A missão real do intelectual não é justificar terrorismo de esquerda, de direita ou religioso

10 janeiro 2015 às 14h59

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O terrorismo, contra a democracia e o indivíduo, aproveita-se de que nas democracias modernas, apesar do suposto big brother, os espaços públicos e privados são escassamente protegidos. Os terroristas que mataram dez jornalistas e chargistas da revista “Charlie Hebdo” — que satiriza, entre outros, o profeta Maomé — e dois policiais usaram da liberdade de ir e vir, típica da sociedade democrática, para cometer um atentado contra a vida e a liberdade de expressão. A França, com sua tendência a assimilar as diferenças, apesar das pressões da extrema direita, tornou-se vítima por ser, em geral, libertária.
George Packer escreveu, no site da revista “New Yorker” — a síntese é de Caio Blinder, no portal da “Veja” —, que “o ataque contra ‘Charlie Hebdo’ foi apenas a última salva de uma ideologia que tenta conquistar o poder por décadas” por intermédio “do terror. A mesma que foi ao encalço do escritor Salman Rushdie a mando da teocracia iraniana, a mesma que matou 3 mil pessoas nos EUA em 11 de setembro de 2001, a mesma que assassinou Theo van Gogh nas ruas de Amsterdã em 2004 por fazer um filme, a mesma que pratica decapitação e estupro na Síria e Iraque, a mesma que massacrou 132 crianças e adultos em uma escola em Peshawar, no Paquistão, em dezembro. E como observa Packer, é a mesma que mata nigerianos com tanta regularidade, especialmente jovens, a que o mundo mal presta atenção”.
“Todos nós devemos ser Charlie não apenas hoje, mas todo dia”, sugere George Packer.
O problema é que o terrorismo, embora intolerante e contra a liberdade de expressão, não vai acabar. O filósofo britânico John Gray afirma, no polêmico livro “Al-Qaeda e o Que Significa Ser Moderno” (Record, 176 páginas, tradução de Maria Beatriz de Medina), que a Al-Qaeda modernizou o terrorismo (a barbárie), inclusive suas comunicações — daí sua eficiência letal.
Destaco, neste breve texto, o comportamento celerado de certa intelectualidade. O livro “Passado Imperfeito — Um Olhar Crítico Sobre a Intelectualidade Francesa no Pós-Guerra” (Nova Fronteira, 478 páginas), do historiador britânico Tony Judt, mostra como o filósofo Jean-Paul Sartre e mesmo Merleau-Ponty justificaram, sem meias palavras, o inominável — o stalinismo. Em 1952, numa resposta a Albert Camus, Sartre assinalou: “Nós podemos ficar indignados ou horrorizados diante da existência desses campos [de concentração soviéticos]; nós podemos até ficar obcecados por eles, mas por que eles deveriam nos constranger?” Constrangidos com o Gulag soviético, Camus, François Mauriac e Raymond Aron optaram pela crítica ao stalinismo, indicando que não é dever do intelectual “acanalhar-se” por razões ideológicas ou quaisquer outras.
No caso da França atual, intelectuais de uma certa esquerda avaliaram que o terrorismo é um instrumento legítimo da guerra. Óbvio que, para chocar menos, retorcem as palavras, ao estilo do facinoroso Frantz Fanon, espantosamente seguido nas universidades brasileiras, até por pessoas inteligentes e responsáveis. Os cartunistas que desenhavam Maomé, políticos e outras figuras públicas, sugerindo que todos podem e devem ser criticados, estavam em guerra? Não estavam. A guerra, no caso, era unilateral. Os cartunistas e jornalistas eram tão inocentes quanto as vítimas do terrorismo nas Torres Gêmeas ou em trens e ônibus.
Seja religioso, político, de esquerda ou de direita, o terrorismo é sempre condenável. Não só o terrorismo dos árabes. Há ações de militares americanos e agentes da CIA no Oriente que são igualmente condenáveis. Não cabem aos intelectuais, mas eles se convocam para esta missão, justificar a violência.
Barbárie americana
Se o leitor quiser saber o que os Estados Unidos fizeram (e fazem) no Oriente Médio, e noutros lugares, nos últimos anos, não deve deixar de ler “Guerras Sujas — O Mundo É um Campo de Batalhas” (Companhia das Letras, 840 páginas, tradução de Donaldson Garschagen), de Jeremy Scahill. O jornalista mostra, com fartos exemplos documentados, que, em nome da civilização e dos valores democráticos, os Estados Unidos também levam sua barbárie ao Oriente, matando indivíduos de maneira indiscriminada. Não é livro de esquerdista, e sim de repórter independente e íntegro.
Terror na literatura
A literatura tratou do terrorismo com rara felicidade. Fiódor Dostoiévski escreveu o clássico “Os Demônios” (vale ler a tradução de Paulo Bezerra, publicada pela Editora 34). Joseph Conrad é autor do celebrado “O Agente Secreto”. O romance “A Terrorista”, de Doris Lessing, relata o mundinho perfunctório e raso dos criadores de terror. John Updike enfrentou o tema em “Terrorista”.
O atentado das Torres Gêmeas, em Nova York, no qual morreram mais de 3 mil pessoas — uma violência com a marca da Al-Qaeda, de Bin Laden —, rendeu livros de qualidade, como “Extremamente Alto & Incrivelmente Perto”, a narrativa fascinante de Jonathan Safran Foer, e “Homem em Queda”, de Don DeLillo. “Sábado”, de Ian McEwan, também toca no assunto.