Miguel Sanches decifra a esfinge Dalton Trevisan
10 dezembro 2024 às 09h16
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“Chá das Cinco Com o Vampiro” (Objetiva, 285 páginas), de Miguel Sanches Neto, é um roman à clef da pesada. Seu projeto, se há um, é desmitificar o escritor minimalista Dalton Trevisan, conhecido como Vampiro de Curitiba, por conta de sua reclusão salingeriana (a diferença é que publica). Sanches escreve com muita graça, sem porra-louquice.
Aos 84 anos, Trevisan reagiu com fúria ao saber do romance e chamou Sanches de “hiena papuda”. Vi uma fotografia de Sanches. Não parece papudo nem Sancho Pança. Talvez tenha o gogó mais pronunciado do que o de outros homens. Mas, “hiena papuda”, é exagero produzido pelo ódio. Depois de certa idade, não se tem mais tempo para ter raiva — tem-se ódio, que é raiva transformada em pedra e que se leva para o túmulo (raiva é ódio provisório). O livro é tão interessante que, começada a leitura, não queremos mais parar. O que buscamos? Escândalos? Talvez. Ou, quem sabe, um sentido para a obra de Trevisan, que, embora sabendo importante, não me apetece. Trevisan parece ter uma vida insossa, mas sua imaginação voa mais alto do que o cotidiano sem importância.
A crítica a Dalton Trevisan é direta: “O que destrói uma pessoa, qualquer pessoa, por mais reservada que seja, é a vaidade. No fundo, estamos sempre querendo ser aceitos. Esperando a aprovação dos outros. E fingimos indiferença ao mundo, ou mesmo ódio, até certo ponto. Há uma hora em que nos rendemos”. Será que Trevisan cabe na modelagem traçada pelo costureiro de palavras Sanches? Os indivíduos não são diferentes? Seu livro resulta do fato de, aparentemente, ter sido humilhado pelo mestre? Não sabemos. Sanches é corajoso, pois, como adotamos o modo de vida americano, por qualquer motivo se processa e se exige indenização no Brasil.
Quando conversa com mulheres jovens e bonitas, o Vampiro fica aceso, contando histórias, como se quisesse rejuvenescer. Pois o elixir do velho é a juventude. No encontro com duas garotas, uma delas jornalista, Trevisan se mostra encantador. “Um vampiro nunca antes tão compreensivo, levemente histriônico, conquistador”, conta Sanches. Só faltou dizer que o Vampiro estava babando. As palavras são as babas dos escritores, e, às vezes, não apenas dos escritores.
Sanches mostra Trevisan como “ex-viciado” em chocolate. Um guloso, enfim.
O Trevisan repetitivo, até cansativo, é explicitado por Sanches, ou melhor, pela personagem Beto. Trevisan deve ter se irritado ao ler sobre seu método de “pesquisa” — pagando pessoas para buscar informações (Proust não fazia diferente) — e a história de que Beto-Sanches, ao revisar seus contos, polia-os.
O personagem Geraldo Trentini é Dalton Trevisan escarrado. Sanches faz questão de nada esconder. Trevisan e Trentini têm oito letras, com cinco consoantes e três vogais. O início dos sobrenomes começa com “tre”. O objetivo de Sanches é não deixar dúvidas. Mas o romance sobrevive como romance? É o que os críticos terão de responder daqui pra frente. A minha impressão é que ficará como uma espécie de biografia, ou ensaio biográfico, não autorizada do Vampiro de Curitiba. Um ponto de partida para a futura biografia, que poderia ser escrita, digamos, por José Castello.
O livro me fez bem, pois ri, sozinho, várias vezes. Fico a pensar: Trevisan, atingido pelas palavras cruéis — quanto mais verdadeiras mais cruéis —, nem pode rir. Mas será que, sozinho, não dá boas risadas? Se não der, e aí Beto estará certo, bom sujeito não é. (Texto de abril de 2010)