Autor do celebrado “Poema Sujo”, o bardo maranhense escreveu poesia engajada, poesia lírica e se livrou da camisa-de-força da esquerda, tornando-se um de seus críticos mais perceptivos

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O escritor e crítico britânico Anthony Burgess escreveu um artigo sugerindo que alguns dos melhores escritores, os revolucionários em termos de literatura, eram reacionários. Ezra Pound, T. S. Eliot e Céline são alguns deles. Não há como contestar: são gênios literários. O maranhense José Ribamar Ferreira, mais conhecido como Ferreira Gullar — que morreu no domingo, 4, no Rio de Janeiro, aos 86 anos —, era, sem dúvida, um gênio literário, possivelmente, ao lado de Adélia Prado e Augusto de Campos, o único escritor brasileiro, ao menos nos últimos anos, merecedor do Prêmio Nobel de Literatura.

Um dos próceres da esquerda patropi (chegou a ser jornalista das Ligas Camponesas), meteu-se a escrever poesia engajada, e, contrariando os que avaliam que toda poesia engajada é ruim, publicou o belíssimo “Poema Sujo”. Pode até não ser o que de melhor escreveu, seguramente não é, mas não se pode sugerir que seja ruim. O motivo não é precisamente o domínio da técnica poética, na qual era mestre — apesar do verso livre —, e sim que jamais perdeu sua veia lírica, sua capacidade de emocionar com a racionalidade de sua poesia.

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Neoconcreto

A partir de determinado período, seduzido pelos poetas concretos (como Manuel Bandeira havia sido, antes), tornou-se neoconcreto. Sua poesia ganhou novos ares e não se pode dizer que se tornou ruim. Tornou-se diferente, multifacetada. Aos poucos, rompeu com os concretistas Haroldo de Campos, Décio Pignatari e, sobretudo, Augusto de Campos. Com este, vivia as turras, até dias desses (os dois, grandes poetas, não se aceitavam devido a ajustes de contas do passado. Brigavam até sobre quem havia redescoberto as estropelias verbais de Oswald de Andrade). Voltou ao veio lírico, aliás, é difícil que o tenha abandonado mesmo nos tempos de neoconcretismo (ou, pior, do Partidão). Também não é o lírico tradicional, derramado. Era um poeta contido, de um lirismo às vezes ralo, mais próximo de João Cabral de Melo Neto do que, quem sabe, de Carlos Drummond de Andrade. Mas filho, é certo, da longa tradição modernista, a patropi e a internacional. Mas firmou-se como Ferreira Gullar — um poeta único, filho da tradição, mas com alto grau de autonomia. Com um dedo só seu na história da poesia.

Paralelo à faina de poeta, a mais complexa, tornou-se um crítico de arte dos mais competentes. Explicava a arte dos pintores com precisão e conhecimento, sem os excessos e arroubos de alguns críticos que veem mais do que a arte mostra, produzindo sentidos que, a rigor, são falsos ou não existem.

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Mais velho, depois de examinar com percuciência a experiência do socialismo real — não o da teoria, que é sempre belo, como quase todas as utopias —, Ferreira Gullar abandonou a esquerda e, inclusive, seu discurso (há os que deixam a esquerda, mas a esquerda não deixa eles — inclusive no autoritarismo e na linguagem).

Na “Folha de S. Paulo”, escreveu artigos estupendos sobre vários assuntos. Muitos deles fizeram balanços críticos da esquerda e devem ser qualificados de sensacionais (falou também da esquizofrenia dos filhos, de maneira sentida, mas não piegas). O poeta sabia do que estava falando. Falava de cátedra, poucos conheciam as mazelas da esquerda tão bem. Desde o início, desconfiou das belas intenções dos petistas — com suas “bolsas” (a Bolsa Família escondia a outras), que, agora todos entendem, eram para suas próprias famílias e aliados políticos. Tratam-se, claro, da Bolsa Odebrecht, da Bolsa OAS, da Bolsa Andrade Gutierrez, da Bolsa JBS. Bolsas que irrigavam bolsos e contas bancárias de petistas tristemente celebrizados pela Operação Lava Jato. Sem mencionar o mensalão, que, perto do petrolão, é frango de granja.

As academias patropis descobriram Clarice Lispector e Caio Fernando Abreu (este, o príncipe da internet, das redes sociais— embora seja um autor menoríssimo). Deveriam redescobrir, agora que está morto (e deixa de ser, principalmente, um adversário ideológico. As faculdades de Letras estão se tornando terreiros da Jihad ideológica de esquerda e clubes fanáticos da ideologia de gênero), um dos maiores poetas da Língua Portuguesa — Ferreira Gullar. Ele “canta” bem ao lado de Camões, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Herberto Helder, João Cabral de Melo Neto, Haroldo de Campos e Augusto de Campos.

Filhos

Ferreira Gullar

Daqui escutei

quando eles

chegaram rindo

e correndo

entraram

na sala

e logo

invadiram também

o escritório

(onde eu trabalhava)

num alvoroço

e rindo e correndo

se foram com sua alegria

 

se foram

 

Só então

me perguntei

por que

não lhes dera

maior

atenção

se há tantos

e tantos

anos

não os via

crianças

já que

agora

estão os três

com mais

de trinta anos.