McGregor está se comportando como se fosse Muhammad Ali. Mas José Aldo não quer ser George Foreman

01 abril 2015 às 00h13
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Os espíritos de W. B. Yeats e James Joyce se encontram, em Dublin, e, depois de falarem de poesia e prosa, avaliam que Colm Tóibín e John Banville são escritores acima da média, mas não escreveram um romance superior a “Ulysses”. Yeats e Joyce, que apreciava boxe — a sétima arte —, concluíram, depois de muito discutir se Henry James e T. S. Eliot eram ingleses nascidos nos Estados Unidos, que Muhammad Ali ganhou de George Foreman, dono da maior pegada da história do boxe, no Zaire, em 1974, não porque fosse muito melhor, e sim porque era mais inteligente. Ali começou a ganhar a “batalha” — contada por Norman Mailer no delicioso livro “A Luta” — fora do ringue. Todos os dias, de maneira infalível, dizia à imprensa e às pessoas que derrotaria Foreman, que este era galinha morta. Foreman ouvia e não conseguia absorver as críticas. Quando subiu ao ringue, estava quase derrotado, moralmente abatido, sem graça. Não lutou mal, mas estava irreconhecível, quase um zumbi, ou um autômato. A “abelhinha” Ali, mais frágil, porém mais ágil, “picava” e saía. Chegou a ser acossado, mas a famosa pegada de Foreman parecia habitante de Marte. Foreman-Golias acabou nocauteado, de maneira vexatória, por Ali-Davi.
Depois de examinarem a luta de Ali e Foreman, que os dublinenses mais sábios chamam de o massacre da serra elétrica, Yeats e Joyce consultaram Rhoodes Lima — o nome não poderia ser mais adequado para um narrador de lutas de MMA — e concluíram, obedecendo à lógica implacável do brasileiro, que o “psicológico” é decisivo no octógono. Sigmund Schlomo Freud, morto em 1939 mas assombrando a todos, por vias do inconsciente coletivo e dos sonhos, não entende direito o que Roodes Lima — o nome, insistimos, é um colosso — quer dizer com “psicológico”. Porém, os sábios que assistem as lutas de artes marciais mistas (o curioso é que, com alguns gladiadores, não há MMA, e sim boxe, ou jiu-jítsu. Há lutas unidimensionais) entendem o que narrador diz ou quer dizer. O que é psicológico? Bem, o psicológico é o psicológico. O que isto quer dizer mesmo? Nada e, ao mesmo tempo, tudo. Traduzindo, pois Roodes Lima é quase um Joyce do MMA, o que se quer dizer mesmo? Simples: que um sujeito entrou com a cabeçorra (e aquelas orelhas quase de Shrek) mais leve e focada do que seu adversário. Há, de fato, lutadores que entram no octógono quase derrotados. Uns entram vitoriosos e, assim, saem mesmo vitoriosos. Júnior Cigano, quando luta com Cain Velasquez, entra derrotado e sai massacrado. Quanto mais tem medo de apanhar, dada a fragilidade de seu “psicológico”, mais apanha.
Com tanta conversa atravessada, Yeats não sabe mais sobre o que estava conversando com Joyce. Seria sobre o “sim” de Molly Bloom — que dava mole? — ou a respeito dos chifres de Leopold Bloom? Não. A enrolação toda tem a ver com a luta do brasileiro José Aldo, espécie de Ulisses homérico, contra o irlandês Conor McGregor, um Stephen Dedalus do octógono, tão beberrão, quem sabe, quanto Joyce (ou pai deste), mas que se veste, oh!, como Oscar Wilde (aquele que beijou Walt Whitman na boca). É um dândi de língua grande.
O que pretende Conor McGregor ao se portar e ao se postar como vencedor antes da luta? A explicação, se há, é prosaica: o jovem impetuoso deve ter lido “A Luta”, o livraço de Norman Mailer, e se considera o Ali branco da Irlanda. McGregor, que prefere esperar Godot a Janot, nada tem de beócio. É inteligente e esperto. Talvez até espertíssimo. Ele está tentando, com o “sistema psicológico” de Ali, diria o indefectível Rhoodes Lima, derrotar o patropi José Aldo antes mesmo da luta. Criar um “clima” de já ganhei. Yeats avalia que é assim mesmo: luta-se com as armas disponíveis. E, como Joyce sugere em “Finnegans Wake”, a língua é a arma mais letal da história.
Porém, Hemingway, que não estava na história, mas foi chamado às pressas para dotar este texto surrealista de mais contenção, disse (quase clamando) para Yeats e Joyce: “Amigos, como sugerem o Rhoodes Lima e o craquíssimo Luciano Andrade, o Wilson Baldini ou o Eduardo Ohata do MMA, José Aldo não é galinha morta e suas declarações são verdadeiros torpedos”. O autor de “Por Quem os Sinos Dobram” tem razão: José Aldo, pós-joyciano, pôs banca e, leitor, em Dublin, a cidade de Joyce, Samuca Beckett e McGregor, cantou de galo, como James, o Joyce, se avaliava como cantor, até de algum mérito.
Não posso mentir. Ao ler, talvez no Universo Online, o tedioso UOL (um texto sobre MMA mais parece literatura de José Mauro de Vasconcelos — simplória mas atraente), que José Aldo havia se intitulado “rei de Dublin”, e exatamente em Dublin, ri (só não gargalhei porque lembrei-me de Simão Bacamarte e corei) e passei a vê-lo como bandeirante. McGregor estava provocando e saiu sem lã, pois José Aldo, o Ulisses tropical, disse, com palavras literárias, lembrando Shakespeare: “Não me afeta em nada [as palhaçadas calculistas de McGregor]. Isso não é nada para mim. Não é nada! Eu sou o campeão! Você não é nada [olhando para McGregor]! Eu cheguei aqui, sou o rei, cheguei e trouxe o sol para esta cidade! Trouxe o sol para vocês sorrirem!”. Confesso, Rayana Caetano, Candice Marques, Frederico Jayme, Rafael Theodor Teodoro, Ricardinho Tavares, que ouvi uma voz de barítono, aparentemente a de Yeats, dizendo: “Um poeta como José Aldo já começa ganhando”. Pô, um cara que chega e leva o sol, para iluminar a Dublin de Joyce, acaba de reescrever “O Retrato do Artista Quando Jovem”. McGregor, que começava a derrotar José Aldo longe do octógono, afetando seu “psicológico” — perdoe o Rhoodes Lima e o Luciano Andrade, mr. Freud —, desesperou-se.
Um irlandês desesperado em Dublin é, de certa maneira, um personagem de “Ulysses” (ou um personagem de Oscar Wilde, talvez “Dorian Gray”), perdido nas ruas ou no (ou fora do) octógono. McGregor, deixando de ser um personagem de Joyce para se tornar um personagem do delicioso e sujo romance “Um Safado em Dublin”, de J. P. Donleavy (um Joyce com a boca um pouco mais suja, com uma linguagem ágil, filha do criador de “Dublinenses”), decidiu tomar à força o cinturão de José Aldo. O UOL, meio patrioteiro — e, admito, até gostei da patriotada, pois estou torcendo por José Aldo e apreciando o jogo circense armado pelo habilíssimo Dana White, um personagem de Charles Dickens perdido nos Estados Unidos, como se fosse um personagem da americana Donna “Dickens” Tartt, a de “O Pintassilgo” —, publicou que McGregor “roubou” o cinturão do brasileirinho feio mas charmoso.
O’Keefe, personagem de “Um Safado em Dublin” — ou “The Ginger Man” —, na página 40, é explícito: “É disso que eu gosto a respeito da Irlanda, tão aberta no que diz respeito a ódios”. Mas o ódio de McGregor é circense, é show, é espetáculo. É marketing. Calculando que José Aldo não iria reagir — suas palavras foram cortantes (levar o sol para Dublin, Deus!, Joyce não faria melhor; talvez Yeats, poeta dos melhores) —, McGregor disse, ou melhor, gritou: “Ele não vai fazer nada, assim como hoje não fez nada. Ele disse que faria alguma coisa (se eu o tocasse), e não fez nada!” Entretanto, noutra provocação inteligente, e na terra de Joyce, um escroque de gênio, José Aldo torpedeou: “Foi tranquilo, já esperava [o clima hostil], principalmente pelo fato de eles não terem ídolo, não terem nada. Não foi nada, isso não é nada! Nunca vai ser nada. Não senti nada, o máximo que ele pode fazer é isso, porque na próxima vez que estivermos frente a frente, vou bater muito na cara dele”. Desconcertante. Não aprecio a palavra fã, que é meio bocó, mas não há como não admirar as palavras de José Aldo — o Oswald de Andrade do MMA.
Pô, fico criticando o UOL, com seus textos tediosos, e acabei fazendo um texto longo, xaropesco, sobre José Aldo, espécie de Macunaíma às avessas e o primeiro adepto da antropofagia do MMA. Ele “devorou” a Irlanda e, junto, McGregor. Joyce comentou com Yeats: “Putisgrila, poeta, quem diria: um brasileiro, que nem é leitor de Guimarães Rosa, aquele que escreveu o ‘Ulysses’ dos trópicos, acabou canibalizando um irlandês”. O MMA levou a Semana de Arte Moderna para Dublin.
Joyce está “certo”. McGregor perdeu o primeiro round. Até agora, José Aldo não parece nada abalado. Mas o irlandês deve ter ficado assustado com sua verve. Eu, que me assusto com Joyce e Beckett, quase sempre, fiquei estupefato com o verbo quente do lutador brasileiro. Seu “psicológico” — para citar mais uma vez a fera Rhoodes Lima e a bela Kyra Gracie Guimarães — está em ordem. Eu, claro, já estou colocando meu protetor bucal e pondo minhas luvas. À espera dos próximos quatro rounds. Evoé!