Morre Gilson Cavalcante, jornalista que era, acima de tudo, um grande poeta
14 março 2023 às 10h31
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Gilson Cavalcante: profissão: poeta. Era jornalista e gostava de escrever para jornais, com sua leveza e inteligência sensível habituais. Mas, para ele, jornalismo era trabalho. Poesia era prazer, sua vida — espécie de “sangue” que corria em suas veias, coração e cérebro.
Há poetas que nascem poetas, vivem como poetas e morrem poetas. É o caso do bardo Gilson Carlos Cavalcante, que morreu na terça-feira, 14, na sua casa, localizada no distrito de Taquaruçu, em Palmas, aos 68 anos. Era o mais goiano dos tocantinenses e o mais tocantinense dos goianos. Nasceu em Porangatu, em 1954, praticamente na fronteira entre os dois Estados-hermanos. Era um homem — poeta — de paixões. Acima de tudo, amava a poesia — a sua e a de outros vates. Ele apreciava ser “surpreendido” pelo novo. Postei poesias de Emily Dickinson e D. H. Lawrence e Gilsinho se mostrava entusiasmado com a poeta americana e com o poeta britânico.
Gilson Cavalcante era diabético, hipertenso e tinha Parkinson. Os médicos decidiram interná-lo, em fevereiro. Em seguida, ele voltou para casa.
Em Goiânia, Gilson Cavalcante trabalhou no “Diário da Manhã”, como editor de Economia (comecei a trabalhar com ele, ao lado da repórter Elaine Ponchio). Era um editor-irmão. Não entendia muito de economia, como nenhum de nós, seus repórteres. Mas era um chefe criativo e sempre de bom humor. Nunca ficava bravo com os erros cometidos (um dia ele me disse, após ouvir um editor gritar com um repórter: “Amigo, se gritar resolvesse, eu gritaria todos os dias”).
Mais tarde, se tornou correspondente do Jornal Opção no Tocantins. Às vezes, sumia e, inquirido, dizia, simplesmente: “Eu estava poetando”. Ele era assim: sua alegria — em parte, sublimação de uma infância difícil, sem mãe (Celina Pereira Cavalcante morreu quando ele era criança), criado pelo pai (João Lino Cavalcante, o Juanito) e pela madrasta — advinha da poesia e de viver como poeta, livre, leve e solto (ele era indomável e não se sujeitava à ordem, embora às vezes fingisse que estava se submetendo). Sua poesia metafísica parece simples, mas não é. Ao contrário, é de uma sofisticação rara. Seu lirismo é pungente, mas nada piegas. Há pessoas que se acham “grandes”, pois Gilsinho era grande, como poeta e indivíduo, mas não se dava a importância que realmente tinha. Era simples — como um hippie da década de 1960, e não os hippies prêt-à-porter dos tempos atuais.
Como Gilson, nasci em Porangatu. Como a diferença de idade era pequena, sete anos, chegamos a brincar (finca, peão, bolinha de gude, bete) e jogar futebol juntos (ele era bom de bola, assim como um de seus irmãos, um craque do futebol de salão). Compartilhávamos o mesmo padrinho. Como meu pai, Raul Belém, se interessava por literatura, Gilsinho, como o chamávamos, sempre nos visitava para ouvir meu pai contar sobre os livros que estava lendo e sobre os novos discos de Chico Buarque, Caetano Veloso, Elis Regina, Gilberto Gil, Milton Nascimento e, entre outros, Elizeth Cardoso. Chegava tudo por reembolso postal. Era preciso ir ao Correio para resgatar as encomendas. Gilsinho estava sempre por perto, “sapeando”, como se estivesse na borda de uma mesa de sinuca. Ele gostava de dizer: “hein, hein — o que chegou hoje?”. Ouvia Chico Buarque com extremo interesse. “Bom demais” — dizia ao meu pai.
No Estado que adotou para viver, o Tocantins, Gilson Cavalcante trabalhou ao lado de outro grande jornalista (e também poeta), Sebastião (Tião) Pinheiro, no “Jornal do Tocantins”.
No Tocantins, no governo do médico Moisés Avelino — referência ética do Estado do Tocantins (o Henrique Santillo de lá) —, Gilson Cavalcante foi secretário de Comunicação.
Gilsinho, cuja vida de poeta merece um documentário — porque, como disse, viveu e morreu como poeta —, estreou na literatura com o livro “69 Poemas — Dos Lençóis e da Carne”, numa parceria com o poeta Hélverton Baiano, de quem foi grande amigo. O curioso é que Gilsinho evoluiu como poeta, mas sem perder sua identidade lírica, talvez como uma espécie de “filho” de Carlos Drummond de Andrade que também era “neto” de João Cabral de Melo Neto. Seu lirismo é drummondiano. Porém, seu olhar para as coisas é cabraliano.
Poeta irrequieto, desses bardos naturais — que criava com extrema facilidade, mas sabia depurar os versos, para torná-los perfeitos —, Gilson Cavalcante escreveu também “Lâmpadas ao Abismo”, “Re/Inventário da Passagem”, “Poema da Margem Esquerda do Rio de Dentro” (um dos mais belos), “O Bordado da Urtiga”, “Anima Animus — O Decote de Vênus”, “Bonsai de Palavras”, “A Arte de Desmantelar Calendários”, “O Amor Não Acende Velas” e “Descompássaro”.
Há pouco tempo, Gilsinho me procurou pedindo a leitura antecipada de um livro de poemas que enfoca o Poço do Milagre (ou dos Milagres). Há a lenda de aquele que bebe a água deste poço não deixa jamais de visitar Porangatu.
O Poço do Milagre (ou dos Milagres) fica na chamada parte velha da cidade. Meu primo Ivan Vieira, que sabe das coisas da cidade — é uma de suas memórias vivas —, talvez possa explicar melhor a questão, que foi motivo de várias conversas, via in box do Facebook, entre eu e Gilsinho: a água do Milagre é potável? Parece que é ou era. A minha memória diz outra coisa: nós buscávamos água para beber na Biquinha, um poço (mina, nascente) no meio de um pasto nas proximidades da cidade. A água era limpinha e saborosa. Era buscada em baldes e latas (de óleo de 18 e 9 litros), colocadas nas nossas cabeças, que eram protegidas por rodilhas de pano. Era preciso ter equilíbrio para não derramar a água.
A água do Milagre a gente buscava para cozinhar e tomar banho (não havia água tratada na década de 1960, quando eu e Gilson éramos meninos). A água do poço era salobra, dizia-se. Não dava para beber — era o que eu, menino, ouvia na minha casa. Tanto que, para beber, íamos buscar água na Biquinha. A água do Milagre era colocada em potes. A água da Biquinha era colocada em filtros. Gilsinho mostrava-se empolgado com estas discussões. Quando colocaram energia elétrica na cidade, Gilsinho me disse, na casa do nosso padrinho: “Será que é bom tomar um choque?” Eu não soube responder. Então, eu e Gilsinho (desde sempre, ele foi pequeno e magérrimo) perguntamos para o barbeiro João Gualberto, um homem alto, elegante e gentil. João Gualberto disse: “Larguem de bobagem, meninos. Choque mata”.
O poeta Gilsinho morreu? Fisicamente, sim. Mas sua poesia vai transformá-lo em imortal. Era um mágico das palavras, que manipulava como poucos. Era, por assim dizer, um mestre titereiro das palavras, que, na sua pena, dançavam, vibravam e diziam coisas inesperadas e não-ditas por outros bardos.