verdade a sua mera existência como catalizador de uma determinada vontade coletiva, já alargaram em demasia as margens do pântano, estendendo a área do lodaçal. A eventual recuperação desse território vai demandar muito tempo. Para que se tenha ideia, uma das dramáticas consequências do fenômeno Trump, com ou sem reeleição, é fazer de cada um de nós ferrenhos partidários de tipos como Joe Biden. Como dizem por lá, convenhamos, é scary. Frente ao mal extremado e sem limites o mal vulgar acaba se apresentando como virtude.
O problema é que esse mal não é uma abstração filosófica. Esse mal refere-se, na realidade, a procedimentos de rotina, métodos e técnicas de gerenciamento de um Estado e de uma sociedade que espalha sua influência e poder de uma ponta a outra do planeta, onde se reproduzem à maneira dos vírus. E o problema é também que o valentão mudo, o núcleo expressivo e impulsor da base trumpiana, quando tem contrariada a sua vontade, faz do próprio ressentimento uma onda de fúria para dizer: “Não, aqui mando eu e os meus. F… as regras do jogo”.
P.S.: Como os leitores já sabem, Joe Biden foi eleito presidente dos Estados Unidos. Trump esperneia, mas terá de deixar a Casa Branca no tempo devido. De resto, a vitória do candidato do Partido Democrata não invalida o que se escreveu acima.