Neca Setubal, herdeira do Itaú, e famílias ricas vão criar fundo para investir na Amazônia

22 janeiro 2023 às 00h00

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Há um descompasso entre o que se diz e o que se faz. Pregamos uma coisa e fazemos outra. Assim são os indivíduos. Nós. Saímos de um debate sobre preservação do meio ambiente e, logo adiante, jogamos um plástico no chão, como se fosse perfeitamente normal, pois alguém irá recolhê-lo. Ambientalmente corretos, falamos da poluição e, se pudermos, usamos carros mais potentes e, em geral, que consumem mais combustíveis e, por vezes, até poluem mais. É a vida — um poço de contradições, quiçá insanáveis.
Há excesso de seres humanos no mundo, o que significa que o espaço será cada mais encurtado para os outros animais. Há onças, jiboias e tamanduás “invadindo” as cidades, registram reportagens de jornais e emissoras de televisão, escandalizando os citadinos. A questão de que estão sem espaço para viver, os alimentos são cada vez mais escassos, nem sempre é ressaltada. Cientistas dizem que a “sexta extinção” será — ou melhor, está sendo — provocada por homens e mulheres. As outras cinco “extinções” foram, digamos assim, “naturais”. A atual é, por assim dizer, “artificial”. Afirmando-nos como “deuses da Terra”, nós, todos nós, somos imensamente destrutivos. Mesmo aqueles que têm consciência, que fazem sua parte para não piorar tanto o planeta, dão sua cota para os, diriam religiosos, “fins dos tempos”. A ciência poderá nos salvar de um armagedon futuro? Talvez sim. Talvez não. O mais certo é que não. Um grupo de leitores dirá, é claro: trata-se de uma visão meramente apocalíptica. Talvez seja. Talvez não seja. É provável que seja tão-somente realista.

A Terra suportará a nossa expansão demográfica? Na semana passada, a imprensa comemorou que a população da China não está crescendo. Há mesmo motivo para comemorar? O país tem 1,4 bilhão de habitantes — então, um ligeiro decréscimo não é nada significativo.
Com sua típica visão economicista, o Nobel de Economia Paul Krugman disse, num artigo, que “uma população em declínio cria dois grandes problemas para a gestão econômica. (…) O primeiro problema é que uma população em declínio é uma população envelhecida — e em todas as sociedades que conheço dependemos dos mais jovens para sustentar os mais velhos. (…) O outro problema é mais sutil, mas também sério. Para manter o pleno emprego, uma sociedade deve manter o gasto geral alto o suficiente para acompanhar a capacidade produtiva da economia”.
O diagnóstico econômico — ou economicista — não está incorreto, é certo. Mas, do ponto de vista do meio ambiente, a redução da população é extremamente benéfica, ainda mais se considerando a quantidade, imensa, de gente que já habita a China. A Terra, se pudesse, agradeceria.
No Brasil, há duas grandes questões, e o governo de Lula da Silva, do PT, parece mesmo disposto a enfrentá-las. Primeiro, o problema das desigualdades sociais. Segundo, os desastres ambientes, que, frisemos, não têm a ver apenas com a Amazônia, que, dado seu gigantismo, é mais vista. Quando era procurador-geral de Justiça do Ministério Público de Goiás, Demóstenes Torres tentou incentivar os governos a criarem uma política para recuperar o Rio Araguaia, a partir da preservação de suas nascentes. Sua intenção era positiva, mas não obteve apoio nem do setor público nem do setor privado.

Pensa-se, quase sempre, que apenas o Estado deve trabalhar para reduzir as desigualdades sociais. E, ante a omissão dos ricos — das elites —, o Estado deve mesmo cuidar dos pobres, inclusive passando por cima do teto fiscal, se necessário. Lula da Silva fala em “reindustrialização” do Brasil, o que terá custo, dos mais altos, para o governo federal. Alguém fala contra? Necurimba. Porque se acredita que, como mais indústrias, se terá mais empregos e, em tese, mais empregos significa menos pobreza. Ocorre que a maioria dos pobres, aqueles deserdados de tudo — por exemplo, de formação adequada para “disputar” os empregos ditos qualificados —, não tem condições de competir, em igualdade de condições, com aqueles que se tornaram integrantes das classes médias. A defesa do primado do “mérito” é típica de quem ignora realmente o que acontece no seu entorno.
Os pobres, aqueles que foram deixados à margem na estrada do tempo, desde a barbárie chamada escravidão — um verdadeiro genocídio —, são responsabilidade apenas do Estado? Não são. A sociedade — sobretudo as elites do dinheiro — precisa se engajar, com fundações, por exemplo, na redução das desigualdades sociais. Os ricos poderiam compartilhar parte de suas fortunas com a melhoria da escola pública. Seria um avanço imenso. Grupos de empresários e banqueiros — alguns deles são compromissados socialmente — poderiam cuidar, com o apoio do Estado, de determinadas escolas da periferia. Poderiam criar programas de acompanhamento dos alunos até que chegassem nas universidades e, daí, ao mercado de trabalho.

Elites verdadeiras precisam se preocupar com a “ilustração” dos pobres. Porque educação de qualidade é, de fato, um dos melhores programas sociais que se pode implantar num país.
Os ricos estão se despertando para a questão ambiental, o que é positivo. Porque não se pode esperar que o Estado resolva tudo. O mercado precisa ter compromisso com a vida… de todos.
Na sexta-feira, 20, o jornal “Valor Econômico” publicou a reportagem “Neca Setubal reúne família para criar fundo e investir na Amazônia”.
Maria Alice Setubal, Neca, é representante de uma elite diferenciada, que pensa nos pobres e no meio ambiente. Trata-se de um caso ímpar.
A socióloga Neca Setubal, herdeira do Banco Itaú, resolveu que, no lugar de ficar “interpretando o mundo” — e desancando o capitalismo —, é melhor, além de mais saudável para todos, transformá-lo (no que, mesmo não sendo comunista ou socialista utópica, segue o filósofo alemão Karl Marx).
Neca Setubal decidiu organizar um fundo filantrópico, com o apoio de famílias ricas do país, com o objetivo de investir na recuperação da Amazônia. Ela tem conversado com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, sobre o assunto.
Com o apoio de Beatriz Bracher, a presidente da Fundação Tide, Neca Setubal, está alinhavando o projeto que captará recursos para o Fundo Amazônia.
“Vamos começar a procurar as fundações e famílias brasileiras que podem aportar recursos no fundo”, assinala Neca Setubal. A filantropa frisa que os brasileiros devem contribuir para a formatação financeira do Fundo Amazônia. “Esse é conceito básico. Achamos o projeto tão importante que não pode ficar apenas com governos e filantropias internacionais”, sublinha. “As conversas ainda estão no começo.”
As fundações dirigidas pelo ator Leonardo DiCaprio e pelo bilionário Jeff Bezos planejam investir 100 milhões de dólares — mais de meio bilhão de reais — na Amazônia.
A Amazônia precisa de vários projetos. Porque é preciso cuidar da floresta em si, ampliando a preservação — recuperando sua estrutura —, e também dos homens da região. Projetos de preservação devem incluir a floresta, a terra e indivíduos. Os moradores da área devem ser convencidos a participar da “restauração” da Amazônia. Os projetos precisam, de alguma maneira, inclui-los. Portanto, é preciso conectar questões ambientais e sociais. Empresários locais devem ser convidados a partir dos projetos e, claro, ter lucros financeiros. A reportagem do “Valor” não discute a questão exposta neste parágrafo. Mas insistamos que os homens amazônicos devem ser vistos como espécies de outras florestas.
A admirável Neca Setubal enfatiza que “existe um conceito, para além dos governos europeus e dos Estados Unidos, de que a filantropia pode participar mais ativamente dos projetos pró-Amazônia. “A ideia é que a filantropia brasileira também se manifeste. Esse é o conceito básico.”
A filantropa afirma, de acordo com a reportagem de Mônica Scaramuzzo, que “o projeto e as conversas com famílias e empresas brasileiras devem começar a ser estruturadas nas próximas semanas”. Neca Setubal relata que “tem um grupo de pessoas e vários empresários já engajados na Concertação pela Amazônia, com várias iniciativas. Isso já demonstra que uma parte deles já está comprometida com a Amazônia. Se eles estão comprometidos na filantropia ainda não dá para saber”.
Entrevistado pelo “Valor”, o cientista Carlos Nobre disse que o Fundo Amazônia tem potencial para captar cerca de 10 bilhões de dólares. No momento, conta com 1,2 bilhão de dólares. O pesquisador esteve com a ministra Marina Silva, tão admirável quanto Neca Setubal, no Fórum Econômico Mundial, em Davos.
Marina Silva informa que a Alemanha e a Noruega decidiram aportar mais recursos no Fundo Amazônia. O Reino Unido decidiu apoiar o fundo, com recursos financeiros.
O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro — com sua política de “passar a boiada”, de abrir as portas para o desmatamento e o garimpo predatório — contribuiu para a paralisação do Fundo Amazônia, em 2019, no primeiro ano de sua gestão. O fundo foi criado em 2008.