Durante algum tempo, quando ainda lia literatura, encasquetei de ler a obra literária de Edmund Wilson e Susan Sontag. Li alguma coisa, com relativo interesse. Porém, ao perceber que, se escreviam até bem, por conheceram as técnicas literárias, a ambos faltava, digamos, a imaginação literária de escritores “naturais”. Voltei-me, então, para a crítica literária da dupla americana — que é de excelente qualidade, notadamente a do autor do pioneiro “O Castelo de Axel” (os ensaios sobre Proust e Joyce permanecem imperdíveis), publicado no Brasil com tradução escorreita do bardo José Paulo Paes.

Veja-se o caso de Silviano Santiago. Sua crítica literária, em ensaios magistrais, o coloca no nível de Antonio Candido, Wilson Martins, João Alexandre Barbosa, Leyla Perrone-Moisés, Leda Tenório Motta, Davi Arrigucci Jr., Aurora Fornoni Bernardini, Alcir Pécora, Flora Sussekind. Mas e como prosador? Escreve muitíssimo bem, chega a impressionar pelo virtuosismo. Mas sua literatura o consagrará como escritor? Pelo que li, não. O conhecimento preciso de técnicas literárias, hoje tão ensinadas nas oficinas literárias, não leva necessariamente a se escrever uma obra da estatura de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Vidas Secas” e “Grande Sertão: Veredas”.

Entretanto, há um escritor patropi, Miguel Sanches Neto, de 57 anos, que consegue “produzir” literatura e crítica literária de primeira linha. É um caso raro, similar ao de Vladimir Nabokov (idiossincrático ao detestar Dostoiévski; porém, salvo engano, “Lolita” é mais filho do autor de “Os Irmãos Karamázov” do que de “Anna Kariênina”, de Liev Tolstói), Mario Vargas Llosa (que começou melhor como prosador, mas está terminando a “carreira” mais como um crítico estupendo, às vezes) e Orhan Pamuk (de quem comecei não gostando, e fui apreciando, aos poucos — e nem sei por quê).

Não sei se é impressão, mas me parece que Miguel Sanches Neto distingue, à perfeição, o seu trabalho de crítico literário do de escritor. Trata-se de um duplo que, obviamente, é um só. Na verdade, um tributário do outro, e, ainda assim, diferentes.

A formação do crítico, do intelectual forjado na lida universitária, que exige rigor e método, ajuda o escritor. E o escritor contribui, de maneira cristalina, para o crítico entender de maneira mais ampla a obra de seus pares.

Miguel Sanches Neto é um escritor, que, mesmo quando escreve sobre o real, a respeito do que aconteceu, usa sua imaginação poderosa para iluminá-lo. Li e ri muito de seu romance (“Chá das Cinco Com o Vampiro”) que tem como “personagem” o escritor curitibano Dalton Trevisan, uma vaca sagrada das letras verde-amarelas. Não deveria ter rido, mas ri, às vezes gargalhei, deliciado. Espero que o Vampiro de Curitiba, passada sua irritação inicial com o notável strip-tease de sua alma absconsa, tenha dado pelo menos um risinho com a leitura do “romance” (é biografia-romance). Duvido que o contista exímio, de 97 anos, não tenha lido e relido, e com certo prazer, o “romancinho”.

Há de perguntar o leitor o porquê dos encômios. Ah, sim, lembrei-me. Li, no jornal “O Maringá”, uma entrevista de Miguel Sanches Neto que me deixou espantado. Ele disse ao repórter Cristiano Monteiro Martinez, na reportagem publicada sob o título de “‘Sou um escritor em retirada’, diz Miguel Sanches Neto”, que está se divorciando da literatura. Não acreditei, mas o autor é enfático.

Há pouco, pela Companha das Letras, saiu, de Miguel Sanches Neto, o romance “O Último Endereço de Eça de Queiroz” (sentei-me, na Livraria Leitura, e li umas 30 páginas, deliciado com a inteligência literária do autor, que, falando do “antes”, está versando sobre o “sempre”). “Planejei este como o último livro que escrevi. Tenho dois outros prontos, que são anteriores. Um romance, ‘Inventar um Avô’, que sairá em março de 2023, e um livro de contos inéditos que pretendo não publicar, se eu tiver caráter suficiente para isso. Não quero escrever mais em nenhum gênero, apenas cuidar dos livros já publicados. Estou tentando com isso encerrar minha carreira de escritor, tal como um jogador de futebol faz quando chega a uma idade”, disse a Cristiano Monteiro Martinez. Para, repito, meu espanto. Como pode um escritor de apenas 57 anos, no auge de sua criatividade, pendurar as chuteiras?! O que nós, pobres leitores, devemos dizer? Pouco. Só “não pare”.

Reitor da Universidade de Ponta Grossa, no Paraná, Miguel Sanches Neto diz que é um “escritor em retirada”.

A íntegra da ótima entrevista concedida a Cristiano Monteiro Martinez pode ser conferida no jornal “O Maringá”.