“Mau-humoristas”, como Danilo Gentili e Leo Lins, fazem da comédia humilhação
10 julho 2022 às 00h00
COMPARTILHAR
Um se tornou “ex-SBT” na semana passada, merecidamente demitido do programa do outro por debochar de pessoas com deficiência
Existe um conceito – que melhor poderia ser chamado de “dogma” – defendido por um grupo de comediantes segundo o qual não pode haver qualquer barreira para o humor. Para esse pessoal, é possível fazer piada sobre qualquer tema e não pode haver qualquer tipo de censura. O contrário disso seria um imperdoável atentado contra a liberdade de expressão na “arte” de fazer rir.
O maior expoente desse tipo de pensamento no Brasil é Danilo Gentili. O humorista, que surgiu para a fama como repórter do programa CQC, da Band, em 2008, se tornou uma referência moderna de apresentador-comediante com o The Noite, o talking show que comanda no SBT desde 2014. Alguns diriam que poderia ser o Jô Soares dos novos tempos. O The Noite seria esse espaço, mas seu âncora o desperdiça
Era nesse mesmo programa que Leo Lins trabalhava até a semana passada. Antes, entre 2011 e 2013, fez o Agora é Tarde, também com Gentili, que o levou “na bagagem” quando se transferiu para a emissora de Silvio Santos. E, de fato, a parceria entre ambos sempre teve o humor chamado “politicamente incorreto” como amálgama.
Gentili partiu para a militância política, especialmente contra a esquerda, pelo menos desde as manifestações das jornadas de junho de 2013. Em 2014, apoiou explicitamente o senador Aécio Neves (PSDB), que disputava a Presidência. Não se sabe se era de fato um apoio ao político tucano ou, mais do que isso, uma torcida contra Dilma Rousseff, a candidato petista.
Por razões particulares, o comediante se convenceu de que o “politicamente correto” era uma pauta das esquerdas. Talvez porque tenha alcançado o sucesso quando quem governava era o PT e tenha encontrado críticas a seu papel como personagem crítico à política no CQC, mas isso seria apenas uma conjectura. O que é fato é que Danilo Gentili construiu sua fama ao agir como um personagem de seu antigo “chefe” Marcelo Tas.
Nos anos 80, portanto bem antes dos tempos de CQC, Tas encarnou o esquisito repórter Ernesto Varela, que, sempre a seu modo desajeitado, já fazia perguntas incômodas e “na lata”, como se diz. Uma brilhante sacada para questionar celebridades — e, especialmente, políticos – com questões que poderiam ser consideradas embaraçosas, ultrajantes ou desrespeitosas. Como uma vez, surpreendendo o ex-prefeito e ex-governador paulista Paulo Maluf, meteu esta: “Muitas pessoas não gostam do senhor, dizem que o senhor é corrupto, ladrão. É verdade isso, deputado?”:
A diferença é que a comunicação não era tão rápida e conectada como hoje. No CQC, Danilo Gentili foi um Varela excessivo, “over”, fora da linha – e talvez tenha se vangloriado disso.
Leo Lins é um comediante que nunca prezou pela delicadeza ou empatia em suas piadas. Gosta de chocar e não é de hoje. Em 2013, iniciava uma turnê pelo Japão quando foi praticamente deportado, após surgir um trechos de uma apresentação de 2011, em que havia feito piadas com as tsunamis e os terremotos que tinham, então, acabado de atingir aquele país.
No caso que o levou à demissão, Lins estava bem à vontade, em um de seus stand-ups. Começou a falar sobre o Teleton, programa filantrópico do SBT similar ao Criança Esperança, da Rede Globo, que visa arrecadar fundos para a Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD).
Na interação com seu público, ficou relaxado para mandar o seguinte texto:
“Eu acho muito legal o Teleton, porque eles ajudam crianças com vários tipos de problema. Vi um vídeo de um garoto no interior do Ceará com hidrocefalia. O lado bom é que o único lugar na cidade onde tem água é a cabeça dele. A família nem mandou tirar, instalou um poço. Agora o pai puxa a água do filho e estão todos felizes.”
Toda piada é baseada em pré-conceitos – no sentido de ser necessário ter acesso prévio a certos dados para que a piada possa fazer sentido. Para dar um exemplo bem banal de uma tirada infame, no estilo “o que é, o que é?”, para responder à questão “o que é um pontinho brilhante no meio da grama?” com a resposta “uma formiguinha de aparelho”, é preciso saber antes que: 1) uma formiguinha é algo minúsculo; 2) que o aparelho em questão é um aparelho ortodôntico; e 3) que o brilho vem do reflexo da luz no metal que compõe o aparelho (talvez em um “sorriso” da formiguinha). Essa estrutura toda compõe a rápida piada – sem graça para alguns, “brilhante” para outros e certamente infame para todos.
Em seu humor, Léo Lins usa pré-conceitos preconceituosos: no texto acima fala em “crianças com problema”, em vez de “necessidades especiais”; inventa o interior do Ceará como “local” de sua “piada” sob o imaginário do sertão castigado pela seca para contrapor o termo “hidrocefalia”. Em seu texto fraco, infeliz e de empatia zero, Lins quer passar a mensagem de que a cabeça do menino tem água para abastecer a família e resolver a questão. Um “problema” resolvendo outro “problema”.
Acabou demitido. E, vejamos bem, SBT é bem condescendente com coisas do tipo – o próprio Silvio Santos, em seu programa, já foi inúmeras vezes preconceituoso, homofóbico e misógino, ainda que com mais discrição. Teria demitido Leo Lins se a piada fosse com, por exemplo, o Criança Esperança ou algo similar, mas que não atingisse a casa, diretamente? Não se sabe. Mas, de qualquer forma, fez o que deveria ser feito.
No entanto, a demissão poderia ter sido por falta de competência no desempenho da função. homem do Baú poderia simplesmente usar esse argumento e estendê-lo a Danilo Gentili – bom apresentador, mas comediante ruim. Ambos, Gentili e Lins, “mau-humoristas” que utilizam o espaço que têm para humilhar pessoas.