O Alamo do cinema esclarece menos do que o da história mas empolga. John Wayne quase vira John Ford
10 abril 2014 às 14h42
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A guerra do Alamo, sustenta Bruhl, não foi um ato heroico, a “ser imitado” — e sim uma “verdadeira loucura militar”
Um filósofo sem fama sugeriu que, se tivesse vivido no século 20, Homero não teria “escrito” a “Ilíada” e a “Odisseia”. Teria se tornado cineasta, possivelmente trabalhando ao lado de John Ford (o Bergman da pradaria), Howard Hawks (“Rio Vermelho” é, sem dúvida, “Édipo” com revólveres), Raoul Walsh, Anthony Mann, George Stevens (“Shane” contém 9,90% da obra de Freud e 22% de “Dom Casmurro”, o “Otelo” patropi) e Sergio Leone (Claudia Cardinale, retirados os mancebos sujos, suarentos e ordinários, é quase uma virgem santíssima no belo e estilizado “Era Uma Vez no Oeste”, aí quase visto como um puteiro angelical). Portanto, o assum preto grego não seria um diretor de cinema qualquer, e sim um criador de filmes de faroeste. Por certo, teria começado, se a cirurgia de catarata o permitisse, como diretor de fotografia de John Ford (também não era bom de um olho), até se tornar um diretor, quem sabe, do porte de Sam Peckinpah (“Meu Ódio Será Sua Herança” é um tipo de Guerra de Troia transporto para a terra de Abraham Lincoln. A violência distante, como a de Troia, é menos violência do que a exibida pelo western e pelos jornais atuais. A violência que choca mais é a que ocorre no nosso tempo, nas nossas proximidades).
Aquele cinéfilo que busca o Oeste verdadeiro nos filmes decerto encontrará um Oeste pela metade, ou, em palavra chã, inventado. O Oeste, não sua selvageria, é uma invenção do cinema. A arte, mesmo quando não muito elaborada, inventa ou recria a realidade. Mimesis é isto ou quase. Os caçadores de realidade (sou um deles, não raro) nos filmes às vezes ficam decepcionados, esquecendo, como sugeriu John Ford no fascinante “O Homem Que Matou o Facínora” — no qual dois tempos estão em guerra, e o próprio tempo velho “mata-se” (tornando-se lenda) para que o mundo novo, o da política, surja e se torne hegemônico — que, se a realidade não é lá essas coisas, que se publique a lenda, que quase sempre é mais instigante e reverberativa.
É com este espírito que se deve ler o excelente “Passado Imperfeito — A História no Cinema”, organizado por Mark C. Carnes (nada ver com o JBS-Friboi e Roberto Carlos). O livro vasculha vários filmes — como “Spartacus”, de Stanley Kubrick, “Sangue de Herói”, de John Ford, “O Intrépido General Custer”, de Raoul Walsh, “Rosa Luxemburgo”, de Margarethe von Trotta, “Ao Rufar dos Tambores”, de John Ford, “Freud, Além da Alma” (analisado, muito bem, por Peter Gay), de John Huston, e “Patton: Rebelde ou Herói” (Paul Fussell esmiúça as entranhas do filme e do militar) — e mostra, detidamente, o que é realidade e o que é invenção cinematográfica. Quase sempre os filmes exibem apenas parcialmente o que aconteceu.
Porém, desmitificados, os filmes ficam menores e se tornam descartáveis? Não. Porque cinema é cinema e história é história. Claro que, quando retrata um fato histórico, a arte, se é mais rigorosa ao exibi-lo, se torna não raro mais rica. Mas às vezes um toque de fantasia, como a introdução de um personagem e até de um fatinho não-históricos, contribui para tornar a história mais compreensível e, sobretudo, interessável. A Máfia do filme “O Poderoso Chefão” é um simulacro da Máfia real. Mas quem pode dizer que o filme é ruim — ao contrário, é uma obra-prima, muito superior ao livro que lhe deu origem, do escritor americano Mario Puzo — e que a Máfia real escapa-lhe inteiramente? No caso, uma certa glamourização da Máfia, longe de torná-la um modelo a ser seguido — e o outro mundo, o supostamente limpo, não é tão puro assim —, contribui para que os não-especialistas, aqueles que vão ao cinema em busca de entretenimento, entendam seu funcionamento e seu relacionamento, estreito e complexo, com o mundo da chamada legalidade, o dos bancos e da Igreja Católica.
O filme “O Alamo” é quase tão malvisto quanto seu diretor, o ator John Wayne (que, segundo Ruy Castro, detestava cavalos, estes, depois dos pistoleiros, dos mocinhos, dos revólveres e dos rifles, verdadeiros heróis do western). Os astros da película são John Wayne (David ou Davy Crockett), Richard Widmark (James Bowie) e Laurence Harvey (William Travis). Que nos perdoem os críticos, quase sempre certos (quando lidos pelos colegas críticos; no Brasil é assim: quem ainda não é crítico de cinema é candidato ao posto), mas o filme, se não tem o fôlego da arte dos insuperáveis John Ford e Howard Hawks (uma perna de Hawks vale o corpo do ótimo “faroesteiro” Clint Eastwood. E de Ford? A unha do mindinho do pé direito), é belíssimo e conquista a nossa atenção. Se o azul da liberdade de Krzysztof Kieslowski provoca sono (a trilogia exige dos críticos pelo menos uns dois garrafões de café. Sem açúcar, claro, para evitar o diabetes), a película (oh!) de John Wayne, o solidíssimo Marion Robert Morrison, deixa-nos acesos. O western mexe, quem sabe, com o animal que hiberna naquilo que chamam de homem, o bicho que pode ser qualificado como maior assassino da história. Note-se que não acrescentei “da humanidade”.
“O Alamo” (“The Alamo”) é examinado, com rigor, por Marshall De Bruhl, um experimentado editor e pesquisador americano. Minha leitura: o artigo do especialista é muito bom, esclarecedor, mas continuo apreciando a história contada pelo filme.
O exigente Bruhl começa no ataque, como se fosse Messi cutucando a defesa do Real Madri: “Como produtor, ele [John Wayne] se saiu bem. Como protagonista, um pouco menos. Mas, como diretor, não foi nada bem”.
John Wayne, um americano típico, era conservador. Não um gênio como William Faulkner, mas não mentalmente incapaz, um robô dirigido por, entre outros, John Ford e Howard Hawks. Bruhl, como não poderia deixar de ser, começa mencionando que era “anticomunista ferrenho” (o que isto tem a ver com um filme que conta uma história do século 19? Bruhl acha que tem, talvez tenha, deve ter). “Duke Wayne era um apologista da supremacia americana”, como Theodore Roosevelt e Barack Obama. O crítico diz, e talvez tenha razão, que o diretor-ator “usava frequentemente o cinema para propagar suas opiniões simplistas. (…) ‘O Alamo’ não é só filme, mas uma verdadeira convocação às barricadas”. Pausa. Pensei no leitor e ri um pouco. Não gargalhei, em respeito a Bruhl, que é um analista seriíssimo. Em 1960, data do lançamento do filme, o mundo estava sob as sombras da Guerra Fria: Estados Unidos contra a União Soviética e os demais pelando de medo da bomba atômica e, até, dando graças ao “espírito” de Harry Truman pelo fato de os dois gigantes terem os artefatos nucleares. (Para ser honesto com o leitor, eu me alinharia ao lado do Duke na batalha contra o Gulag.)
Vamos a Bruhl e suas informações precisas: “A revolução do Texas foi rápida, porém sangrenta. Durou de outubro de 1835 até abril de 1836. A maioria dos confrontos foram massacres e não batalhas, sendo o Alamo o primeiro deles. (…) O México, ansioso por colonizar a sua longínqua província nordestina de Tejas, concedia enormes faixa de terras aos chamados empresários — entre eles, sobretudo, Stephen F. Austin, cujos primeiros colonos chegaram em 1822”. O governo do México exigia que os colonos assumissem cidadania mexicana e que se convertessem ao catolicismo, o que a maioria logicamente não aceitava. Os texanos também defendiam a escravidão. O que os americanos queriam mesmo, alguns anos depois da Independência (1776), era anexar o Tejas (depois, Texas) aos Estados Unidos. Levantes e atos de desobediência civil desagradaram os governantes mexicanos, que os reprimiam com virulência. O generalíssimo Antonio López de Santa Anna, déspota no poder, tratava “os rebeldes texanos como criminosos comuns” — portanto, a serem liquidados o quanto antes.
“Dada a visão de mundo de Wayne, seria talvez inevitável que ele se sentisse atraído pela grandiosa história do evento mais famoso — embora, de modo algum, o mais importante — na revolução do Texas. Tal como a maioria dos americanos, ele se deixou fascinar pelo Alamo da lenda, não pelo Alamo da história”, critica Bruhl.
No Alamo da realidade, conta Bruhl, “no início de 1836, Santa Anna marchou com seu exército rumo ao norte. A maior cidade do Texas, San Antonio, ficava diretamente na sua rota. Embora o núcleo da revolução fossem as colônias anglófonas mais ao leste, o ditador mexicano havia jurado matar todo texano que resistisse. Havia 184 deles em San Antonio, dentro do Alamo, atrás das barricadas. É a morte deles — ou martírio, se preferirem — que há mais de um século atrai a imaginação popular”.
Possivelmente para tornar a história mais atraente — o filme não é uma série —, quem sabe para dotá-la de um ritmo mais frenético, John Wayne corta o início dos conflitos, o que incomoda Bruhl (imaginem se o admirável especialista fosse criticar os romances “ambíguos” ou “incompletos” de Henry James, mas aí, diria, é “ficção pura”). O filme do grande (quase dois metros) Duke “começa”, registra Bruhl, “com Sam Houston, o comandante-chefe do exército texano, chegando com aparato a San Antonio seguido de um enorme destacamento”. Corrige o “historiador”: “Houston era realmente dado a gestos desmesurados, mas, como norma, só viajava em companhia de um ajudante-de-ordens”.
“O general vai até o quarte-general do major William Barret Travis, comandante em San Antonio, para convencê-lo a segurar o exército de Santa Anna ‘bem aqui, no Rio Grande’. Essa ação restardadora de Travis, diz Houston, lhe daria o tempo necessário para montar, equipar e treinar um exército apto a defender o Texas”, assinala Bruhl. Agora, a correção: “San Antonio, naturalmente, não fica no Rio Grande, e sim cerca de 200 quilômetros ao norte; este é um dos muitos lapsos geográficos que infestam o filme”.
Houston recomenda James Bowie a Travis, sugerindo que confiaria o “destino do Texas” à “lenda viva” da região. “Ele tomou esta cidade do general Cos”, relata Houston. Bruhl frisa que John Wayne apaga da história “um outro herói revolucionário, Ben Milam, que capturou San Antonio para os texanos, em dezembro de 1835”.
Travis manda Bowie encontrá-lo na “missão em ruínas” de San Antonio de Valero (o Alamo). Bowie, ainda que a contragosto, vai, mas diz a Travis que não é possível transformar a missão em fortaleza para lutar contra os mexicanos. A área não é defensável, insiste. “A animosidade entre eles é um tema que se repete ao longo de todo o filme” e é “historicamente fiel”, admite Bruhl. “Só que o verdadeiro desentendimento era em torno do comando, e não de estratégia: ambos estavam de acordo em que o Alamo precisava ser defendido.”
Surge, em seguida, Davy Crockett, interpretado por John Wayne (muito bem, na minha imodesta opinião). Depois, chega “um numeroso exército mexicano”. “Um oficial se aproxima dos muros do Alamo para exigir a rendição. Travis escuta, impassível, e responde encostando no pavio de um canhão o seu charuto aceso”, anota Bruhl. “E não foi outra, na verdade, a resposta de Travis. O tiro troveja por cima da cabeça do enviado mexicano e o cerco está montado.”
O número dos sitiados “é assustadoramente inferior ao dos mexicanos”. Travis diz aos que estão no Alamo: “Santa Anna não pode simplesmente dar a volta ao forte e deixá-lo no meio de suas linhas de comunicação”. Assim, escreve Bruhl, “se os texanos conseguissem resistir ao cerco, o exército mexicano ficaria imobilizado à frente do Alamo”. O especialista, a seguir, ressalva: “O Santa Anna histórico decerto teria sido mais esperto se deixasse um pequeno pelotão na retaguarda, cercando o Alamo, enquanto suas forças principais perseguissem o exército de Houston; sua teimosia em não fazer isso custou-lhe duas semanas e mil homens”.
Bowie, que era chegado numa bebida forte, ameaça deixar o Alamo e, para “segurar” os soldados, Crockett quebra todas as jarras de uísque. Isto, ufa!, é verdade, admite Bruhl.
Depois do primeiro aviso, o emissário de Santa Anna reaparece e oferece “salvo-conduto para que deixem o Alamo todas as esposas, filhos e criados”. Bruhl ressalva: “Os não-combatentes jamais estiveram em jogo no Alamo, com duas exceções: Suzannah e Angelina Dickinson, respectivamente a esposa e a filha do ajudante de Travis, o tenente Almaron Dickinson”.
Como os reforços não chegam, Bowie e Crockett decidem sair. “Travis aparece no pátio da missão. Qualquer colegial americano pode adivinhar o que acontece em seguida no filme, certo? Errado. Inexplicavelmente, Travis não traça a famosa ‘linha na areia’. É um mito, talvez, mas tão verdadeiro para os texanos quanto a carga de Pickett em Gettysburg, ou o hasteamento da bandeira em Iwo Jima”, esclarece Bruhl. “O roteirista James Edward Grant, segundo consta, não quis ceder e, convencido de que a história da famosa ‘linha na areia’ só era conhecida no Texas, se recusou a inclui-la.”
“O ataque mexicano final começa com uma carga de artilharia espetacular. No início da batalha, Bowie está ferido e acamado na capela, mas defende-se heroicamente e morre lutando. Travis demonstra igual bravura: morre no portão, defendendo-se só com a espada. Crockett, carregando uma tocha acesa, se retira para o paiol de pólvora. Na porta, é barrado por um lanceiro mexicano. Consegue soltar-se, entra cambaleando no paiol e explode o lugar.” É o resumo, feito por Bruhl, da parte final do filme. O pesquisador relata o que realmente ocorreu: “Tudo isto, ou quase tudo, está errado. Se Santa Anna dispusesse da artilharia que o filme sugere, o Alamo teria sido reduzido a pó em questão de minutos. Bowie não ficou confinado ao leito por um ferimento; ao contrário, passou todo o tempo do cerco de cama, com febre tifoide. Travis morreu no início do ataque, caindo do muro com uma bala na cabeça. E Crockett, segundo relatos mexicanos, se rendeu. O general Manuel Castrillon intercedeu junto a Santa Anna para salvar-lhe a vida, mas Santa Anna havia jurado não poupar nenhum prisioneiro e executou sumariamente Crockett e os demais sobreviventes”.
Num box do texto principal, Bruhl informa que “Sam Houston jamais esteve em San Antonio durante a Revolução do Texas”, a retratada no filme. Só em 21 de abril de 1836, Houston “aniquilou o exército mexicano em San Jacinto. (…) Entre os aprisionados naquele dia figurava Santa Anna em pessoa. A República do Texas estava agora livre e independente, e Houston foi eleito duas vezes seu presidente. Mas a nova nação não era em nada viável: foi arrastando até ser anexada aos Estados Unidos em 1845, um ato que levou diretamente à guerra com o México”.
Noutro box, Bruhl esclarece que, ao contrário do que sugere “O Alamo”, Davy Crockett nasceu no Tennessee, não em Kentucky. “Quase iletrado, ele serviu assim mesmo por três mandatos ao Congresso americano e foi autor (postiço) de três best-sellers.” Foi uma das primeiras pessoas realmente famosas dos Estados Unidos. Uma celebridade.
A guerra do Alamo, sustenta Bruhl, não foi um ato heroico, a “ser imitado” — e sim uma “verdadeira loucura militar”. A realidade tem, no caso, mais razão do que a arte. Mas Duke Wayne, no geral, não falsifica, torna mais elástica a história do Alamo. É isso. Do ponto de vista da história, a razão está com Bruhl. Do lado do cinema, a reinvenção da realidade, a razão segue no bolso do Duke. Ah, sim, John Wayne não é nenhum John Ford. Tem razão os que pensam assim. Ingmar Bergman e o inteligente e divertido Billy Wilder também não são. Nas mãos de John Ford, o filme não teria perdido a grandiosidade, mas teria ganhado mais densidade humana e, quiçá, mais perspectiva e veracidade históricas.