Há anos prosas. Há anos poesias. Há anos proesias. E, claro, há outros — históricos, filosóficos etc. 2023 talvez tenha sido meu ano-poesia. Poesia, para mim, é religião, ainda que, por vezes, laica.

Na Argentina é possível encontrar livros editados em Barcelona e Madri. Muitos livros. No Brasil, irmão caçula de Portugal, praticamente não encontramos livros editados na terra de Lídia Jorge e Sophia de Mello Breyner Andresen (de quem li o magnífico “Coral e Outros Poemas”, publicado pela Companhia das Letras). Por isso, é preciso elogiar, de manhã, à tarde e à noite, a Livraria Travessa, uma das poucas que comercializam obras editadas no país de Agustina Bessa-Luís, José Régio e Lobo Antunes.

Paul Celan

Como não leio alemão, contentei-me com a poesia completa — espera-se — do romeno Paul Celan publicada pela Assírio & Alvim (espécie de Iluminuras ampliada), com o título de “Os Poemas”. São 1150 páginas. A tradução é de Maria Teresa Dias Furtado. É como se você entrasse no Inferno, passasse pelo Céu e voltasse à Terra. Não incólume, mas, ao menos, vivo. Talvez. (Com os pais assassinados pelo nazismo da Alemanha de Hitler e com a alma corroída pela dor, este poeta, que escrevia em alemão, se matou jogando-se no Rio Sena, em Paris, aos 49 anos.)

Pense em Paul Celan como uma espécie de T. S. Eliot de língua alemã. Grande. Entre os gigantes. Por sinal, há traduções de qualidade publicadas no Brasil, porém não de toda a poesia. Entre os tradutores patropis estão Flávio R. Kothe (“A Poesia Hermética de Paul Celan”, Editora UnB), Cláudia Cavalcanti (“Cristal”, Editora Iluminuras), Guilherme Gontijo Flores (“Ar-Reverso”, Editora 34) e Mauricio Mendonça Cardozo (“A Rosa de Ninguém”, Editora 34). Por sinal, os tradutores apresentam muito bem o bardo

Li também, numa edição da Antígona, “Tempo do Coração — Correspondência”. São as cartas trocadas entre a poeta e prosadora austríaca Ingeborg Bachmann (cuja poesia nos chegou com tradução apurada de Cláudia Cavalcanti, em edição da Todavia) e Paul Celan. Os dois foram amigos e “amorados”.

Como leitor obsessivo, li, tive de ler, “Paul Celan — Poeta, Superviviente, Judió”, de John Felstiner. O mestre de Stanford assinala: “Acima de tudo”, Paul Celan “foi um poeta: um poeta judeu, por força e escolha. Foi um poeta e um judeu de sua época”.

Não deixei de ler “Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange: Uma Correspondência de Amor e Sombra” (7 Letras), de José Eduardo Barros.

Emily Dickinson

De Paul Celan, saltei, sem vara, para um livro, desde já, indispensável “Poesia Completa”, de Emily Dickinson. A obra, gigante, ganhou tradução de Adalberto Müller — espécie de Héracles dos tradutores. Saiu numa parceria das editoras UnB e Unicamp. Recomendo que o livro seja lido com breves consultas às traduções de Manuel Bandeira, Aíla de Oliveira Gomes, Idelma Ribeiro de Faria, Augusto de Campos e José Lira.

A obra completa de Emily Dickinson deve ser tratada como uma bíblia laica. Todos os dias, doente ou saudável, leio alguns de seus “versículos” (vários sei de cor e salteado). Harold Bloom sugere que la Dickinson é uma espécie de Shakespeare do país dos ianques e confederados. Procede. Mas eu acrescentaria que sua poesia é uma bíblia… para religiosos e agnósticos. Uma espécie de novíssimo testamento… poético.

Alejandra Pizarnik

A poesia de Alejandra Pizarnik é celebrada pelos leitores; ela se matou aos 36 anos | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

De uma “flanagem” por Buenos Aires, trouxe “Poesía Completa”, da argentina Alejandra Pizarnik, que morreu aos 36 anos e nos legou uma obra tão bela quanto madura. Sua poesia está saindo no Brasil pela excelente Editora Relicário. É poesia para cérebros fortes e frágeis? Talvez.

Lida a poesia, que me encantou, apesar (e por causa) de suas tristezas e dores, adquiri, via Estante Virtual, “Alejandra Pizarnik — Biográfia de un Mito”, de Cristina Piña e Patricia Venti. O livro é excelente porque, além do conhecimento da vida, as autoras são pesquisadoras da obra de Pizarnik.

D. H. Lawrence

Li, reli, treli e quatrili a poesia de D. H. Lawrence — um criador que se deu bem, muito bem, tanto na prosa quanto na poesia.

Há ao menos duas edições valiosas de sua poesia em português-brasileiro: “Poemas de D. H. Lawrence” (Alhamba), tradução de Leonardo Fróes, e “Alguma Poesia” (T. A. Queiroz, Editor), tradução de Aíla de Oliveira Gomes.

Tu quer falar com Deus, sem a intermediação de um padre ou de um pastor? Pois, possível amigo, consulte Paul Celan, Emily Dickinson e David Herbert.

Edna St. Vincent Millay

Bruna Beber é uma tradutora de muita coragem e talento “vertetório”. A jovem poeta traduziu, com brilho e, eu ia dizendo, galhardia (o bardo Carlos Willian Leite cortaria, por antiquada, a palavra dos tempos de antanho), a bela poesia de Edna St. Vincent Millay.

“Poemas, Solilóquios e Sonetos” (Âyiné — ótima editora) é de uma beleza rara. Não precisa ler de joelhos. Mas, se quiser, pode. Eu não ajoelho porque, aos 62 anos e com a trombofilia dando avisos, meus joelhos doem, numa reclamação muda. Aos que não dormem — leitores de poesia só ressonam, cochilam, algo assim —, recomenda-se o essencial “Edna St. Vincent Millay — Belleza Salvaje” (Circe, tradução de Beatriz López-Buisán), de Nancy Milford. Li 319 de suas 639 páginas — traduzindo vários trechos (estão num caderno de capa dura de pouco mais de 90 páginas). Prometo, se Deus quiser e Dante (e talvez Milton) permitir, concluir a leitura este ano.

Aleksandr Púchkin

Cara, não posso esquecer de falar, brevemente, de “Evguiêni Oniéguin” (Companhia das Letras), do russo Aleksandr Púchkin, com tradução e apresentação de Rubens Figueiredo.

Trata-se de um romance em versos ou versos transformados num romance. É de uma beleza rara. Tão moderno que parece ter sido escrito, não ontem, e sim amanhã.

Lezama Lima

Não posso deixar de falar de “Dupla Noite — Antologia Poética” (Demônio Negro), do cubano Lezama Lima, com tradução esmerada — ainda se pode escrever tal palavra, filhos dos Brothers Concretos? — de Adriana Lisboa e Mariana Ianelli.

Poema de José Lezama Lima
Chamado do desejoso
Desejoso é aquele que foge de sua mãe.
Despedir-se é cultivar um orvalho para uni-lo
                                             [à secularidade da saliva.
A profundidade do desejo não busca o sequestro do fruto.
Desejoso é deixar de ver sua mãe.
É a ausência do ocorrido de um dia que se prolonga
e é na noite que essa ausência se vai afundando
                                                         [como uma faca.
Nessa ausência se abre uma torre, nessa torre
                                                         [dança um fogo oco.
E assim se espraia e a ausência da mãe é
                                             [um mar em calma.
Mas o fugidio não vê a faca que lhe pergunta,
é da mãe, dos postigos assegurados, que foge.
O descaído em sangue velho soa vazio.
O sangue é frio quando desce e quando
                                             [se esparge circulizado.
A mãe é fria e está plena.
Se for pela morte, seu peso é duplo e já não nos solta.
Não é pelas portas onde assoma nosso abandono.
É por um claro onde a mãe ainda caminha,
                                                         [mas já não nos segue.
É por um claro, ali se cega e logo nos deixa.
Ai do que não caminha essa caminhada onde a mãe
                                                        [já não o segue, ai.
{“Dupla Noite — Antologia Poética”, de José Lezama Lima. Seleção
e tradução de Adriana Lisboa e Mariana Ianelli. Selo Demônio Negro}

Pense em Carlos Drummond de Andrade. Pensou? Pois é: José, o Lezama Lima, é o Drummond da Ilha.

A grande revolução cubana, aquela que ficará, e não como rodapé da história, é (a) literária, cultural — de Lezama Lima, Severo Sarduy, Virgilio Piñera, Alejo Carpentier e Guillermo Cabrera Infante.

Walt Whitman

De uma livraria pequena de Brasília, a Sortir, arranquei “Dias Exemplares” (Editora Carambaia), de Walt Whitman, com tradução de Bruno Gambarotto. “É uma espécie de autobiografia livre e comentada”, diz a contracapa.

Pois agora, juventudes rebeldes deste país sempre varonil, é esperar a chegada, em 2024, da poesia completa do bardo americano (“pai” de, entre outros, D. H. Lawrence), com tradução do fantasticamente excelente Guilherme Gontijo Flores.

Gabriel Nascente e Sonia Elizabeth

Gabriel Nascente lançou um livro pequeno no tamanho e grande na poesia: “A Alma das Palavras (Ou Lições Que Nada Ensinam)”. O bardo brasileiro ensina a fazer poesia por meio da/de poesia. Lembra, e não vagamente, Rilke, o notável poeta de língua alemã.

“A Lírica Poética da Manhã Que Chega (Ou um Tango Noturno Para o Anjo Aquiles)”, de Sônia Elizabeth, é poesia de alto nível. O que prova que a poesia patropi está viva. Vivíssima. Estão mortos, isto sim, os críticos de poesia que não apreciam… poesia.

Li mais cousas (livros de Salomão Sousa, Valdivino Braz, Delermando Vieira e Ronaldo Costa Fernandes, belíssimos bardos). Coisas? Não é o mote justo para livros. Mas fiquemos com as obras arroladas acima. São portas (portais) de entrada para a civilização e para a beleza (aquela que põe mesa, cérebro e, por vezes, coração).