Monteiro Lobato e José Lins do Rego contribuem para que crianças e adultos explorem a imaginação, por intermédio de seus livros, e ampliem, além do prazer estético, o entendimento da realidade

Na minha infância, nada deleitava-me tanto quanto jogar futebol, durante o dia, e ler, durante a noite, iluminado pela luz tênue e bruxuleante da lamparina, que guardava, contra as orientações de minha mãe, a professora normalista Zinha Fagundes, debaixo da cama. De manhã, muitas vezes meus cabelos estavam sapecados, como se dizia, e cheirando querosene.

Lia qualquer coisa: literatura, fotonovela (algumas traduzidas pelo poeta concretista Décio Pignatari), livros de faroeste (Marcial Lafuente Estefânia era um espetáculo), livretos de cordel (deliciava-me com as artimanhas de Cancão de Fogo e Pedro Malazartes), revistas (como “Placar”, “Demolidor”, “Tio Patinhas”, “Homem-Aranha”. Como o lutador Anderson Silva, tenho a coleção do “Homem-Aranha”, incompleta, pois deixei de ampliá-la).

Mesmo pequeno, andava quilômetros à caça de livros. Ruins ou bons, lia com sofreguidão e, como havia poucas obras, lia-as repetidas vezes. Curiosamente, havia um grande intercâmbio de livros entre garotos e adultos. Porque livros, no interior, eram escassos, sobretudo histórias de boa qualidade.

Fiz o primário na Escola Dona Gercina Borges Teixeira, em Porangatu, na região Norte de Goiás. Sua biblioteca era pequena e só as professoras podiam tomar livros emprestados. Assim, fazia o possível para agradar minha mãe, ajudando-a em alguma coisa, com o objetivo de conseguir alguns livros.

Li as histórias de Rapunzel, do Lobo Mau e Chapeuzinho Vermelho, dos Três Porquinhos, de Cinderela, da Gata Borralheira, do Rei Arthur (pelo qual tinha uma admiração mágica), Peter Pan (achava as histórias encantadoras), “As Aventuras de Huckleberry Finn” (o primeiro livro que me fez gargalhar, talvez porque a personagem tinha a ver comigo e com os garotos de minha geração), “Mogli, o Menino Lobo” (não sabia que era uma história de Rudyard Kipling).

A história de Rapunzel intrigava-me porque, acreditando e desacreditando, jamais havia visto, em casa ou na rua, alguém com cabelos tão compridos.

Um dia, ao cortar o cabelo — ficava com topete, ao estilo dos americanos —, inquiri ao barbeiro João Gualberto, que imaginava como autoridade no assunto: “O sr. conhece a Rapunzel? Ela é parecida com a Teresão?” (Terezão era uma mulher tida com maluca, gorducha, solteirona, que pedia comida nas casas. A meninada tinha medo, mas era inofensiva.)

João Gualberto respondeu: “Não sei quem é Rapunzel. Portanto, não sei se é parecida com Teresão”.

Contei-lhe a história. Homem alto e moreno, João Gualberto riu e, com candura, esclareceu: “Rapunzel é fantasia, nunca existiu. Nenhum cabelo pode ser usado como corda para alguém subir num castelo”.

Aquela palavra, “fantasia”, ficou cantando no meu cérebro o dia todo. Gostei da “fantasia”, não da lufada de realidade. Porque a fantasia faz bem para crianças — é uma viagem a outro mundo, o da imaginação, da criação. Meninos lidam bem com isso e, quando necessário, voltam à realidade — sem traumas.

Parte dos adultos “mata” os meninos que carrega dentro de si e se torna amarga — não brinca mais, não ri de nada. Compra a realidade e ataca a fantasia — como se alguém pudesse viver só de realidade (os publicitários percebem, como ninguém, que o homem precisa da imaginação, de viver um pouco na e com a fantasia, para continuar “vivo”).

Mas deixemos as filosofadas morais de lado e voltemos à memória recuperada, como diria Proust.

Não me lembro quem traduziu os livros, porque, na época, fim da década de 1960 e início da década de 1970, não tinha a atenção despertada para a filigrana. Possivelmente, eram adaptações feitas pelo escritor José Bento Monteiro Lobato (1882-1948). Para mim, isto não contava: quase todas as histórias, adaptadas ou não, eram de Monteiro Lobato.

Um dia, minha mãe chega da escola (colégio era para quem estudava da quinta à oitava série, que a gente chamava de ginásio), e eu, beirando, fui logo perguntando: “O que tem pra mim?”

Como havia lido todas as revistas de fotonovelas de minhas irmãs Eliane e Eliana (escondiam debaixo dos colchões, porque meu pai não aprovava a leitura) e todos os outros livros, estava relendo alguma coisa, fiquei surpreso e alegre com os livros da biblioteca da escola. Folheei-os e corri para o quarto.

Li, sem parar, “Caçadas de Pedrinho” (esquecia até de almoçar e jantar). Impressionado com a vivacidade de Pedrinho, como se o menino fosse o autor das histórias, como se estivesse contando-as para mim.

Assim como Pedrinho, eu era um caçador nato — não de onças e outros bichos grandes, e sim de passarinhos, como pipiras, pássaros pretos, anuns (que parecem helicópteros), joão-bobos, pombinhas, periquitos (que criei aos montes e chegava a carregá-los nos ombros) e de preás e borboletas (adorava matá-las, umas preto-azuladas, quando estavam assentadas em mangueiras).

O que me impressionava não era tanto a caçada, mas a forma deliciosa de contar as histórias. A vivacidade de Monteiro Lobato me agradava. Suas histórias eram coisas vivas, pareciam se movimentar. De algum modo, o autor conversava com o leitor.

Não parei mais de ler Monteiro Lobato. Nunca fui bom em matemática, mas adorava aprender as regras da Língua Portuguesa.

Ler “Emília no País da Gramática” foi uma descoberta de um paraíso — a língua explicada com alegria, vivacidade.

A boneca de pano, que avaliava como gente mesmo, porque era esperta e arteira como qualquer criança, agradava-me sobremaneira. Era como uma amiga — encrenqueira e, ao mesmo tempo, divertida.

“Geografia de Dona Benta” foi outro encantamento. Estudava geografia na escola, mas, com Monteiro Lobato, descobri o mundo não como “ensino”, como “disciplina”. O mundo que o escritor nos mostrava, por intermédio das histórias, era fascinante, multifacetado e contraditório. Não era unidimensional.

Claro que eu não tinha perspicácia para entender certas questões, mas o fato é que eu aprendi muito de português, geografia e aritmética divertindo-me com a leitura dos livros de Monteiro Lobato.

Sim, sim. Eu preferia livros mais leves, como “Caçadas de Pedrinho”, “Narizinho, A Menina do Nariz Arrebitado”, “O Sítio do Pica-Pau Amarelo”, “Reinações de Narizinho”, “Emília, A Boneca Que Virou Gente”.

Monteiro Lobato era educador. Mas entendeu que, para ensinar uma criança, é imprescindível ser um tanto quanto lúdico, o que não é o mesmo que ridículo. Os livros do escritor ensinam divertindo. É o melhor método.

Menino, eu pensava que Monteiro Lobato era um sujeito “gaiato”, como dizíamos. Ao ver a primeira foto do escritor, numa velha enciclopédia, fitei-o, demoradamente. Fechei o livro. Relutante, abri de novo, queria verificar se não havia sonhado, porque, envolvido com histórias imaginárias, era meio aluado.

Ao abri-lo pela quinta vez, disse para mim mesmo: “Esse sujeito de cara fechada, com jeito de mau, não pode ser Monteiro Lobato”. Achei-o velho, sisudo e não acreditava que, com aquela aparência, poderia escrever numa linguagem que eu entendia muito bem.

Nunca esqueci Monteiro Lobato, sempre o tive na conta de um grande escritor e devo isto às leituras do tempo de criança.

Como Hans Christian Andersen e, talvez um pouco menos, Lewis Carroll, o escritor brasileiro tratava as crianças como seres inteligentes, perspicazes — jamais como pessoas incapazes de compreender a graça da vida e o espanto mágico do cotidiano.

Há uma cordialidade bem-humorada nas histórias de Monteiro Lobato que só pessoas muito engajadas podem perceber como incentivo ao racismo.

Portanto, por favor, srs. ideólogos, não proíbam Monteiro Lobato. É como proibir crianças de terem fantasia, contato com a imaginação e a criatividade. Deixem a literatura em paz e voltem-se para seus marxismos e marxicidas. Vão interpretar e transformar o mundo.

Porque literatura infanto-juvenil — que, bem-feita, agrada qualquer adulto inteligente — é coisa muito séria e, ao mesmo tempo, divertida. Literatura não é o lugar ideal para a aplicação das teses politicamente corretas. O “pc” é um novo preconceito.

Outros autores que me fascinaram

Outro dia, volto às leituras de criança. Dou apenas outros exemplos de autores que me fascinaram.

Meu pai, Raul Belém, ficará sabendo agora: menino, ainda bem novo, li quase toda a obra de Adelaide Carraro. Lia com prazer, talvez até erótico, sem entender grande coisa.

Num dos livros, que lia escondido (meu pai guardava dentro da gaveta da “penteadeira”), encontrei a palavra “pederasta”. Como o livro era proibido, não tinha para quem perguntar. Um dia, criei coragem, fui à biblioteca pública e pedi um dicionário. Li e reli. Acabei entendendo, mas continuei intrigado.

Depois, um amigo emprestou-me “A Carne”, de Júlio Ribeiro. Li dezenas de vezes, se brincar, como diria Mário de Andrade, li umas 350 vezes, com a concupiscência e a ingenuidade de qualquer menino. Nunca esqueci a personagem Lenita.

Sabia de cor, e cavoucando a memória, descubro que ainda sei de cor e salteado trechos inteiros do romance que, na época, era visto como pornografia consumada. Há pouco, reli dez páginas, na Livraria Leitura. A história é mais leve do que algumas telenovelas da TV Globo.

Não esqueço também de José Lins do Rego — li “Menino de Engenho” pelo menos seis vezes, sempre impactado — e de José Mauro de Vasconcelos.

Li “Meu Pé de Laranja Lima” dezenas de vezes, sempre com lágrimas nos olhos. Nunca vi e li uma pieguice tão prazerosa. É “O Pequeno Príncipe” dos trópicos. Não é literatura de primeira, mas não faz nenhum mal; pelo contrário, só faz bem.

Hoje, não entendo, mas não gostaria de entender, as crianças que ficam grudadas em computadores, quase sempre jogando (e os jogos em geral são violentos — muitos têm a ver com assassinato), esquecendo que — além da vida que convoca para brincadeiras públicas, coletivas — escritores notáveis, como H. C. Andersen, Monteiro Lobato, Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Lewis Carroll e Ruth Rocha, estão esperando-as nas livrarias, nas bibliotecas públicas e privadas e talvez nos próprios computadores (talvez muitos redescubram a literatura por meio da internet ou de computadores que facilitem a leitura).

Nada, mas nada mesmo, substitui a leitura e o contato direto entre crianças.

(Este texto foi publicado pelo Jornal Opção, há alguns anos, quando o escritor Monteiro Lobato sofria uma patrulha ideológica.)