A mulher cuja profissão de fé é libertar escravos num Brasil que mistura modernidade e barbárie
27 junho 2015 às 10h09
COMPARTILHAR
Qualquer que seja a forma, a escravidão é uma barbárie. O Brasil aboliu a escravidão há 127 anos. Mas fazendeiros a reinventaram como escravidão por dívida. Histórias impressionantes e dolorosas são contadas no livro “A Dama da Liberdade — A História de Marinalva Dantas, a Mulher Que Libertou 2.354 Trabalhadores Escravos no Brasil, em Pleno Século 21” (Benvirá, 375 páginas), do jornalista Klester Cavalcanti.
Mulher de rara fibra, Marinalva Dantas é auditora fiscal do Ministério do Trabalho — atua no Grupo Especial de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, conhecido como “a Móvel” — e especializou-se, como uma princesa Isabel plebeia, em libertar escravos contemporâneos.
O livro do jornalista Klester Cavalcanti, ex-“Veja” e ex-“IstoÉ”, é sereno, não faz discursos (os fatos são os discursos). A história dos novos escravos choca e comove por si. Um dos personagens é o goiano Luiz Carlos Machado, o Luiz Bang, que, depois de uma intensa atividade como gato (agenciador de mão de obra), se tornou pistoleiro, segundo a obra, fazendeiro e prefeito no Mato Grosso.
Uma das histórias mais comoventes é a do ex-escravo Francisco Ferreira, de 16 anos (com feições de 30). Ao ser libertado de uma fazenda da família Mutran — uma das mais poderosas do Pará —, recebeu R$ 1.140 de indenização. “Ele olhava para aquelas cédulas de R$ 50, R$ 20 e R$ 10 com incredulidade e deslumbramento. Nunca vira tanto dinheiro na vida.” Marinalva quis saber o que ia fazer com o dinheiro. Francisco Ferreira respondeu, candidamente: “Ainda não sei, doutora. Acho que vou usar metade pra arrumar minha vida em Teresina e a outra metade vou guardar, pra dar um futuro decente pro meu filho. Não quero que ele sofra na vida que nem eu”.
Em Alvorada do Gurguéia, no Piauí, o produtor rural Adauto Rodrigues planta algodão, financiado pelo governo federal. Para colhê-lo, recrutou trabalhadores na Bahia, a quase 1,1 mil quilômetros de distância. Os homens foram levados num caminhão, com mulheres, adolescentes e crianças, sob um sol inclemente e, às vezes, chuva. Durante a viagem, a alimentação era “apenas dois pães por dia, para cada pessoa”. Na fazenda, onde chegaram famintos e desidratados, os baianos — negros — descobriram que, quanto mais trabalhavam, mais endividados ficavam. Era a escravidão por dívida.
Os escravos são a “gente invisível”, no dizer de Marinalva Dantas — ecoando, de alguma maneira, o escritor americano Ralph Ellison, autor do romance “Homem Invisível”. São pessoas que, deslocadas de um lugar para o outro, não têm ninguém para defendê-las — exceto quando descobertas pelo Ministério Público, pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e pelos auditores do Ministério do Trabalho.
Klester Cavalcanti sugere que a vida do escravo moderno chega a ser pior do que a do escravo dos tempos de Colônia e Império, muito embora as duas formas de escravidão sejam condenáveis.
A respeito dos escravos “recrutados” como trabalhadores na Bahia, Klester Cavalcanti escreve: “Exatamente como os colonizadores portugueses faziam há quase 500 anos, aqueles negros baianos tinham sido igualmente tratados sem o menor respeito ou preocupação em relação à sua saúde. Haviam percorrido cerca de 1,1 mil quilômetros empilhados como mercadoria, sujeitos a todo tipo de intempérie e com alimentação precária. Situação idêntica aos relatos das viagens nos navios negreiros. Eram, como seus antepassados africanos, nada além de força física para a lavoura. Havia, porém, uma diferença que tornava a situação dos escravos contemporâneos ainda pior do que a dos cativos do passado. Antes, o escravo era comprado pelo seu senhor, o que fazia com que fosse considerado um bem, um patrimônio. Assim, os fazendeiros e usineiros da época queriam ver seus escravos fortes e saudáveis, para poderem trabalhar com afinco. Um negro doente ou morto era sinônimo de prejuízo. Os escravagistas do século 21 não têm essa preocupação. Se um dos seus cativos adoecer ou morrer, não há problema. Afinal, ele — o fazendeiro — não pagou nada por aquele infeliz. Esse é um dos motivos pelos quais os escravos da atualidade são tão maltratados, largados para viver em cabanas no meio do mato, sem água potável, sem higiene e com alimentação sofrível. Ser escravo no Brasil do século 16 era menos doloroso do que o ser naquele universo que já fazia parte da vida de Marinalva”.
No Brasil, o do século 21, o capitalismo permanece selvagem? Em parte, sim. As ideias continuam, portanto, fora do lugar. O Brasil é um país que mistura liberalismo e socialdemocracia — com privatizações e forte investimento no social —, mas ainda convive com práticas bárbaras, criminosas. O primeiro presidente a combater o trabalho escravo de maneira mais eficaz foi Fernando Henrique Cardoso, do PSDB. O PT mantém o combate ao trabalho escravo, mas muitos fazendeiros resistem às ações do Ministério do Trabalho, do Ministério Público e da Justiça. Sob o PT, Marinalva Dantas chegou a ser “discriminada” no Ministério do Trabalho, depois que autuou um deputado estadual e um deputado federal, pai e filho.
O escravo de 12 anos que não conhecia a música “Parabéns pra Você”
Em maio de 2013, os auditores do Ministério do Trabalho e a Polícia Federal encontraram trabalhadores escravos, entre eles garotos, na Fazenda Ponta de Pedra, no município de Marabá, no Pará. Lá, a auditora Marinalva Dantas conversou com o menino-escravo Divonaide Ferreira da Silva, de 12 anos, nascido no interior de Goiás. Nos 23 meses em que permaneceu trabalhando na fazenda, sem nada receber, “o menino enfrentou fome, sede, contraiu dengue e passou várias noites ensopado, sem conseguir dormir de tanto frio”.
Divonaide não sabia nem mesmo sua idade. “Quantos anos você tem?”, Marinalva perguntou. “O quê?”, disse, pedindo o apoio do pai. A auditora insistiu: “Quantos anos você tem, meu filho? Qual a sua idade?”. O menino respondeu: “Sei não, senhora”. Auditora: “Meu filho, quando as pessoas cantam ‘Parabéns pra Você”? Divonaide: “Que música?” A auditora cantou: “‘Parabéns pra você, nesta data querida. Muitas felicidades. Muitos anos de vida”. Divonaide: “Sei não”. Auditora: “Você lembra qual foi a última vez que cantaram essa música pra você?” Divonaide: “Nunca ouvi essa música, não, senhora”. Auditora: “Nunca? Tem certeza?” Divonaide: “Nunca”. A jornalista espanhola Clara Balboa, da TV Espanhola, ouviu atentamente as respostas do menino e chorou
Depois, Marinalva perguntou: “Você consegue ter algum tempo pra brincar?” Divonaide: “Às vezes”. Marinalva: “Que bom! E como você brinca?” Divonaide: “Eu fico desmontando e montando a motosserra. Tem um monte de pecinha lá dentro”. O garoto e o pai eram “motoqueiros” na fazenda, quer dizer, operadores de motosserra na linguagem dos peões. Divonaide é louro e tem olhos azuis.
Klester Cavalcanti relata que “o pecuarista paulista Euclebe Vessoni”, proprietário da Fazenda Ponta de Pedra, “foi condenado pela Justiça do Trabalho, em 2004, a pagar a maior indenização por dano moral coletivo já deferida até aquela época. Em processo movido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), Vessoni foi obrigado a pagar R$ 384 mil pelos crimes que cometera, como explorar mão de obra escrava, trabalho infantil, não pagar os lavradores, não registrar os empregados em Carteira de Trabalho e não fornecer água potável aos trabalhadores”.