“A estratégia fascista opera desta forma, primeiro você acaba com a verdade dos fatos e depois oferece uma narrativa fantasiosa. Quando isso vira um discurso digital, cria o efeito de manada. E se não há consequências quando o livro é recolhido em um estado, logo vai acontecer no outro. É algo que não se pode ignorar, porque mesmo tendo um governo que se coloca como esquerda não é a garantia de que o bolsonarismo terminou. E ele opera muito bem esse tipo de sentimento que pretende a eliminação de tudo aquilo que diverge do que você acredita.” — Jeferson Tenório, em “O Globo”

“Dom Casmurro” é um romance sobre adultério? Talvez sim. Talvez não. Trata-se de um livro sobre nuances e dúvidas? É provável. Sobretudo, a prosa de Machado de Assis é um convite — portanto, uma provocação — ao leitor para que pense para além das aparências e dos clichês. O autor convida o leitor para pensar, por si mesmo, e não apenas a partir do direcionamento do narrador. É como se dissesse: “Acorde, saia da manada e pense pela própria cachola”.

Acima de tudo, “Dom Casmurro” é literatura de alto nível. É um passeio pela Língua Portuguesa e suas sutilezas. A linguagem — seu manejo pelo autor — é o protagonista do romance. Capitu, Bentinho e Escobar são personagens secundárias. O suposto tema central, o adultério, também não é a “persona” central da história deste livro que, de alguma maneira, é uma espécie de tratado filosófico que, se pudesse, William Shakespeare, o bardo e dramaturgo britânico, aplaudiria — de pé.

O leitor não deve ficar surpreso se, daqui a pouco, proibirem “Dom Casmurro” de ser lido nas escolas. Só falta um político — um não-leitor — aparecer, com as boas intenções de sempre (aquelas que enchem o Inferno, diria Dante), e sugerir que seja incluído no índex.

Machado de Assis, o de “Dom Casmurro” e, sobretudo, o de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, talvez não seja alvo de censura porque, dada a complexidade de sua prosa e os vieses de sua linguagem, nem é lido pelos integrantes da extrema-ignorância — que supera a extrema-direita — e pelos profetas da vanguarda do atraso.

O livro censurado de Jeferson Tenório

Selecionado pelo Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) — e bancado pelo Fundo Nacional de Educação Básica (FNDE) —, o romance “O Avesso da Pele” (Companhia das Letras, 192 páginas), de Jeferson Tenório, chegou às bibliotecas das escolas públicas do país. Prêmio Jabuti de 2021, trata-se de literatura de qualidade — acima da média. Nada tem a ver com pornografia ou erotismo. Pelo contrário, é uma crítica, corrosiva e bem formulada, sobre como se vê, por exemplo, a sexualidade dos negros.

Os “homens e mulheres patronos da moral” tendem, no Brasil, com as boas intenções que abarrotam o inferno, a “proteger” os alunos, notadamente os das escolas públicas — os pobres —, do contato com a vida real, com a complexidade das relações entre os seres. Mas tratar crianças e adolescentes como estúpidas é, diria Mário de Andrade, uma estupidade. Garotos amadurecem, como indivíduos — e intelectualmente —, se colocados em contato com obras literárias (e não-literárias) complexas e multifacetadas. Como é o caso de “O Avesso da Pele”.

Ainda que o romance de Jeferson Tenório seja de qualidade, de alto nível, os governos do Paraná, de Goiás e do Mato Grosso Sul decidiram retirá-lo das escolas. Estariam “protegendo” os alunos. Mas protegendo-os de quê? Da vida, por certo. Do mundo real.

“Quem está atacando [“O Avesso da Pele”] provavelmente não [o] leu”, sugere Jeferson Tenório. Fico com a impressão de que os “membros” da extrema-ignorância estão percebendo no romance do escritor aquilo que talvez apreciem e só os incomodem no plano retórico, para consumo público. Por que será que a sexualidade — sobretudo a denúncia de sua brutalização — “fere” tanto algumas pessoas (e talvez não apenas as conservadoras)? E por que a denúncia do racismo incomoda tão pouco? Muitos querem esquecer quem são — suas origens?

Jeferson Tenório: criticado e censurado, seu romance se tornou best-seller | Foto: Reprodução

Mais do que os críticos favoráveis à sua obra, o próprio Jeferson Tenório fez a melhor defesa de seu livro: “As distorções e fake news são estratégias de uma extrema-direita que promove a desinformação. O mais curioso é que as palavras de ‘baixo calão’ e os atos sexuais do livro causam mais incômodos do que o racismo, a violência policial e a morte de pessoas negras”.

Adotando uma chave praticamente antropológica e sociológica, digamos assim, Jeferson Tenório apresenta um diagnóstico preciso: “‘O Avesso da Pele’ é um livro que trata de questões raciais, do racismo estrutural, da violência policial e faz também uma crítica à educação do Brasil. E é um livro que mostra como a consciência social e o letramento social ajudam os jovens a ter uma consciência de cidadania, porque a literatura também tem esse papel de formar cidadãos”. O romance relata a vida de Pedro, cujo pai foi assassinado durante uma abordagem policial.

Tenho escrito, com certa frequência, que a escravidão — e estou falando da recente, dos capitalistas ditos modernos, inclusive de um produtor de vinhos famosos — praticamente não incomoda os brasileiros. Jeferson Tenório está absolutamente certo: a crítica ao racismo deveria galvanizar a atenção de professores (no Rio Grande do Sul, a censura foi proposta por uma mestre, diretora de uma escola) e dos censores-políticos. Mas o tema talvez não incomode uma parte significativa dos brasileiros, que parecem ignorar a presença do passado no presente do país.

Numa crítica moderada e precisa, Jeferson Tenório assinala: “Me causa sempre espanto [a censura a livros], porque nós já temos tão poucos leitores no Brasil. Deveríamos estar preocupados em formar leitores e não em censurar livros”.

A Editora Companhia das Letras também adotou uma posição correta a respeito da censura: “A retirada de exemplares de um livro, baseada em uma interpretação distorcida e descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios fundamentais da educação e da democracia, empobrece o debate cultural e mina a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo”.

Numa matéria do UOL, ao comentar a censura do livro no Paraná, Jeferson Tenório, defensor competente de sua obra, sublinha: “É importante lembrar que nenhuma autoridade, seja diretora, secretário, vereador, deputado, governador ou presidente tem o poder de mandar recolher materiais pedagógicos de uma escola. É um ato que fere um dos pilares da democracia, que é o direito à cultura e à educação”.

O tiro saiu pela culatra: as vendas do romance “O Avesso da Pele” — um belo e significativo título, por sinal — cresceram 400%.