Novo coronavírus mata pessoas e pode levar ao fechamento de vários cinemas pelo país afora
21 abril 2020 às 20h47
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A pandemia levou à suspensão das sessões de cinema. Mas pode acabar levando ao fechamento definitivo de algumas salas
Uma das músicas mais belas de Adoniram Barbosa é “Viaduto Santa Efigênia”. O narrador diz para Eugênia: “Eu me lembro/Que uma vez você me disse/Que um dia que demolissem o viaduto/Que tristeza, você usava luto/Arrumava sua mudança/E ia embora pro interior/Quero ficar ausente/O que os olhos não veem/O coração não sente”. O cinema certamente não morrerá, filmes continuarão sendo feitos — quiçá para serem exibidos na televisão e nas telas de computadores e celulares. Mas os cinemas, os entes físicos (os espaços), onde são exibidos os filmes, podem morrer, e às vezes morrem. Na minha infância e adolescência, em Porangatu, cidade do Norte de Goiás, havia dois cinemas. Primeiro, o do Pinheiro, com sua sirene convidativa e os filmes com intervalos, como se fossem recreios. Lembra um pouco “Cine Paradiso”. Lá, entre outros, vi filmes de faroeste (Franco Nero era o herói da meninada), de kung fu (Bruce Lee e cia) e, claro, as aventuras de Trinity (a gente morria de rir das bobices de Terence Hill e Bud Spencer — tão mágicos quanto os Trapalhões em sua melhor fase). Segundo, o de José de Paiva, um cartorário que era conhecido como Zé Prego. Assistir um filme no cinema, com a tela grande, com aquele escuro quase sagrado, não é o mesmo que ver uma película na televisão ou no celular. Há uma certa magia que se perde noutros meios.
Em Goiânia, os cinemas de ruas sobrevivem a duras penas, como o Ritz, na Rua 8 — que exibe filmes para as multidões. O Cine Cultura, na Praça Cívica, exibe os chamados “filmes de arte” — sinônimo para “melhores filmes”. Resiste porque o governo estadual o banca — felizmente. Se não o financiasse, já estaria fechado. O Cine Lumière, para sobreviver, optou por um caminho misto — filmes arrasa-quarteirões e, excepcionalmente, “filmes de arte”. As mostras organizadas pelo professor e crítico de cinemar Lisandro Nogueira, no Lumière — primeiro no Shopping Bougainville (fechou o cinema; um tolice incultural desmedida), na Rua 9, do Setor Marista, e depois no Banana Shopping, na Avenida Araguaia, no Centro de Goiânia —, são oportunidades raras para ver películas que os grandes (só em quantidade, não em qualidade) cinemas, não acreditando no público, não apreciam exibir. Nos vários shoppings de Goiânia, onde estão quase todos os cinemas, é raro mostrarem um grande filme — exceto se concorreu ou ganhou o Oscar. Mas nem mesmo “Judy — Muito Além do Arco-Íris” foi projetado em Goiás. Quem viu sustenta que Renée Zellweger brilha interpretando a atriz e cantora Judy Garland. Mesmeriza os espectadores com sua interpretação quase “mediúnica”.
Pois é: o cinema vive, e talvez seja eterno, com mudanças ocasionais nos formatos. Mas a pandemia do novo coronavírus não está matando apenas pessoas. As empresas de cinema do país — quase nada se sabe sobre as gigantes — estão em crise. Falência à vista? Ainda não se fala nestes termos. Mas a crise está instalada. Na terça-feira, 21, os repórteres de “O Globo” Nelson Gobbi e Pedro Willmersdorf, na matéria “Com faturamento zero desde o fim de março, cinemas encaram risco de fechar as portas de vez”, expõem a “epidemia” financeira que asfixia a sétima arte.
Primeira a criar coragem para expor a crise do cinema, Adriana Rattes é sócia-fundadora do Grupo Estação, que dirige 12 salas em quatro cinemas, no Rio de Janeiro, e mantém 75 funcionários. Vai chegar o momento que não terá capital de giro para manter-se como empresa. “Convoco aqui todo mundo que pode ajudar a pensar e a solucionar situações como esta. Claro que não somos os únicos”, tuitou. O grupo está no mercado há 35 anos.
Os cinemas cerraram as portas no dia 26 de março — há quase um mês. O faturamento é zero, mas a despesas foram mantidas. As empresas têm de pagar salários, impostos e aluguéis. “Hoje, tanto redes com abrangência nacional quanto pequenos cinemas de rua encaram o risco de não conseguir retomar os trabalhos.”
“Deveria haver uma linha voltada para áreas com faturamento zero, como é o caso dos exibidores”, sugere Adriana Rattes. Ela aposta que vários cinemas fecharão as portas, sem possibilidade de retorno, sobretudo no interior do país. “Pode haver um apagão no setor.” Com o fim das empresas, centenas, até milhares, ficarão desempregados — direta e indiretamente.
A receita anual do Grupo Estação é de 21 milhões de reais (dado de 2019). “Mas, com as despesas fixas e encargos, não há capital que seja capaz de manter o negócio fechado por tantos meses”, frisa “O Globo”. “Só os impostos sobre o faturamento e o recolhimento do Ecad (Escritório de Arrecadação e Distribuição de direitos autorais) já consomem 45% da arrecadação mensal. Temos aluguéis que variam de R$ 50 mil a R$ 70 mil, e uma folha de R$ 140 mil por mês”, informa Adriana Rattes. A empresária “tentou recorrer à linha de financiamento do BNDES voltada para empresas em geral, mas não conseguiu porque teve faturamento bruto de mais de R$ 10 milhões em 2019”.
“O Globo” ouviu o BNDES, que informa que o programa Crédito Pequenas Empresas pode fornecer financiamentos de até 300 milhões de reais. O problema são os juros — entre 8% e 12% —, considerados altos.
Há outro problema. Quando tudo voltar ao “normal”, o que não deve ocorrer de imediato, porque persistirá uma “cisma” a respeito da contaminação, os cinemas terão dificuldades para atrair público. A crise poderá ser ampliada. “Nos Estados Unidos, Mark Zoradi, CEO do Cinemark, chegou a fazer uma previsão de reabertura gradual para meados de junho. No Brasil, a rede preferiu não se pronunciar.” A rede paga aluguéis elevados porque seus cinemas estão instalados em shoppings.
Adhemar Oliveira, do Espaço de Cinema, apresenta uma ideia, que, se não é salvadora, pode ser paliativa. Os cinéfilos poderiam comprar ingressos agora e, depois da quarentena, seriam validados. Ele dirige 61 salas de cinema em seis Estados e tem 350 funcionários (não é qualquer indústria grande que tem o mesmo número de trabalhadores). “Minha expectativa é a de que ainda vamos sofrer por quatro meses após o fim do confinamento.” Pode ser uma expectativa otimista. É bem possível que, durante um bom tempo, as pessoas refugiem-se no conforto e segurança de suas casas — assistindo filmes na televisão.
Há mais um problema. Os cinemas, para se recuperarem, vão precisar, com urgência, de filmes que atraiam grande público. “007 — Sem Tempo Para Morrer”, com Daniel Craig — em sua última atuação como James Bond —, está pronto. Quando chegar aos cinemas, pode ser que atraia grande público. “Mulan” e “Viúva Negra” devem estrear em julho e outubro. O presidente da Federação Nacional das Empresas de Exibição Cinematográfica (Feneec), Ricardo Difini, afirma: “Estar com as salas fechadas pode ser menos grave do que tê-las abertas sem nosso potencial completo. Dependemos do calendário americano de estreias, dos blockbusters que foram retidos com a pandemia”.
Nem se fala, é claro, de filmes de alta qualidade, e sim de filmes, que, atraindo grande público, podem salvar o cinema e, também, os cinemas.
O crítico de cinema Herondes Cezar — o Inácio Araújo do Cerrado — poderia dizer, como Carlos Drummond de Andrade (ligeiramente modificado): “… quer ir para Piracanjuba,/Piracanjuba não há mais./José, e agora?”. Pois é, Candice Marques de Lima, João Paulo Teixeira e Marcelo Franco: e agora? Lima, Teixeira e Franco são jovens, e talvez não se lembrem dos bons tempos do Cine Rio, do Cine Santa Helena (que nem era tão bom assim), do Cine Eldorado (rei do Kung Fu), do Cine Casablanca, do Cine Frida (exibia os ditos filmes de arte), do Cine Capri, do Cine Ouro, do Cine Astro. Ah, sim, e por não mencionar o Cine Santa Maria, que exibia eróticos-pornográficos?