O sociólogo espanhol Manuel Castells concedeu uma curta, mas interessantíssima — diria Mário de Andrade —, entrevista ao repórter Caio Sartori, do jornal “Valor Econômico” (sexta-feira, 2).

Num trecho, infelizmente curto — o que sugere uma análise exploratória —, Manuel Castells parece inserir a disputa no Vaticano, por vezes silenciosa, na luta política global, na qual esquerda, centro, direita e extrema direita estão se engalfinhando, não raro literalmente.

Um dos mais importantes pensadores da atualidade, Manuel Castells, de 81 anos, percebe que há uma luta, que aponta como decisiva, entre progressistas e conservadores, no Vaticano, pelo controle da Igreja Católica. Há um movimento para se colocar um papa conservador no comando da maior e mais poderosa instituição religiosa global. O sociólogo ressalta que a reforma promovida pelo papa Francisco é “corajosa”. É um enfrentamento com forças tradicionalistas altamente enraizadas na estrutura da Igreja.

Francisco: o papa que está “atualizando” a Igreja Católica | Foto: Blog Ney Vital

Francisco está promovendo uma reforma modernizante na Igreja Católica — atualizando-a. Mas a resistência é crescente. A tendência é que o próximo papa seja conservador. Porém, há um detalhe não explicitado por Manuel Castells. Talvez exista um caminho para manter a continuidade da mudança. Se renunciar, mantendo-se ativo, Francisco pode operar a própria sucessão — colocando na chefia do Império católico um aliado.

Lula da Silva e a democracia brasileira

Ao examinar o que está acontecendo no Brasil, Manuel Castells sugere que a vitória de Lula da Silva é “a última chance da democracia brasileira”.

“Ganhou-se algum tempo para restaurar a democracia e construir uma nova confiança na população. Mas o PT e outras forças democráticas têm que prevenir qualquer corrupção, insistir na redistribuição de renda, limpar as polícias, aprender uma boa política de redes sociais e começar a reformar as instituições políticas”, sugere o sociólogo.

Nicolás Maduro e Lula: aliança boa para o primeiro e ruim para o segundo | Foto: Ricardo Stuckert/PR

“A América Latina não pode se estabilizar até que a desigualdade seja reduzida e as instituições, em particular as Forças Armadas, sejam reformadas”, assinala Manuel Castells.

Há muito de preciso e correto na análise de Manuel Castells, e há um problema. A vitória de Lula da Silva não é “a última chance da democracia brasileira”. O dito postula que, entre a extrema direita do ex-presidente Jair Bolsonaro e a esquerda do petista-chefe, não há alternativa política. Ora, numa sociedade plural, aberta, como a brasileira, não se pode depender apenas de um indivíduo e de seu partido político para manter a democracia ativa, viva. Então, é possível que surjam novos caminhos — quem sabe com Simone Tebet, Eduardo Leite, Ronaldo Caiado (representante da direita liberal-democrática que inclui avanços no campo social) e Romeu Zema.

Porém, quanto ao caso específico de 2022, não havia outro caminho. Quem apostava — e aposta — na democracia não tinha como não se alinhar com Lula da Silva, o único, naquele momento, capaz de derrotar a extrema direita golpista de Bolsonaro.

Vladimir Putin: o “czar” está destruindo a Ucrânia | Foto: Reprodução

Quanto à reforma das instituições políticas, que é necessária, é muito difícil de se fazer em quatro anos, sobretudo dada a ação de uma direita articulada. No momento, assiste-se o Centrão tentando reconfigurar o governo de Lula da Silva. O presidente teve de entrar em campo para ceder em alguma coisa, como a liberação de recursos financeiros — legais —, mas mantendo a estrutura que criou para governar com relativa modernização e atualização de velhas questões.

Lula da Silva é pragmático e pretende mesmo gestar avanços — sociais, por exemplo — e terá resistência no Congresso, mais na Câmara dos Deputados, onde o Centrão é onipresente (e há mais de um Centrão, aparentemente), do que no Senado.

Ao final do governo, Lula da Silva fará o sucessor? Se Bolsonaro ficar inelegível, e engessado por dezenas de processos judiciais — que podem levá-lo, inclusive, à prisão —, é possível que sim. Do ponto de vista eleitoral, o tri-presidente permanece como o melhor candidato do PT.

Manuel Castells: esquerda precisa ficar mais atenta às redes sociais | Foto: Reprodução

Há pedras no caminho. O MST não é um movimento de bandidos. Pode até ser retardatário, mas, se o é, isto se deve aos milhares de indivíduos que o capitalismo moderno do país não quer ou não consegue incorporar. O MST resulta de uma questão social, que, quase sempre, se torna política. Entretanto, se continuar a invadir terras, sobretudo as consideradas produtivas, a direita tende a, habilmente, jogar o país contra ele e, sobretudo, contra Lula da Silva, que seria leniente.

O apoio de Lula da Silva ao ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, incomoda parte substancial dos eleitores, e não apenas aqueles que votam na direita.

A questão da Venezuela influencia mais do que a política errática do presidente brasileiro em relação à Ucrânia (ao não ser firme contra a barbárie cometida pela Rússia, o petista-chefe alinha-se, por vias indiretas, a Vladimir Putin. É a imagem que está se cristalizando).

As ruas do Brasil estão cada vez mais cheias de venezuelanos, que fogem da ditadura de Nicolás Maduro e, sobretudo, das dificuldades econômicas do país. Os brasileiros mantêm contatos com muitos deles. Então, quando elogia o ditador do país vizinho, Lula da Silva está, do ponto de vista dos eleitores, endossando-o. E, assim, poderá perder parte do eleitorado que o apoiou em 2022.

Sugere-se uma conexão que precisa ser relativizada. Não há dúvida de que Lula da Silva apoia Nicolás Maduro, mas também é verdade que o presidente não quer transformar o Brasil numa imensa Venezuela. É paradoxal, mas é assim. O petista é democrata e não é comunista; no máximo, é socialdemocrata e, ao mesmo tempo, nacionalista. Observe-se que o líder red parece ter uma conexão profunda com o que se pode chamar de “burguesia nacional” brasileira. Daí sua política de reindustrialização.

Redes sociais: principal espaço em disputa

As redes sociais, de acordo com Manuel Castells, são “o principal espaço em disputa” e estão “cada vez mais dominadas por notícias falsas” em todo o mundo.

“O maior perigo da inteligência artificial não é que os algoritmos dominem os humanos, mas que humanos antidemocráticos usem as ferramentas poderosas da IA para criar falsificações poderosas e manipular a mente das pessoas”, sublinha o autor de “A Sociedade em Rede” (Paz e Terra, 632 páginas, tradução de Roneide Venancio Majer, Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder)

Manuel Castells está acompanhando, desde algum tempo, os movimentos políticos que, surgindo na internet, se espraiam pelas ruas de todo o mundo. Os “Indignados”, de 2011, inspirou a criação do Podemos, na Espanha. O partido de esquerda forçou o PSOE a “se adaptar aos novos tempos”.

Mas a extrema direita, com o partido Vox, também cresceu e se tornou o terceiro maior da Espanha.

O sociólogo nota que a direita — sim, há uma direita democrática e civilizada —, talvez para não sucumbir (sou eu quem está dizendo isto, e não Manuel Castells), está se aliando à extrema direita. “A extrema direita está ganhando em todos os lugares e colocou as forças democráticas na defensiva porque está se aliando à direita”, anota o sociólogo.

Nas redes sociais, a direita está vencendo a esquerda, diz Manuel Castells.