Os criminosos pegaram as provas na gráfica Plural, do grupo Folha, e tentaram vendê-las para vários jornais. Só uma jornalista deu a atenção devida ao fato

Livro conta como Renata Cafardo descobriu que as provas do Enem de 2009 haviam sido roubadas e relata o que aconteceu depois, como a queda de auxiliares do ministro da Educação e a prisão e condenação dos criminosos | Felipe Pradella, jovem de Osasco que decidiu, com o apoio de amigos, roubar as provas do Enem de 2019 e tentou vendê-las por 500 mil reais para um grupo de jornalistas. Acabou denunciado

“O Roubo do Enem — A História Por Trás do Vazamento da Princi­pal Prova do País” (Record, 209 páginas) é a “biografia” de uma reportagem notável de Renata Cafardo. A jornalista conta como obteve a informação, explicita como se deu o furo e relata o que aconteceu posteriormente.

Renata Cafardo recebeu uma ligação, na redação de “O Estado de S. Paulo”, de alguém que pretendia vender a prova do Enem de 2009 por 500 mil reais. Ao lado do repórter Sérgio Pompeu, compareceu ao Fran’s Café da Avenida Sumaré, na cidade de São Paulo, e conversou com Gregory Camillo e Felipe Pradella — este havia roubado a prova na gráfica Plural, do grupo que edita a “Folha de S. Paulo” e da empresa americana Quad/Graphics. No dia 30 de setembro de 2009, a jornalista folheou o Exame Nacional do Ensino Médio. Três dias depois, 4,1 milhões de estudantes fariam a prova. Não fizeram. Com a descoberta do roubo, o Enem foi cancelado.

Na redação, profissionais experimentados, exceto Marcelo Beraba, não se mostraram muito interessados na pauta de Renata Cafardo, mas decidiram não desestimulá-la. Disseram-lhe que era preciso informar, de cara, que o “Estadão” não compra informação.

Por que Renata Cafardo publicou o furo e os outros jornais boiaram? Porque foi mais repórter. Ponto. Os criminosos mantiveram contato com a “Folha de S. Paulo”, com a “Época” e com o portal R-7. Os repórteres de tais veículos até manifestaram certo interesse, mas não foram a fundo. Sobrou para quem era, digamos, mais repórter.

No encontro com Felipe Pradella e Gregory Camillo, Renata Cafardo constatou que o documento do Enem era verdadeiro, ao perceber os logotipos do Connosel (o consórcio responsável pelas provas) e do Brasil Para Todos. Voltou para a redação, animada, depois de 12 horas de trabalho, e gritou: “É o Enem”.

Os editores Ricardo Gandour, Mar­celo Beraba e Luciana Constantino, reu­nidos com Renata Cafardo e Sérgio Pompeu, decidiram não publicar a história de imediato. Precisavam confirmar que era mesmo o Enem. Com a con­firmação pelo ministro da Edu­ca­ção, Fernando Haddad, e pelo presidente do Inep, Reynaldo Fernandes, o “Es­tadão” publicou com exclusividade a notícia do roubo e do cancelamento do Enem. A repórter havia trabalhado 17 horas seguidas — o que é cada vez mais raro nas redações brasileiras. Sér­gio Pompeu é o co-autor da reportagem.

Publicada a reportagem, Felipe Pradella ligou e ameaçou Renata Cafardo, que passou a ser protegida pela polícia. Ante a ameaça, o “Estadão” passou ao “Jornal da Tarde”, do mesmo grupo, informações e fotografias de dois dos quatro homens que tentaram vender as provas do Enem. Gregory Camillo, um DJ, aparece meio encoberto, mas Felipe Pradella é integralmente identificado pelas fotografias. A polícia só conseguiu prendê-los depois da publicação das fotos e nomes de alguns dos criminosos.

Renata Cafardo, a repórter, acabou se tornando notícia. Por dois motivos. Primeiro, por ser autora do furo. Segundo, por ter sido ameaçada. Até o “Jornal Nacional”, via William Bonner, rendeu-se e mencionou o nome da jornalista.

Renata Cafardo: determinação e coragem da ex-repórter do “Estadão” possibilitaram o cancelamento do Enem de 2009; a repórter furou todos os colegas dos demais jornais, que se comportaram como burocratas

Gráfica e julgamento

Na gráfica Plural, sem câmeras e vigilância suficientes, Felipe Pradella, Filipe Barbosa e Marcelo Sena Freitas — Gregory Camillo Craid não trabalhou lá, na verdade, atuou como negociador para vender as provas —, trabalhadores temporários, decidiram ganhar algum dinheiro com a venda do Enem. Itana Marques Silva, diretora do Connasel, disse para o diretor da gráfica: “Está vendo aquele ali. É um policial à paisana”. Era Felipe Pradella, que não é policial. O grupo de amigos, de Osasco, pegou as provas, levou-as para um automóvel e, mais tarde, saíram com elas tranquilamente. Não foram abordados por ninguém.

Em agosto de 2010, convocada pelo Ministério Público Federal como testemunha de acusação, Renata Cafardo compareceu a uma audiência no Fórum da Justiça Federal, em São Paulo. Tremendo, sentou-se a um metro dos acusados Felipe Pradella, Gregory Camillo, Marcelo Sena Freitas, Filipe Ribeiro Barbosa e Luciano Rodrigues (que intermediou o contato com jornalistas).

O juiz Márcio Rached Millani condenou Felipe Pradella (cinco anos e três de reclusão e multa), Gregory Camillo (dois anos e quatro meses de reclusão e multa), Marcelo Sena Freitas (quatro anos e seis mesas de reclusão e multa) e Felipe Ribeiro Barbosa (quatro anos e seis meses de reclusão e multa) por corrupção passiva e violação de sigilo funcional. Felipe Pradella foi apontado como autor e Gregory Camillo como co-autor do crime. “Nenhum deles passou um dia sequer na prisão”, afirma Renata Cafardo. Eram réus primários. Luciano Rodrigues, dono de uma pizzaria, foi absolvido. O processo ainda não foi julgado na segunda instância.

A Justiça condenou o Consórcio Connasel pelo vazamento do Enem. Condenado a pagar 73 milhões de reais ao Inep, o grupo até hoje nada repassou para o órgão do governo federal. O diretor de Avaliação da Educação Básica do Inep, Heliton Ribeiro Tavares, “foi o único responsabilizado no Ministério da Educação pelo vazamento do Enem. Para a Justiça, ele cometeu falhas na fiscalização do contrato firmado com o Connasel porque ignorou os avisos mandados opor servidores que visitaram a gráfica Plural durante a impressão do Enem e perceberam problemas graves de segurança”. Tavares pagou multa de 5 mil reais e Dorivan Ferreira Gomes, coordenador-geral de Exames para Certificação do Inep, pagou multa de 3 mil reais. Logo depois, Reynaldo Fernandes pediu demissão da presidência do Inep.

Apesar de tudo, o Enem, provando sua vitalidade, sobreviveu.

O livro apresenta informações sobre como os governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff lidaram com a educação. Apesar dos erros com o Enem, o saldo é positivo. O próprio Enem é uma criação de valor.

Aula de jornalismo

O livro de Renata é uma aula de como se deve fazer jornalismo. Primeiro, Renata Cafardo apurou os fatos de maneira criteriosa, documentando a reportagem de maneira precisa e ouvindo as partes de maneira adequada — chegou a esperar o posicionamento do ministro Fernando Haddad. Segundo, mostrou coragem e determinação. Terceiro, provou que o bom jornalismo ainda exige que se saia às ruas, para encontros com pessoas de carne e osso. É possível fazer reportagens (sobretudo colunas de notas) sérias por telefone e usando a internet. Mas os textos que mais empolgam os leitores são aqueles nos quais fica evidente o contato entre fontes e repórteres. A revista “Piauí”, o “Estadão” e “O Globo” estão abrindo espaço para reportagens mais densas, sem descuidar do chamado material “quente”.

O jornalismo asséptico das redações — onde jornalistas “copiam”, “cozinham” e “repercutem” reportagens e notas de outros sites (não sei se é possível deixar de fazer isto, talvez não seja, e, sendo sincero, eu mesmo cometo o pecadilho, por vezes) — pode até funcionar e obter visualizações (o interesse público às vezes fica em segundo ou último lugar), que, para alguns repórteres e editores, é o que conta. Mas não deixa de ser um jornalismo sem alma e, basicamente, de segunda categoria.

Outro problema dos textos dos jornais diários, especialmente na internet, é a má qualidade da redação. Há reportagens que nem merecem ser chamadas de reportagens. As frases são desconexas, o vocabulário é de uma pobreza franciscana e os jornalistas parecem mais datilógrafos do que repórteres. Transcrevem declarações das fontes de maneira automática, sem entender as diferenças entre as linguagens oral e escrita, e se comportam como se fossem “invisíveis”. Não para serem isentos, o que seria uma qualidade, mas, aparentemente, por não entenderem direito o que estão transcrevendo ou datilografando (digitando). Há textos que parecem ter sido escritos por mortos ou fantasmas, tal a ausência de vida — sim, vida “do” repórter. Não têm “alma” alguma.

Renata Cafardo, que trabalhou 17 horas seguidas para obter e escrever a re­portagem de sua vida, merece o título de repórter, num mundo dominado e controlado, cada vez mais, por “recórteres”.