Não batam nas crianças, uma dívida com a vida
26 abril 2023 às 19h25
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Marcos Antonio Ribeiro Moraes
Especial para o Jornal Opção
Nos últimos dias temos nos deparado, com horror, com notícias de ataques cruéis às escolas no Brasil, fazendo de algumas crianças vítimas fatais. O ataque à infância é uma questão que nos causa comoção e indignação. Nos interroga de diferentes maneiras. Dentre essas, podemos citar algumas: o abandono afetivo, a violência intrafamiliar, com destaque para a violência sexual, a precariedade das políticas públicas para crianças, a desnutrição, a exposição indiscriminada de nossos pequenos às telas digitais e à internet, entre outras.
A pergunta que me ocorre é: qual valor e prioridade têm a infância e a educação em nossa sociedade? Educar as crianças é uma questão que se dirige a uma família, às diferentes instituições e à sociedade. Esse entendimento pode ser ilustrado por um provérbio africano: “É preciso uma aldeia inteira para se educar uma criança”.
Recentemente, tive a alegria de participar, em minha casa de Axé, o Ilé Asé Òpó Olú Odé Aláàyédá, de um culto de matriz africana, muito tradicional na Bahia, o Culto de Babá, no qual ocorre a manifestação de ancestrais, que vêm dançar e trazer ensinamentos para a comunidade. Me tocou profundamente a insistência com a qual nossos Babás insistiram: “Cuidem das crianças, não batam nas crianças”.
Na sequência, um desses pais ancestrais chamou para perto de si todas as crianças que estavam presentes e, depois de abençoá-las, pediu que todas fossem até os atabaques e tocassem para ele dançar. Elas tocaram com mestria e Ele dançou com toda alegria. Essa cena teve para mim uma força reparadora de uma outra cena, essa por sua vez traumática, a de um ex-presidente da República colocando arma de fogo na mão de uma criança que estava em seus braços.
Não batam nas crianças, deixem que as crianças façam ressoar os atabaques. Poucas palavras e uma cena profunda que se inscreveu em mim, estabelecendo uma significativa ponte entre ancestralidade e infância, uma metáfora do ato de educar. Uma ponte necessária para que a história e a cultura não sejam apagadas pela violência e nem percam a força de sustentação de nosso pacto civilizatório. Essa ponte me pareceu figurada nesse toque dos atabaques.
Freud: cura do sujeito e fragmentos da infância
Pois, no candomblé, é por meio da música que se veicula a transmissão dos ensinamentos ancestrais, transmissão oral por excelência. Aqui, cuidar de uma criança é cuidar da história e memória ancestral, como de um rio caudaloso, que não pode ser interrompido, com toda a sua riqueza simbólica que nos sustenta, como seres humanos, falantes. “Há que se cuidar do broto / Pra que a vida nos dê / Flor e fruto.” Não por acaso, desde Freud, o processo de cura do sujeito é inseparável da elaboração e reconstrução dos fragmentos da infância, da história de cada um.
Bater ou não, numa criança, é tema de muitos debates em diferentes setores e muito especialmente, para o que se refere à educação.
A esse respeito, a psicanálise tem uma contribuição singular, ao investigar a fantasia que sustenta essa cena agressiva de surrar uma criança. É curioso pensar que Freud escreveu em 1919, justamente num período entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, um texto com o título: “Bate-se numa criança”. Nele, suas interrogações estão dirigidas à relação entre o masoquismo e a fantasia de bater numa criança, fantasia essa que muitos de seus pacientes lhe relatavam em análise.
Esse período entre as duas grandes guerras mundiais foi também o momento de uma virada no entendimento do conceito de pulsão, com a afirmação da existência da pulsão de morte entrelaçada à pulsão de vida. A partir de então, passamos a compreender a fantasia de um sujeito como algo que pulsionalmente vai “além do princípio do prazer”, podendo se expressar no gozo em causar ou sofrer dor, no qual predomina a pulsão de morte. Satisfação essa que sustenta o par sadomasoquista, além de diferentes modalidades de perversão e até mesmo as guerras entre os povos.
Desde então, ficamos advertidos da importância de zelar, e de evitar que a educação seja um ato perverso, mas que, ao contrário, se torne um caminho para evitarmos a repetição da barbárie. Tudo isso partindo do entendimento que cada um de nós tem a predisposição a sermos tomados por um gozo mortífero, inclusive no ato de educar.
De tal forma, vale sempre nos interrogarmos sobre o modo como exercemos a função de autoridade na tarefa de transmitir o saber e as riquezas de nossa ancestralidade. Como dar limites, afetos e o saber herdado?
Lacan denomina essa tarefa de transmissão de uma “dívida simbólica” ou “dívida de vida”. Pois não podemos reembolsar nossos pais monetariamente, como pagamento por essa dádiva/dívida, mas sim transmiti-la à próxima geração, para que produza algo que equivalha à vida recebida, e assim sucessivamente.
Uma transmissão a se dar no campo da linguagem, do rito, ritmo de nossas tradições, do saber cuidar de si mesmo, do outro e de todo ecossistema. Transmissão de significantes referidos às interdições de gozos perversos e incestuosos. E de significantes que autorizam e apontam as possiblidades de amar e se sustentar no campo do desejo. Isso é o que há de mais necessário para nos humanizarmos e nos mantermos no pacto civilizatório, essa é a via do amor.
A dívida simbólica é diferente de uma dívida, puramente superegoica, no seu modo rígido, tirânico, feroz, baseado na culpa e violência contra o outro, o diferente e contra a infância. A criança é por excelência uma alteridade para o adulto.
O ato de educar comporta, portando, a oferta de condições para lidar com diferenças e limites, com o que sempre faltará na relação entre o sujeito e o outro. Fazendo a justa diferenciação entre sinalizar o que não é possível ser concedido e o que é possível de ser acessado da maneira mais sublime.
Para isso é preciso o uso da palavra, atuar no campo da linguagem. A essa oferta de limites e possibilidades damos o nome de castração, que não é um nome muito bonito para um conceito tão rico e necessário. Mas essa dita castração há que ser simbólica, lúdica e até poética, para que a criança possa se organizar pulsionalmente em seu corpo, ritmo e tempo.
E se abrir ao campo da linguagem de forma criativa, com autonomia e controle da agressividade, no seu meio cultural e laço social, como sujeito desejante. Hoje mais do que nunca vale essa exortação: “Não batam nas crianças” Não impeçam o fluxo do rio da vida, por onde há que correr a nossa riqueza ancestral. Deixem as crianças tocarem as suas mais diversas melodias.
Marcos Antonio Ribeiro Moraes é psicanalista. É colaborador do Jornal Opção.