Mino Carta, Demétrio Magnoli e Fábio Pannunzio: polêmica sobre apoio ou não à ditadura. Confira os três artigos
10 abril 2014 às 15h07
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Eu sei o que você escreveu ontem
“Os senhores escravocratas do século 21 ainda se movem ao sabor das crenças de 50 anos atrás (…)”, escreveu Mino Carta na revista “CartaCapital” do dia 2/4, para concluir: “Daí a oposição sistemática aos governos Lula e Dilma”. Na política, o passado é uma massa de modelagem sempre disponível para servir aos interesses do presente. Sugerir que os críticos do lulismo são reencarnações dos golpistas de 1964 já se tornou um clássico da “imprensa” chapa-branca. Quando, porém, a fábula emana do teclado de Carta, um cheiro de queimado espalha-se no ar.
Nos idos de 1970, Carta ocupava o cargo de diretor de Redação da revista “Veja” e assinava os editoriais com suas iniciais. O que M.C. escreveu em 1º de abril de 1970, sexto aniversário do golpe, está no acervo digital da revista:
“Propostos como solução natural para recompor a situação turbulenta do Brasil de João Goulart, os militares surgiram como o único antídoto de seguro efeito contra a subversão e a corrupção (…). Mas, assumido o poder, com a relutância de quem cultiva tradições e vocações legalistas, eles tiveram de admitir a sua condição de alternativa única. E, enquanto cuidavam de pôr a casa em ordem, tiveram de começar a preparar o país, a pátria amada, para sair da sua humilhante condição de subdesenvolvido. Perceberam que havia outras tarefas, além do combate à subversão e à corrupção –e pensaram no futuro.” Fofo?
Enquanto Paulo Malhães lançava corpos em rios, M.C. batia bumbo para Médici. A censura não tem culpa: os censores proibiam certos textos, mas nunca obrigaram a escrever algo. Os proprietários da Abril não têm culpa (ou melhor, são culpados apenas pela seleção do diretor de Redação): segundo depoimento (nesse caso, insuspeito) de um antigo editor da revista e admirador do chefe, hoje convertido, como ele, ao lulismo, Carta dispunha de tal autonomia que os Civita só ficavam sabendo do conteúdo da “Veja” depois de completada a impressão.
Carta foi quercista quando Orestes Quércia tinha poder (e manejava verbas publicitárias). Hoje, é lulo-dilmista até o fundo da alma. Na democracia, não é grave ter preferências político-partidárias, mesmo se essas (mutáveis) inclinações tendem quase sempre na direção do poder de turno. Mas aquilo era abril de 1970, bolas! As máquinas da tortura operavam a plena carga –algo perfeitamente conhecido, não pelo povo, mas por toda a imprensa. A bajulação condoreira a Médici não deve ser qualificada como um equívoco de avaliação: era outra coisa, que prefiro não nomear.
“CartaCapital” de 2 de abril publicou, também, um ensaio histórico sobre as relações entre a imprensa e a ditadura no qual –surpresa!– não há menção aos editoriais da “Veja” assinados por M.C. em 1970. A revista de Carta faz coro com os arautos do “controle social da mídia”, eufemismo de censura em tempos de democracia. Cada um a seu modo, os grandes jornais acertaram as contas com o próprio passado, oferecendo desculpas (“O Globo”), reconhecendo erros (Folha) ou produzindo revisões circunstanciadas (“Estadão”). Carta optou por um caminho diferente: a camuflagem.
O artigo de Carta na “CartaCapital” é uma catilinária contra os “reacionários nativos” que, “instalados solidamente na casa-grande” e “com a colaboração dos editorialistas dos jornalões”, perpetraram o golpe de 1964. De tão santa e barulhenta, a indignação editorializada induzirá algum desavisado leitor estrangeiro a imaginar que o autor denuncia, corajosamente, um golpe militar em 2014. Mas, no fim, é mesmo do presente que trata o grito rouco, o adjetivo sonante e o chavão escandido: por meio dessas técnicas, Mino Carta esconde M.C.
Acervos digitais são uma dessas maravilhas paridas pela revolução da informação. A França do pós-guerra não tinha algo assim, para sorte dos colaboracionistas de Vichy. O Brasil de hoje tem. Sorte nossa.
Demétrio Magnoli, doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros livros, ‘Gota de Sangue – História do Pensamento Racial’ (ed. Contexto) e ‘O Leviatã Desafiado’ (ed. Record). O artigo foi publicado na “Folha de S. Paulo”, no sábado, 5.
Editorial
A tentativa de ser víbora
A pergunta é a seguinte: por que alguns recalcados insistem em me caluniar?
Mino Carta
Afirmo com absoluta tranquilidade que procurar deslizes morais na minha carreira de jornalista é como se Moisés pretendesse separar as águas do Mar Vermelho com uma britadeira. Muitos cometi, e se quiserem pecados, como indivíduo, e me perseguem até hoje. Como profissional de imprensa, não.
Há, porém, pretensos colegas que não desistem dessa busca, obsessivamente, por razões insondáveis. E nem falemos dos esforços despendidos para apontar em CartaCapital uma publicação que sobrevive por obra da publicidade governista. A preocupação dos porta-vozes da casa-grande em relação a este semanário nos valoriza, está claro, mas falo aqui das aleivosias assacadas contra a minha modesta pessoa.
Foram inúmeras. Recordo, entre 1970 e 1974, Amaral Neto, no vídeo da Globo, e Lenildo Tabosa Pessoa, em matéria paga no Estadão, unidos na acusação que me situava como agente, ao mesmo tempo, do Kremlin e da Máfia siciliana. É apenas um exemplo, embora retumbante. Não faz muito tempo, um dos meus acusadores contumazes soletrou que, em 1964, quando eu dirigia a revista Quatro Rodas, organizei uma festa na redação para celebrar o golpe civil e militar. Entre atônito e perplexo, encaro a revelação como sinal de uma forte vocação ficcional, de resto nada incomum nos domínios da mídia nativa.
A redação de Quatro Rodas, pequena e valente, contava com repórteres da competência de José Hamilton Ribeiro e Paulo Patarra, e, como diretor de Arte, com George Duque Estrada. Não se tratava de empedernidos reacionários. À tal festa, além do mais, faltaria quórum. O redator-chefe, Vitor Antonio Gouveia, este sim, tinha pendores direitistas, e eu não tive maior dificuldade em sentir que, a depender dele, perpetrado o golpe, assistiríamos a uma caçada às bruxas.
Procurei o patrão, Victor Civita, e disse a ele que qualquer gênero de ação punitiva teria de passar sobre o meu cadáver. Mais, que a ação seria a minha, preventiva. Foi Gouveia o primeiro jornalista que despedi, depois dele só foram mais três ao longo de toda a minha vida de diretor de redações.
O último dos detratores escreveu faz escassos dias, ao retomar as acusações de outro do mesmo naipe, que ninguém, senão eu, deitou loas tão desbragadas a favor do ditador Garrastazu Médici e da famigerada Oban, que mais tarde se tornaria DOI-Codi, masmorra dos torturadores. Deve ser por causa disso que Veja, o semanário que dirigia naquela quadra plúmbea, mereceu a censura feroz da ditadura, bem ao contrário do jornal onde assina suas bobagens o acusador em questão.
Deve ser por causa disso que Ernesto Geisel, por intermédio de Armando Falcão, seu ministro da Justiça (justiça?), exigiu minha cabeça para autorizar um empréstimo de 50 milhões de dólares, pela Caixa Econômica Federal, à Editora Abril. Karlos Rischbieter, então presidente da CEF, contou essa história no seu livro de memórias, publicado há poucos anos, sem omitir a menção ao ódio que o ditador me devotava. Muita honra para um modesto escriba.
Antes de repetir o fim de São João Batista, eu me demiti: não queria um único centavo dos donos da Abril, o que se daria se fosse demitido. Houve quem sugerisse que fazia jus a uma justa comissão sobre o empréstimo enfim recebido pela Editora. Com a devida e exaltante ironia. Mandei-me, e se foi também a censura, obviamente. Sobrou um belo enredo para impressionar meus netos. Óbvio, também, que nunca escrevi a favor da Oban.
Quanto a Garrastazu Médici, convém relembrar que algumas vezes, em anos de Veja, pareceu conveniente adotar a retórica golpista para ludibriar seus autores e censores. Explico com um exemplo. Quando o terceiro ditador foi empossado, saiu-se com um discurso pretensamente poético, em que se declarava vindo do minuano, o indomável vento dos Pampas. Ghost-writer, o coronel Otavio Costa, que sete anos após, promovido a general, proibiria minha participação em um debate sobre jornalismo organizado por Ruth Escobar no seu teatro paulistano.
Geisel mandava e havia quem executasse a ordem suprema. Estávamos em 1976. Três meses antes do debate, Armando Falcão proibira um programa de televisão que na Tupi me escalava como âncora, programa quinzenal razoavelmente anódino, do qual já haviam sido gravados dois capítulos. No dia da estreia, Falcão bicou seu niet.
Volto a 1969, quando em Veja decidimos cometer uma ousadia. O plural não é majestático. Havia um colegiado para reunir os dois redatores-chefes, os editores e o chefe de reportagem, e debater abertamente os rumos a serem tomados. Muitos dos participantes estão vivos, felizmente. Uma equipe de oito repórteres, incluído o chefe Raimundo Pereira, desenvolvera um trabalho capilar sobre tortura. Tratava-se do levantamento completo, detalhadíssimo, de três casos de assassínio, e de mais 150, arrolados um a um, juntamente com as informações principais. Trabalho encerrado, pareceu-nos ter chegado a hora de tentar publicá-lo nas barbas “do homem que veio do minuano”.
Tratado, porém, de forma que pretendíamos astuta, o terceiro ditador. Baseados no tom moderado do seu pronunciamento de recém-empossado, logo saímos com uma capa de chamada positiva, “O presidente não admite tortura”. Antes que uma informação, era ilação audaciosa. Feliz, no entanto, estranhamente: a mídia desta feita veio atrás da gente, os jornais falaram de tortura dias a fio.
Cresceu nosso ânimo. Graças a uma condição apresentada por mim para aceitar a direção da redação de Veja, eu gozava de notável autonomia: os donos da casa não tinham acesso à pauta e saberiam de cada edição depois da publicação, na manhã das segundas. Na noite de sexta-feira daquela semana agitada, recebemos a informação de que estava proibida qualquer referência às torturas. O fechamento então dava-se aos sábados.
Já passara das 22 horas, mandei a telefonista cortar de vez as comunicações da Abril para impedir que um chamado repentino obstasse nosso plano. A revista foi às bancas, e lá foi apreendida em todo o País. Não era um fato novo, repetira-se várias vezes desde uma edição de outubro de 1968, a de número 5, que trazia na capa a prisão das centenas de participantes do congresso da UNE em Ibiúna. Acrescento que, como diretor de Veja, tive de prestar cerca de 40 depoimentos aos esbirros da Polícia Federal e dois anos após a publicação da capa sobre tortura passei mais de uma hora à frente de um inquisidor de luxo e mestre em tortura, o delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Encerrado o capítulo Veja, para levar adiante minha vida de jornalista tive de inventar meus empregos, dos 42 aos atuais 80 anos. Não me queixo, pelo contrário, agradeço aos fados. O último detrator conta com espaço nas páginas de um jornal que no momento faz mea-culpa por ter apoiado o golpe e o regime de exceção por algum tempo para assumir, alega, postura oposta ao meio do período ditatorial. Será por causa desta destemida guinada que em setembro de 1977 Claudio Abramo, finalmente chamado três anos antes a dirigir o jornal para lhe conferir a qualidade até então letra morta, foi afastado da direção?
Valia na ocasião agradar ao general Silvio Frota, candidato à sucessão de Geisel, e seu cabo eleitoral, Hugo Abreu. Queriam uma Folha mais submissa. Octavio Frias de Oliveira, com quem sempre mantive ótimas relações e para quem trabalhei como colaborador em duas diversas oportunidades, apostava na ascensão de Frota, o qual foi demitido de ministro do Exército exatos 26 dias após o afastamento de Abramo. Quanto ao filho do fundador, Otavinho, em data recente defendeu a ideia de que foi ditabranda um regime disposto a assassinar e torturar.
De minha parte, estou farto de ataques: a partir de agora, processarei os caluniadores. Ao cabo, evoco o mito empolgante de Perseu, aquele que enfrentou a Górgona, com sua cabeleira de serpentes, víboras creio eu. Bastava encarar o monstro para ficar de pedra. Perseu, coberto pelo escudo, voltou-lhe a outra face sabiamente polida na direção da Górgona, e esta, espelhada inexoravelmente, padeceu os efeitos de sua própria maldição. Não pretendo ser Perseu, e os meus detratores não me parecem qualificados para a tarefa de petrificar quem quer que seja. Mas às víboras da Górgona talvez se assemelhem. Sugiro, de todo o modo, que se mirem no espelho de suas próprias medíocres vidas de recalcados.
Mino Carta é diretor de redação da “CartaCapital”. Texto transcrito da revista “CartaCapital”, de sexta-feira, 4.
Mino Carta diz que vai processar quem remexer seu passado profissional
Fábio Pannunzio
“De minha parte, estou farto de ataques: a partir de agora, processarei os caluniadores”. Com essa frase, Mino Carta, dono da revista Carta Capital, abre o último parágrafo de um texto em que, mais uma vez ,tenta se livrar da responsabilidade por textos que escreveu e orientou em Veja durante o início do seu potentado como diretor de jornalismo.
No texto, escrito em resposta a um artigo do Professor Demétrio Magnoli, Carta se gaba de ter mais autonomia sobre a o conteúdo da revista do que seus donos: “Eu gozava de notável autonomia: os donos da casa não tinham acesso à pauta e saberiam de cada edição depois da publicação, na manhã das segundas”. Mas se esquiva de toda a responsabilidade pelo apoio deslavado que a publicação, sob sua excelsa gestão, emprestou não apenas ao golpe, mas também a algumas ações do DOI-CODI e até à famigerada OBAN.
Na réplica a Magnoli, Carta, como de costume, põe o ponto inicial da história no período que se seguiu à eleição de Geisel, de 74 em diante, quando de fato Veja inicia um movimento de distanciamento do governo dos generais. Sobre tudo o que se passou no período mais obscuro e cruento da ditadura militar, Mino Carta se cala para não ter que explicar as loas que ele e a Revista Veja teceram ao regime.
A reportagem sobre a tortura que ele cita como prova de sua independência — e até mesmo repulsa — dos generais é, na verdade, um exercício explícito de sabujice. Não era a revista denunciando. Era Veja dizendo que Geisel não aceitava a tortura. Não era uma matéria sobre a tortura. Era uma matéria enaltecendo o ditador. Ainda assim, falava sobre a tortura, como de resto falavam jornais como o Estadão, que já haviam revisto sua posição explícita de apoio ao golpe em 1964.
Em sua ode a si mesmo, Carta transforma submissão em astúcia e audácia para explicar os afagos explícitos ao penúltimo general-presidente: “Tratado, porém, de forma que pretendíamos astuta, o terceiro ditador. Baseados no tom moderado do seu pronunciamento de recém-empossado, logo saímos com uma capa de chamada positiva, “O presidente não admite tortura”. Antes que uma informação, era ilação audaciosa””.
Mino Carta diz que vai processar “caluniadores” que revirarem seus textos. Aquele período da história que transcorreu entre 1964 e 1969 simplesmente não existiu na biografia do homem que se pretende o Gutemberg da ‘mídia nativa’. Escrever sobre o que ele escreveu, como fez Magnoli — e como eu mesmo fiz no começo dessa polêmica — pode transformar um escriba de boa-fé em caluniador.
Ofereço a Mino Carta este texto como matéria-prima para sua investida judicial contra os ‘detratores’ de sua biografia. Não creio que ele irá adiante na empreitada porque é ridiculamente fácil provar que Mino escreveu o que escreveu. Embora ele negue, está tudo no arquivo digital de Veja, que é público e está à disposição de todos — até dele próprio, Mino Carta, que bem poderia nos ajudar a encontrar qualquer texto de sua lavra com críticas à ditadura militar brasileira anterior à reportagem sobre a tortura .
Mino não as fez porque, como boa parte da imprensa brasileira, mudou ao longo do tempo. Enquanto os chamados ‘jornalões’ já fizeram a sua autocrítica — aliás, tão criticadas pelo ex-editor de Veja — falta a Mino grandeza para fazer o mesmo: pedir desculpas pelo que escreveu quando o Brasil mergulhava no período mais obscuro de sua história recente.
Mas não creio que Mino Carta irá fazê-lo. Porque dispõe de um pequeno exército de funcionários par defendê-lo, funcionários que, como ele mesmo diz, “chamam patrão de colega”. Não creio porque ele jamais admitiu que prestou todo tipo de apoio a Orestes Quércia, um dos mais notórios corruptos pós-64.
Não creio porque, de resto, Mino Carta continua manipulando fatos, expurgando do noticiário o que não lhe convém ou não interessa a seus patrocinadores (oficiais, quase todos). Quer um exemplo disso ? Fácil! Entre no site de Carta Capital e procure alguma coisa sobre André Vargas, o petista salafrário que se associou ao pior da burocracia e a uma rede de lavadores de dinheiro sujo para roubar o contribuinte. Não há nada, nenhuma menção ao larápio que dominou o noticiário brasileiro esta semana. Por que será ?
Para que não digam que sou injusto na crítica, há um único registro, um ‘esforço de apuração’ materializado numa referência à reportagem de capa de Época neste fim-de-semana. Só isso. É assim que se faz o jornalismo com ‘controle social’ da mídia.
Agora, que venha o processo!