O historiador Jacob Gorender escreveu um livro com o título de “O Escravismo Colonial” (gerou polêmicas nas faculdades de história e ciências sociais). Quem se habilita a escrever “O Escravismo Republicano”? Diz-se que trabalhadores foram encontrados em “situação análoga à escravidão”. O eufemismo, digamos assim, está na palavra do meio, “análoga”. Legalmente, não é como a escravidão que predominou até 13 de maio de 1888. Mas pessoas continuam sendo escravizadas e, algumas vezes, por grandes grupos econômicos — produtores de vinho, etanol e café. A responsabilidade não é tão-somente dos chamados “gatos” — os intermediários entre os trabalhadores e os empresários. Os capitalistas, que aumentam suas margens de lucro pagando uma ninharia pela mão de obra, são igualmente responsáveis. Ou até mais responsáveis. Por isso é justo que sejam investigados pelos governos, denunciados pelo Ministério Público e penalizados, com extremo rigor, pela Justiça.  (Ressalte-se que a Polícia Federal e o Ministério Público do Trabalho fazem um excelente trabalho de combate à excrescência gestada pelo moderno capitalismo patropi — a reinvenção da escravidão, ou seja, da barbárie.)

Trabalhadores em situação análoga à escravidão | Foto: Polícia Federal

A imprensa cobriu relativamente bem a libertação dos escravizados e ao publicar os nomes das empresas e dos empresários que, modernos na aparência, são adeptos da barbárie. O que falta fazer, mas isto depende de verificações mais detalhadas, inclusive com o apoio de sociólogos, antropólogos e historiadores, é uma análise mais ampla a respeito da história pessoal dos escravizados (quem são, de onde são, a maioria é negra?) e da permanência da escravidão (por que as empresas contornaram a ética e aceitaram práticas retardatárias?). Em seguida, será preciso ressaltar se as penas da Justiça foram realmente cumpridas e se os empresários (quem são? Li, nalgum lugar, que alguns têm financiamentos públicos) mudaram suas práticas (porque determinadas questões que parecem farsas quase sempre retornam como tragédias).

Li as principais reportagens publicadas nos jornais. Detectei o óbvio: os repórteres precisam examinar mais de perto os acontecimentos — repete-se, quase sempre, aquilo que as fontes oficiais, como polícia e governos, repassam, mas conversar diretamente com os escravizados, ouvir suas palavras, verificar seus corpos, seus movimentos, é crucial para o entendimento de quem são e como vivem. Falta, no geral, um exame das condições de sobrevivência deles nas cidades ondem moram.

Costuma-se ler, às vezes nas páginas de economia — uma jovem, herdeira de uma vinícola, disse que assumiu uma diretoria por mérito (o que talvez seja um equívoco) —, que o mérito é fundamental. Não há dúvida de que o mérito importa, mas, quando se discute o assunto, é preciso verificar as condições existenciais-sociais dos indivíduos. Como falar em mérito com cidadãos — que, a rigor, cidadãos não são — escravizados? Quais escolas seus filhos frequentam, se frequentam? A tirania do mérito é uma proteção aos que têm acesso a tudo, sobretudo a boas escolas, e uma maneira de esconder que a sociedade, ao avançar, deixa milhões de pessoas para trás — abandonadas e, daí, “achadas” por gatos e empresários inescrupulosos. Na sociedade brasileira, a igualdade é a primeira a chegar atrasada.

Polícia Federal liberta trabalhadores escravizados | Foto: Polícia Federal

Se há uma desgraça que atinge tantos, aos quais o Estado mal ampara — excesso com a Bolsa Família, a educação e o SUS (um dos melhores “programas sociais” do país) —, há luz no final do túnel? Sim, há. A libertação dos escravizados e a penalização dos escravizadores é um sinal de que as instituições — polícias (sobretudo a Federal), Ministério Público do Trabalho e Justiça — estão funcionando. No caso, ao contrário do que pensam marxistas radicais, o Estado está a serviço não dos ricos, como os donos de vinícolas e usinas de etanol, e sim da sociedade, do coletivo. Enfim, dos pobres.

A história de Jason Arday, negro e autista

Ao ler sobre os escravizados brasileiros — os nossos pobres, sempre vilipendiados —, acabei encontrando uma reportagem da BBC sobre Jason Arday, um negro britânico de 37 anos.

Jason Arday, autista e com atraso global do desenvolvimento, não falava até os 11 anos. Só aprendeu a ler e escrever aos 18 anos.

O jovem diz que, quando não falava, pensava: “Por que algumas pessoas moram na rua? Por que há guerras?”

Sua mãe, que não desistiu do garoto, apresentava-lhe músicas, clássicas e populares, com o objetivo “de que isso o ajudasse na conceitualização da linguagem”. O que acabou despertando seu interesse pela cultura popular.

Jason Arday: não falava nem escrevia até os 11 anos | Foto: Reprodução

Aos poucos, Jason Arday começou a ler e a escrever. Na universidade, encontrou um professor que se tornou seu orientador e amigo — Sandro Sandri.

Formado em Educação Física e Estudos da Educação na Universidade de Surrey, na Inglaterra, Jason Arday decidiu ser professor de Educação Física.

Observando atentamente a sociedade, Jason Arday começou a perceber “as desigualdades sistêmicas enfrentadas pelos jovens de minorias étnicas na educação”, registra a BBC.

Com pouco mais de 20 anos, Jason Arday decidiu cursar uma pós-graduação. O mestre Sandro Sandri disse: “Acho que você consegue. Acho que podemos conquistar o mundo e vencer”. O jovem disse à BBC: “Fazendo uma retrospectiva, aquela foi a primeira vez em que realmente acreditei em mim mesmo”.

Para se sustentar, Jason Arday dava aulas de Educação Física, numa universidade, e escrevia, à noite, artigos acadêmicos e estudava Sociologia. “Quando comecei a escrever artigos acadêmicos, não tinha ideia do que estava fazendo. Não tinha um orientador, e ninguém nunca me mostrou como escrever. Tudo o que eu apresentava era violentamente rejeitado.” Porém, ele foi aprendendo sozinho, sobretudo ao examinar como os cientistas pensavam e escreviam.

Em 2016, Jason Arday teve sua tese de doutorado aprovada pela Universidade John Moores, de Liverpool. Ele tem dois mestrados e um doutorado em Estudos da Educação.

Jason Arday foi contratado, este mês, para dar aulas de Sociologia da Educação em Cambridge, umas mais prestigiosas universidades do mundo. A universidade só tem cinco professores negros. A BBC relata que, “dos mais de 23 mil professores universitários do país, apenas 155 são negros”.

Em Cambridge Jason Arday não quer ser um professor a mais — que fazer a diferença. Segundo a BBC, ele “tem interesse particular em melhorar a representação das minorias étnicas no ensino superior”.

“Meu trabalho se concentra principalmente em como podemos abrir portas para mais pessoas socialmente desfavorecidas e democratizar verdadeiramente a educação superior. Espero que estar em um lugar como Cambridge me forneça as ferramentas para promover esta agenda em nível nacional e internacional”, afirma Jason Arday. Depois, disse uma coisa que desperta a minha atenção: “Falar sobre isso é uma coisa; fazer é o que interessa”.

O primeiro artigo científico de Jason Arday foi publicado em 2018 e, então, ele se tornou professor na Universidade de Rochampton e, depois, na Universidade de Durham. Era professor de Sociologia. Na Universidade de Glasgow, deu aulas de Sociologia da Educação.

No momento, Jason Arday pesquisa “sobre neurodiversidade e estudantes negros”, em parceria com a pesquisadora Chantelle Lewis, da Universidade de Oxford. “Cambridge já está fazendo mudanças significativas e atingiu ganhos notáveis na tentativa de diversificar o cenário. Mas há muito mais a ser feito — aqui e em todo o setor. A universidade tem pessoas e recursos notáveis; o desafio é como usar esse capital para melhorar as coisas para todos e não apenas para alguns. Fazer isso corretamente é uma arte — é preciso diplomacia real e todos precisam estar inspirados para trabalhar juntos.”

Jason Arday sublinha que, “se quisermos tornar a educação mais inclusiva, as melhores ferramentas que temos são a solidariedade, a compreensão e o amor”.

Voltando à escravidão no Brasil — que é mais ampla do que se imaginou inicialmente. O que os governos federal e estaduais podem fazer para incluir os trabalhadores escravizados e suas famílias? A Bolsa Família é crucial, pois as pessoas precisam ter o básico, como alimentação. Mas como ir além disso, abrindo espaços reais para a inclusão destes indivíduos que o crescimento econômico — o fetiche de todos — sempre deixa para trás, como retardatários, às vezes invisíveis. Tão invisíveis que a sociedade demorou a perceber que estavam sendo escravizados bem próximos de todos nós. Um começo — um bom começo — é melhorar a educação nas escolas reservadas aos pobres, as públicas. Mas sem perder de vista os pais — que precisam de trabalho. As vinícolas querem refazer suas imagens, porque senão irão à falência — é provável, até, que tenham de mudar os nomes de seus produtos —, então por que não propõem contratar os ex-escravizados com salários e condições de trabalho dignos? Por que os empresários não reservam parte de seus lucros para bancar a educação dos filhos dos ex-escravizados — mostrando que podem ajudar o Estado e que têm preocupações sociais verdadeiras?

Durante anos, alguns intelectuais criticaram, de maneira acerba, as cotas sociais e raciais. Mas elas são mesmo necessárias, até vitais, num país que se recusa a abolir, na prática, a escravatura.