Mino Carta, o aristocrata do rancor, vergasta a família Civita e a ditadura em roman à clef
01 agosto 2023 às 15h11
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[Resenha publicada no Jornal Opção em 19 de abril de 2010]
Há duas, ou mais, leituras do roman à clef “A Sombra do Silêncio”, do jornalista Mino Carta. A primeira, que tem vigorado, é patrocinada pela revista “CartaCapital”, de propriedade de Mino Carta, que vê o romance como uma obra de gênio, ombreando, sabe-se lá, com alguma história de Henry James ou Flaubert. É uma leitura equivocada porque Mino não faz literatura — é memorialista que talvez tenha receio de ser processado (ele diz que um ex-ministro da ditadura, depois senador na democracia, era homossexual. O economista já faleceu), ou, o que é mais crível, não tenha paciência para a pesquisa. Então, usando a forma do romance — mas não fazendo romance, como querem seus críticos favoráveis, que sempre notam sua alta cultura, o diálogo fino com a pintura e a música —, pode, além de atacar seus adversários, políticos, empresários e jornalistas, tornar as histórias mais elásticas. “A Sombra do Silêncio” é, de algum modo, uma espécie de tudo é verdade segundo dom Mino Carta, o aristocrata do rancor, o homem que ensina que se deve comer peixe só com garfo, sem o uso de faca.
Na verdade, ao pretender contar a história de seu amor por Core Mio (Angélica, a paixão de uma vida), Mino Carta faz, mais uma vez, memorialismo à clef. Então, no lugar da primeira leitura, oponho a minha: a histórica, entre outras. Mercúcio Parla, alter ego de Mino Carta, tem o hábito de satirizar os intelectuais, ele próprio intelectual, embora tentando se mostrar apenas como jornalista. Ele atribui a Alberti/Claudio Abramo o seguinte: “E os intelectuais? Servem o poder, querendo ou não, mesmo porque o primogênito vira coronel e um dos irmãos Intelectual. A família é a mesma”. Mercúcio/Mino contrapõe: “Mas nem todos nascem abastados…”. Abramo replica: “Estes sonham em subir na vida, quando não dá para virar coronel, vale a pena ser Intelectual”.
Expedição punitiva
Ao contrário de “O Castelo de Âmbar”, primeiro romance de Mino Carta, o segundo livro é menos rancoroso — chega a ser lírico e, mesmo, empolado, embora o autor certamente não aceite este tipo de crítica. Mesmo sendo lírico, sobretudo quando trata de Core Mio, o rancor está sempre presente. Há um espírito vingativo, aqui e ali, sempre que os Civita são “dissecados”.
“Em César Pavia [Victor Civita], Bertino reconhecia a energia transbordante, a ponto de ser excessiva como a brilhantina que lhe emplastava os cabelos diligentemente esticados para trás, sem condão de devassar a área da testa, exígua, e de lhe iluminar a expressão, pelo contrário, envolvendo-a em halo de brilho de sapato recém-chegado”, conta, certamente com um sorriso irônico nos lábios, Mercúcio/Mino.
Página adiante, Mercúcio/Mino volta ao ataque ao núcleo da família Civita: “O pai [Victor Civita], empreendedor de escrúpulos mirrados e jogador desabrido, cínico eventualmente ao expor fraquezas como méritos, mas contraditoriamente habilitado pela natureza a rompantes sentimentais. Tom, tíbio e precário, aculturado em Samueland [Estados Unidos], onde se apossara dos principais defeitos do pessoal do lugar e de qualidade nenhuma, inseguro e arrogante, destinado a suscitar no interlocutor do primeiro encontro a impressão de se haver ou com um hipócrita ou com um boboca. No segundo encontro, as dúvidas caíam e a impressão número dois tornava-se certeza”.
Na página 210, mais uma “pancada” nos Civita: “Mas são estes, específicos patrões, aqueles que hoje me atormentam com suas pressões e suas tibiezas, sua inesgotável disponibilidade para o compromisso, se for necessário para a curvatura, o salamaleque, a genuflexão. Sei também que os meus dias na Foco [“Veja”] estão contados, as paciências envolvidas estão no ponto de fervura ou bem próximas…”.
Mino Carta conta, em “O Castelo de Âmbar”, que foi demitido a pedido de Armando Falcão. Sobretudo, Roberto Civita — que não é tão medíocre quanto diz o desafeto — não fez qualquer esforço para preservar o emprego do jornalista. Entregou sua cabeça e, segundo Mino Carta, teria obtido um polpudo empréstimo de um banco estatal. Há outra versão: Roberto Civita não tolerava Mino Carta e aproveitou-se do conflito do jornalista com setores militares para defenestrá-lo. Uma coisa é certa: o romance de Mino Carta jamais será resenhado em alguma publicação da Editora Abril, como “Veja”.
Há uma história que Mercúcio/Mino explora pouco: Carlos Lacerda, ou Galo Timbiras, teria tentado fazer a sua cabeça quando trocou o “Arauto” pela “Veja”. Lacerda queria usá-lo para expor suas ideias, ou, ainda, ideias contra a ditadura, com a qual havia rompido, por ter sido desprezado. O economista Tomas Horta é tratado com crueza: “Lacaio do regime militar, melífluo como banqueiro e diplomata, voz de cardeal, arrogante no substrato apesar das mãos sempre suarentas, insiste com as fêmeas de qualquer extração. Levou facada de uma delas, conhecida como Jussara Dubarry, por motivos até hoje não apurados. (….) Horta morreu em odor de homossexualismo”. O economista trabalhou no governo de Castello Branco e, na democracia, se elegeu senador e deputado federal.
Quase no fim do romance, Mino Carta relata a história de Aldo Walder/Vladimir Herzog: “Algo Walder tinha sopro no coração, não resistiu à tortura e morreu, será preciso forjar uma versão oficial para justificar o fato. O comunicado da Feat escorre no olho da câmara e soletra que o jornalista se matou, enforcado por uma tira de pano amarrada à grade da cela”.
Golbery do Couto e Ernesto Geisel
Entre jornalistas veteranos, há uma espécie de Fla x Flu x Fla & Flu: há os que gostam de Ernesto Geisel, os que gostam de Golbery do Couto e Silfa e os que gostam dos dois (caso de Elio Gaspari). Mino Carta não tolera Geisel: “A foto oficial de Gunther Waldo [Geisel], o general-ditador, rosto de marítimo aposentado, pescoço de peru, faixa presidencial a lhe atravessar o peito, entregue à casaca e coberto pelas condecorações”. Golbery diz a Mino Carta: “No início pretendíamos pôr a casa em ordem e logo em seguida devolver o poder aos civis. Acabamos, no entanto, perdendo o controle da situação, e aí sim, a revolução virou… golpe”.
Mino Carta menospreza e demoniza Geisel — o que Gaspari não faz: “O senhor [o general Tibúrcio/Golbery] usa Waldo, tosco e imponente, desprovido de um único, pálido resquício de humor, porque tem prestígio junto aos seus pares, imenso e definitivo prestígio. No entanto, sabe perfeitamente de quem se trata”.
Golbery responde, com palavras que parecem mais de Mino Carta do que dele: “Graças ao plano de retorno às origens, assegurado pelo prestígio, ou seja, pelo poder de Waldo, algum dia, não muito remoto, devolveremos o poder aos civis, contra a vontade dos falcões, que não fizeram a revolução, ou não entenderam seus objetivos e acabaram por dar o golpe. Pela mão da gente, a democracia volta”. Mino Carta desconsidera que é um ato de inteligência o menos inteligente seguir o intelectualmente mais dotado.
Mercúcio admite que, se não teve uma relação corrupta com Golbery, os dois se usaram: “Sim, conheci o general Tibúrcio, fizemos uso um do outro, mas tendo a achar que eu tive mais proveito […] Sim, foi uma relação que durou longos anos, profissionalmente difíceis para mim e de muito poder para ele, ao menos em certos períodos da ditadura, quando os chamados brandos ou pombas levaram a melhor no conflito interno com os duros ou falcões”.
Todos os louros vão para Golbery, o GeneDow: “Personagem insubstituível, provavelmente sem se dar conta do seu tamanho, obra de deuses gregos brincalhões […]. Esteve no começo e no fim do processo, armou o projeto do golpe [o de 1964] e, ao cabo, o projeto contrário, da chamada abertura. Prestou-lhe um grande serviço o assassínio de Aldo Walder, e, anos depois, as resistências de líderes sindicais mexeram bastante, muito mais do que se imagina até hoje, com a fatia mais importante da opinião pública. Cheguei a pensar, nas duas ocasiões: eis aí o esboço de uma sociedade civil, me perdoem a expressão desabusada”.
No roman à clef, ou sátira à clef, as personagens são reais, mas os nomes são trocados. Só que, no caso de “A Sombra do Silêncio”, a revista de Mino, num texto do editor Maurício Stycer, esclarece os nomes verdadeiros de algumas personalidades citadas. Outros nomes, o leitor, dada a clareza de Mino — que escreve muito bem —, consegue “traduzir” facilmente. Algumas dicas: Bertino Parla (Giannino Carta, pai de Mino), Cesar Pavia (Victor Civita), Tom Pavia (Roberto Civita), Foresta (Editora Abril), Bulhões Pereira (Júlio de Mesquita Filho), Arauto (“Estadão”), Justino (junção, num só nome, de Júlio, Ruy e Luís Carlos Mesquita, filhos de Júlio de Mesquita), general Tibúrcio (Golbery do Couto e Silva), Parlotão (Paulo Egydio Martins), Aldo Walder (Vladimir Herzog), Alberto Alberti (Claudio Abramo, o ídolo de Mino Carta), Professor (Pietro Maria Bardi, que dirigiu o Masp), Clorinda (Lina Bo Bardi, mulher de Pietro Maria), João da Lua (Paulo Duarte), Botânico (Sérgio Buarque de Holanda), Core Mio (Angélica), Inocêncio Filomeno da Silva Xavier (George Duque Estrada), Galo Timbiras (Carlos Lacerda), Raposo Tavares (Jânio Quadros), Alfred de Musset (Assis Chateaubriand), Foco (“Veja”) , dom Julius (dom Paulo Evaristo Arns).
Curiosidade autoral: a frase “nos meus revolucionários ninguém põe a mão” é atribuída a Bulhões Pereira. Acredita-se que, com ligeira mudança — “nos meus comunistas ninguém põe a mão” —, a frase é de Roberto Marinho.
Neste breve texto acredito que extraí o sumo do livro de Mino. O que sobra é história de sua paixão por Core Mio, que só interessa a ele mesmo. Sidney Sheldon já fez melhor. O pior é que o terceiro romance está a caminho. Por Deus, Mino, não!
Finalmente, o que dizer do Mino Carta, o jornalista e articulista? Simples: um dos melhores e admiráveis do país. Criou e editor “Quatro Rodas”, “Jornal da Tarde”, “Veja”, “IstoÉ”, “Jornal da República” e “CartaCapital”. É muita coisa para um homem — profissional — só.