Quando ninguém estiver olhando, lá irei para ver o seu antigo posto e certamente sonharei com sua reabertura

Marcelo Franco

Leio que o Bolshoi Pub fechará as portas. Como assim? Vocês mudam o meu entorno conhecido, a minha zona de conforto, e não me pedem permissão? Alteram a minha geografia sentimental sem o meu “defiro” prévio?

Conheço o Rodrigo CarrilhoRodrigão — há, sei lá, uns trinta anos, desde o tempo de outras boates. Trinta mesmo, Rodrigo? Pouco importa: se não foram trinta anos, parecem trinta, quarenta, cem anos. Havia uma boate na T-9 que o Rodrigão tocava, já não me lembro mais se ele era o dono, e praticamente estabelecemos na tal boate uma filial do centro acadêmico; quando eu tiver netos, contarei a eles o que vi e ouvi ali, tão estranhos — e bons, não? — eram aqueles tempos incorretíssimos.

Já o Bolshoi começou como uma portinha e um minúsculo tablado fazendo as vezes de um palco. Era, no início, um restaurante, se não me engano e se os neurônios ainda não se queimaram todos. Pois pela portinha passaram grandes artistas; no Bolsha assisti a shows que ficaram na história de Goiânia — Marina Lima, Lobão, Blitz, Ed Motta, Arnaldo Antunes, Stanley Jordan, Magic Slim, Johnny Winter. Muitos outros houve, mas tudo isso é como os anos 60: dizem que você não os viveu caso se recorde de tudo. E o Rodrigo ainda teve um papel, digamos, casamenteiro: brincávamos que no Bolshoi não se permanecia solteiro, inclusive pelo sistema de repescagem às 2 da matina. Se Goiânia ainda é o seu tanto provinciana, imaginem como era tudo isto aqui quando o Rodrigão resolveu nos desasnar musicalmente. Tudo funcionava com válvulas antigas e pistão enferrujado. Valeu a pena? Tudo vale a pena se a pauta musical não é pequena.

Magic Slim | Foto: Reprodução

Há histórias, pois não. Antes de Cristo, quando ainda se podia fumar, havia no Bolshoi um fumódromo. Lá ficávamos, baforando charutos — e lá ocorreram muitas das conversas mais interessantes de que já participei, inclusive com os artistas do dia; Magic Slim, por exemplo, nos contava histórias inacreditáveis sobre o Delta do Mississippi e Chicago. Lá também tive duras conversas comigo mesmo, amizades se fizeram entre fumaças, outras se solidificaram, algumas ficaram pelo caminho. O que narrar para não assustar as crianças aqui no parquinho? Ah, sim, apenas um evento: saídos de um casamento, eu e amigos lá aportamos de terno, colete inclusive, altas horas; por um mecanismo qualquer que jamais decifrei, um dos amigos inventou uma língua estranhíssima e convenceu duas ou três jovens que estavam juntas que éramos espiões ou algo do gênero. Rimos. Vivemos. É, eu sei, deve acontecer com todo mundo.

Stanley Jordan: músico | Foto: Reprodução

A história de uma cidade é também a história de seus comércios que fecharam, como camadas superpostas, e o Bolshoi integra — com honras, tapete vermelho, medalhas e banda militar — essa pele que envolve a nossa Goiânia. Quando ninguém estiver olhando, lá irei para ver o seu antigo posto e certamente sonharei com sua reabertura. Meio furtivo, pinça à mão, também pretendo catar pedaços de mim e os colocar em plásticos como aqueles que policiais usam em filmes — há pedaços de mim no velho Bolshoi de guerra. Assim como Itabira, ele será um retrato na parede, mais um, e sim, há de doer — “a grande dor das cousas que passaram”, escreveu Camões sobre os pubs do século 16, não é mesmo?

Marcelo Franco é “discípulo” de Pedro Nava.