Morre Letizia Battaglia, cujas fotografias desnudaram e desafiaram a Máfia siciliana

15 abril 2022 às 12h45

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“Medo eu sempre tive, mas as fotos precisavam ser feitas. Palavras precisavam ser ditas contra a Máfia”

A Máfia glamourizada do cinema é vingativa e mata. Mas a Máfia real é ainda mais perigosa e letal. Aquele que a desafia às vezes tem de começar a chamar caixão de “amigo”. Pois a fotógrafa siciliana Letizia Battaglia — que morreu na quarta-feira, 13, aos 87 anos — enfrentou e desafiou a Máfia várias vezes. “Medo eu sempre tive, mas as fotos precisavam ser feitas. Palavras precisavam ser ditas contra a Máfia. Para mim, era importante que as fotografias também registrassem a emoção de quem estava atrás da câmera, que a minha presença fosse reconhecida ali”, disse, numa entrevista ao jornal “O Globo”, em 2018. A Máfia a ameaçou de morte várias vezes, mas não conseguiu intimidá-la.
Mesmo numa cadeira de rodas, e doente, Letizia Battaglia se mantinha uma mulher destemida. “Palermo perde uma mulher extraordinária, um ponto de referência. Letizia Battaglia foi um símbolo reconhecido internacionalmente no mundo da arte, uma bandeira no caminho da libertação da cidade de Palermo do governo da máfia”, disse o prefeito Leoluca Orlando.

Letizia Battaglia tinha duas “armas”, uma vespa, com a qual se locomovia, e uma Leica, com a qual documentava e “desentorpecia” o mundo ao redor. Suas fotos sobre a violência da Máfia são “chocantes”? Na verdade, chocante mesmo era a realidade que mostravam. As batalhas mafiosas, entre si e contra políticos e magistrados — que resultaram em muitas mortes —, foram “descritas”, com imagens, pela fotógrafa, uma autêntica repórter. Suas fotografias eram verdadeiros “editoriais” sem palavras — fortes, candentes — e, por vezes, despertaram ainda mais as autoridades da Itália do que muitos textos.
Em 1979, quando o chefão da Máfia Leoluca Bagarella foi preso, Letizia Battaglia estava a postos para fotografá-lo, intimorata, para o jornal comunista “L’Ora. Irritado, o chefão decidiu chutá-la. Assustada, ante a fúria do monstro, ela chegou a cair. Mas não arredou pé. A foto mostra um Bagarella irado, mas cabisbaixo — derrotado pelas forças policiais e pela Justiça. Numa entrevista à “New York Review of Books”, Alexander Stille, autor de “Morte a Vossa Excelência: Entenda a Verdadeira História do Juiz que Desafiou e Abalou a Máfia” (Citadel Editora, 480 páginas), falou sobre a fotógrafa: “Ela documentou as atrocidades da máfia muito antes de ser popular ou seguro fazê-lo”.

Aos 36 anos, lutando contra a acomodação e a falta de liberdade, Letizia Battaglia abandonou o marido, em Palermo (capital da Sicília) e, com três filhas, mudou-se para Milão. Escrevia em jornais e revistas. Fez mais sucesso quando decidiu enviar, além das reportagens, fotografias para as redações. Os editores por certo perceberam que suas melhores reportagens eram as fotografias, que revelavam um olhar sensível e perceptivo para aquilo que, às vezes naturalizado, poucos percebiam. Logo ficou famosa.
A violência de Palermo, onde atua a máfia Cosa Nostra, incomodava Letizia Battaglia. A violência em si e a possibilidade de que, ao cobri-la tão de perto, se tornasse uma prisioneira dos acontecimentos (de fatos “naturalizados” por uma visão fatalista) deixavam-na preocupada. Por isso, depois do trabalho tradicional, o de radiografar a violência urbana, dos homens do poder paralelo — quase um segundo Estado —, ela saía às ruas com o objetivo de fotografar alguma coisa que dissesse respeito, não à morte, e sim à vida. Nos bairros pobres de Palermo, fotografou crianças, quase sempre meninas, quiçá com o objetivo de registrar outro tipo de violência. Tais fotos parecem — e, a rigor, são —quadros. “As meninas me salvaram. Eu estava tão habituada a uma rotina de sangue e morte que comecei a fotografar crianças em busca de alguma esperança, algum sonho, alguma força. Depois de fotografar mortos o dia inteiro, eu queria registrar algo positivo: crianças, mulheres, um pássaro ou uma flor. Qualquer coisa que tivesse vida.”

Ao visitar o Brasil, em 2018, já com 82 anos, alertou os anfitriões que pretendia fotografar travestis nas ruas de São Paulo. Por quê? Certamente porque, enquanto trabalham nas avenidas das cidades brasileiras, eles correm risco, às vezes, até de serem assassinados.
Inquieta, Letizia Battaglia, filiada ao Partido Verde, se tornou conselheira municipal e, em 1991, deputada regional. Ela afirmava que amava Palermo, onde nasceu, “como quem ama uma pessoa doente, que precisa de cuidados”.
Segundo “O Globo”, “dona de um arquivo de mais de 600 mil imagens, Battaglia com frequência recebia pedidos de ajuda de investigadores da polícia, em busca de evidências que pudessem estar em suas imagens. Uma vez, chamou sua coleção de ‘arquivo de sangue’”.

O documentário “Shooting the Mafia”, do cineasta britânico Kim Longinotto, retrata o trabalho de Letizia Battaglia a respeito da Máfia italiana. Aliás, quando se trata de Máfia, é mais preciso falar “máfias”. Porque há várias máfias na Itália, nem sempre conectadas — todas violentas; umas mais, outras menos. A Máfia da Sicília é a Cosa Nostra — que teria inspirado o filme “O Poderoso Chefão”, dirigido por Francis Ford Coppola e baseado no romance de Mario Puzo. Há também a Camorra (de Nápoles) e a ‘Ndrangheta (da Calábria). As máfias italianas mais recentes são: Stidda (Sicília central), Sacra Corona Unita (região da Puglia), Bando della Magliana (Roma) e Máfia Capital.

Na elaboração do texto acima, usei informações dispostas na reportagem “Morre Letizia Battaglia, fotógrafa que registrou a máfia italiana, aos 87 anos”, de “O Globo”, com a agência Reuters.