Nelson Piquet pode não ser racista? Sua fala sobre Lewis Hamilton é racista
19 abril 2023 às 18h00
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Além do racismo explícito, a fala do ex-piloto de Fórmula 1 mostra algo grau de homofobia e ele chega a ser desrespeitoso ao falar da ex-mulher do britânico
De tão entranhado na sociedade brasileira, de tão naturalizado que é o racismo, o racista, por vezes, não se considera racista.
Se pego em flagrante, o racista diz mais ou menos o seguinte: “Chamei de ‘neguinho’, mas só estava ‘brincando’”. Há até os que, ao falarem em “negro de alma branca”, sustentam que estão “elogiando”. E há, claro, os racistas incontornáveis — os que, além de vilipendiar de maneira contumaz, podem até matar.
O ex-piloto de Fórmula 1 e empresário Nelson Piquet, de 69 anos, é racista? Talvez sim. Talvez não. Frise-se que não se assume como racista. Há um histórico de racismo de sua parte?
Numa entrevista de 2021, que repercutiu globalmente agora, Piquet trata o extraordinário piloto Lewis Hamilton, de 37 anos, como “neguinho”. Sublinhe-se que o contexto é de crítica ao inglês. Confira a íntegra de sua fala: “O neguinho [Lewis Hamilton] meteu o carro e não deixou [desviar]. O Senna não fez isso. O Senna saiu reto. O neguinho meteu o carro e não deixou [Verstappen desviar]. O neguinho deixou o carro porque não tinha como passar dois carros naquela curva. Ele fez de sacanagem. A sorte dele foi que só o outro [Verstappen] se fodeu. Fez uma puta sacanagem”.
Vale ressaltar que Piquet se refere a Lewis Hamilton três vezes, e em nenhuma cita seu nome — optando por substitui-lo por “neguinho”. Não parece uma forma carinhosa de se referir ao piloto, que é negro. O tom, no geral, é desrespeitoso — tanto ao falar “neguinho”, uma referência a negro, mas também reduzindo a importância do piloto. Note-se que o ex-piloto fala a palavra “sacanagem” duas vezes — o que reforça que o uso de “neguinho” é outra forma de destratar o rival do genro Verstappen.
Ao ser acossado por críticas, feitas no Brasil e no exterior, que apontaram o racismo de sua fala, Piquet tentou se corrigir, numa nota que pode ter sido escrita por ele, mas também pode ter sido redigida por um advogado precavido. Porque, se quiser, Lewis Hamilton pode processar o ex-piloto. Racismo, afinal, é crime.
Transcreve-se, a seguir, a nota completa de Piquet: “Gostaria de esclarecer as histórias que circulam na mídia sobre um comentário que fiz em uma entrevista no ano passado. O que eu disse foi mal pensado, e não defendo isso, mas vou esclarecer que o termo usado é aquele que tem sido amplamente e historicamente usado coloquialmente no português brasileiro como sinônimo de ‘cara’ ou ‘pessoa’ e nunca teve a intenção de ofender. Eu nunca usaria a palavra da qual fui acusado em algumas traduções. Condeno veementemente qualquer sugestão de que a palavra tenha sido usada por mim com o objetivo de menosprezar um piloto por causa de sua cor de pele. Peço desculpas de todo o coração a todos que foram afetados, incluindo Lewis, que é um piloto incrível, mas a tradução em algumas mídias que agora circulam nas redes sociais não está correta. A discriminação não tem lugar na F-1 ou na sociedade e estou feliz em esclarecer meus pensamentos a esse respeito”.
Na mesma entrevista, Piquet ataca o finlandês Keke Rosberg, campeão da Fórmula 1 em 1982: “O Keke? Era um bosta, não tinha valor nenhum. É que nem o filho dele [Nico]. Ganhou um campeonato… O neguinho devia estar dando mais c… naquela época, aí tava meio ruim”. É outra referência a Lewis Hamilton, mais uma vez chamado de “neguinho”. Configura-se a insistência, ao tentar reduzir sua importância como piloto, de não mencionar o nome do britânico — optando por chamá-lo de “neguinho”. Verstappen e Keke Rosberg não são chamados de “branquinhos” ou “branquelos”. Está cristalizada uma atitude (ou comportamento) racista? Há indícios de que sim. O que diferencia Piquet de alguns racistas? Ele seria uma espécie de racista “particular”, quer dizer, não faz parte de grupos racistas? Para não exceder em relação ao ex-piloto, talvez seja preciso verificar seu histórico, para checar se há de fato um comportamento racista definido e persecutório.
A reação de Lewis Hamilton foi moderada e, ainda assim, contundente. “Por que continuarmos dando espaço a estas velhas vozes? Não devemos dar uma plataforma a estas pessoas. Falam do nosso esporte. Falam do nosso esporte e nós tentamos ir em uma direção completamente diferente, não é representativo”.
O piloto tem razão ao dizer: “Vamos focar em mudar a mentalidade”. A de Piquet é mesmo uma “velha voz” — a que ecoa desde os tempos da escravidão dos negros. Mas é, ao mesmo tempo, uma voz do presente, sugerindo, quem sabe, que os “neguinhos” não deveriam ter saído das senzalas, pois, ao saírem, estão tomando o espaço “dos” branquinhos, como Verstappen, que, por sinal, apressou-se a defender o sogro, postulando que “não é racista”.
A reação internacional foi dura, contra Piquet e a favor de Lewis Hamilton. A cúpula da Fórmula 1 divulgou um comunicado: “Linguagem discriminatória ou racista é inaceitável de qualquer forma e não deve fazer parte da sociedade. Lewis é um embaixador incrível do nosso esporte e merece respeito. Seus esforços incansáveis para aumentar a diversidade e a inclusão são uma lição para muitos e algo com o que estamos comprometidos na F1”. A BBC informa que a Piquet será banido do paddock de todas as provas.
A direção da Federação Internacional de Automobilismo se pronunciou: “A FIA condena veementemente qualquer linguagem e comportamento racista ou discriminatório, que não tem lugar no esporte ou na sociedade em geral. Expressamos nossa solidariedade a Lewis Hamilton e apoiamos totalmente seu compromisso com a igualdade, diversidade e inclusão no esporte a motor”.
A Mercedes, escuderia se Lewis Hamilton, também se manifestou: “Condenamos nos termos mais fortes qualquer uso de linguagem racista ou discriminatória de qualquer tipo. Lewis liderou os esforços do nosso esporte para combater o racismo e ele é um verdadeiro campeão da diversidade dentro e fora das pistas. Juntos, compartilhamos a visão de um automobilismo diversificado e inclusivo, e este episódio destaca a importância fundamental de continuar lutando por um futuro melhor”.
Vale, por sim, o registro do que disse o cantor e compositor Neguinho da Beija-Flor, de 73 anos: “Na minha opinião, é uma forma carinhosa de tratar o piloto. Se ele dissesse ‘negrinho’, já seria outra coisa. ‘Neguinho’ é uma forma carinhosa, mas ‘negrinho’ é ofensivo. A Sandra de Sá usa muito esse termo, o ‘neguinho’, mas ela está se referindo a uma pessoa. ‘Negrinho’ é pejorativo, como quem diz ‘dinheirinho’ pra falar de pouco dinheiro, ou ‘tempinho’ pra falar de pouco tempo. Quem fala ‘negrinho’ faz pouco caso”. O comentário beira à antropologia, a uma busca de “entendimento” e “conexão”? Talvez. O mais provável é que, na sua imensa boa vontade, quiçá de congraçamento entre “diferentes”, o grande Neguinho da Beija-Flor não tenha percebido, mais do que a malícia, a maldade — gratuita? — da fala de Piquet. Basta notar, o que o artista brasileiro não fez, como Lewis Hamilton recebeu a fala do ex-piloto.
Aproveitando-se da fala de outro negro, como que a endossá-lo, Piquet disse: “O próprio Neguinho da Beija-Flor nem vê racismo na expressão usada por mim”. O curioso é que, falando assim, o ex-piloto desautoriza a recepção de outra voz, a que se sentiu ofendida (e, na verdade, Piquet ofende todos os negros e os brancos não-racistas) — a de Lewis Hamilton. Ele usa a voz do artista para sufocar a do outro, o que anula, ao menos em parte, o seu pedido de desculpas, que aparenta ser mais protocolar do que verdadeiro.
Em 2014, ao se encontrar com Lewis Hamilton, Piquet disse: “Já faz um bom tempo que sinto inveja de você. Não apenas por seu talento, mas também por sua namorada” (Nicole Scherzinger. Os dois não estão mais juntos). Depois, acrescentou: “Nicole, onde está Nicole? Mande lembranças para ela”. Há uma concupiscência grosseira na fala do brasileiro que o inglês relevou. Outro brasileiro, se tão machista quanto Piquet, iria às vias de fato.
A história de que Ayrton Senna era gay
Li, nas redes sociais, que, por ser vinculado ao presidente Jair Bolsonaro, não se deveria esperar outra coisa de Piquet.
Em 1988, o repórter Sérgio Rodrigues, do “Jornal do Brasil, disse para Ayrton Senna: “Você deu uma sumida”. O piloto redarguiu: “Bota aí que eu sumi para dar espaço para o Piquet. Afinal, não faz sentido o cara ser tricampeão e eu continuar sendo assunto. Já que ninguém gosta muito dele, o único jeito era eu sumir pra que ele pudesse aparecer um pouco. Eu não tenho nenhum título e todo mundo só fala de mim”. O “JB” deu a manchete: “Senna diz que sumiu para Piquet aparecer”.
O repórter Eloir Maciel, do “JB”, ouviu de Piquet: “Ah é, ele falou isso? Então, vai perguntar pra ele por que ele não gosta de mulher”. A partir de então, consagrou-se a história de que Senna andava com mulheres bonitas para “esconder” sua suposta homossexualidade. O narrador esportivo da Globo sustenta que o piloto não era gay.
Então, o problema “de” Piquet não resulta de sua “parceria” política com Bolsonaro. Sua grosseria antecede o convívio com o presidente da República.
Texto publicado originalmente em 2022