Máfia verdadeira é mais violenta do que a do filme de Coppola

12 dezembro 2017 às 11h56

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Livro mostra que a Cosa Nostra implantou uma ditadura na Sicília e expandiu seus negócios por várias áreas da Itália
Depois do filme “O Poderoso Chefão”, a máfia, a Cosa Nostra, jamais será a mesma. Será sempre dupla: a Cosa Nostra real e a imaginada pelo escritor Mario Puzo e, sobretudo, pelo cineasta Francis Ford Coppola (o filme praticamente dispensa o romance). A máfia de Puzo e Coppola é edulcorada, até certo ponto. Os dois mostram a duplicidade da máfia — “a” que usa a violência para ajeitar seus negócios e “a” que usa os meios legais para limpar seu capital. Mas, claro, é a mesma máfia. Os métodos variam de acordo as circunstâncias. Empresários mantiveram e mantêm ligações com mafiosos e mesmo o Banco do Vaticano não ficou longe de acordos pouco católicos. As grandes jogadas empresariais quase sempre não são limpas, mas muitas vezes são legais. A máfia, sem descurar da ilegalidade, como o tráfico de cocaína e heroína, procura trilhar os caminhos do jogo pesado aceito pela sociedade, porque revestido de legalidade e legitimidade. O livro “Os Últimos Mafiosos — A Ascensão e a Queda da Família Mais Poderosa da Máfia” (Larousse, 367 páginas, tradução de Maria Elizabeth Hallak Neilson), do jornalista John Follain, permite compreender como se estruturou a organização criminosa na qual seus integrantes se assemelham a acionistas, executivos e “soldados” (pistoleiros). A família é a Corleonese.
Michelle Navarra e Luciano Leggio

No livro “Cosa Nostra — História da Máfia Siciliana”, John Dickie aponta que o termo máfia surgiu no século 19 — “por volta de 1860”. Mas a organização do clã Corleonese, que mais tarde passou a mandar na Cosa Nostra, se deu no século 20, com o médico don Michele Navarra. O mafioso era chamado de U Patri Nostru (Pai Nosso), “exatamente como” os sicilianos “se referiam a Deus”. O vocábulo máfia deriva, possivelmente, do árabe “mahias” (ousadia) ou “Ma àfir” (nome de uma tribo sarracena). Ao assumir o poder, entre 1922 e os primeiros anos da década de 1940, o fascista Benito Mussolini enquadrou parte da máfia. Com sua queda, “90% dos novos 353 prefeitos nomeados pelos Aliados eram mafiosos ou próximos do movimento separatista, intimamente ligado à máfia”, anota John Follain. A organização criminosa se tornou parte do sistema estatal. “Talvez refletindo esse novo amanhecer, os mafiosos começaram a se referir à sua sociedade secreta como Cosa Nostra (Coisa Nossa).”
Embora médico, Michelle Navarra não se preocupava muito em salvar vidas. De 1944 a 1948, os mafiosos mataram 153 pessoas em Corleone, cidade da Sicília. Conceituado no município, Michelle Navarra não se envolvia pessoalmente em assaltos, extorsão e homicídio. Seus “soldados” cometiam os crimes e contribuíam para aumentar seu poder. Ao mesmo tempo, era bem próximo dos políticos, influenciando as eleições. Em 1944, Michelle Navarra passa a contar com os préstimos de Luciano Leggio, de 19 anos.

Luciano Leggio, que (mais tarde) passou a se inspirar no Marlon Brando de “O Poderoso Chefão”, embora fosse mais feio, se tornou assassino serial da máfia, adepto da omertà, a lei do silêncio (“aquele que é cego, surdo e mudo viverá cem anos em paz”, diz provérbio siciliano). Em 1948, depois de anos no “poder”, com ligações com o Partido Democrata Cristão (ligado à Igreja Católica), a polícia finalmente conclui que Michelle Navarra era o chefão da Cosa Nostra.
Embora perspicaz, Michelle Navarra não entendeu que Luciano Leggio ambicionava mais poder e ampliar o raio de ação da máfia, como o roubo de gado.
Em 1958, Luciano Leggio comandou o assassinato do chefão, numa “combinação de ousadia, habilidade, velocidade e uma devastadora violência — padrão que se tornaria a marca registrada dos corleoneses”. Espelhando-se nos gângsteres americanos, o grupo siciliano passou a usar submetralhadoras e pistolas automáticas.
Até Michelle Navarra, a máfia de Corleone não era dominante e não chegava a Palermo. No poder, Luciano Leggio recrutou pistoleiros, como Salvatore “Totò” Riina e Bernardo Provenzano.
A mando de Luciano Leggio, Totò Riina, sobretudo, e Bernardo Provenzano aterrorizaram a Sicília. De 1943 a 1961, os mafiosos mataram 52 pessoas e tentaram matar outras 22. A omertà funcionava: “Um jornalista aproximou-se de uma mãe que, aos prantos, caminhava atrás de um caixão e perguntou: ‘Quem foi morto?’ A mãe retrucou: ‘Por quê? Alguém está morto?’”
A violência extremada dos corleoneses chegou aos ouvidos dos chefes mafiosos dos Estados Unidos, que passaram a chamar Corleone de “Lápide”. Ao visitar a cidade na década de 1960, Norman Lewis assustou-se com os massacres. Os corleoneses eram chamados pejorativamente de “camponeses” pelos mafiosos de Palermo. Luciano Leggio não se intimidou e decidiu conquistar a capital da Sicília.
O prefeito de Palermo, Salvo Lima, e o conselheiro para obras públicas, Vito Ciancimino, mantinham ligações com a máfia, que ganhava dinheiro com obras públicas. Bernardo Provenzano, diplomático, foi enviado para convencer Ciancimino de que seria positivo fazer negócios com os corleoneses. Os mafiosos de Palermo, sofisticados, não gostaram da entrada dos viddani (vilões, ou camponeses) de Corleone no seu território. Stefano “o Princípe” Bontate, um dos reis do refino de heroína, protestou. Aos poucos, Luciano Leggio foi entrando no novo mercado e tinha um trunfo: repartia dinheiro, muito dinheiro, com os aliados.
Na luta pelo controle das obras do boom imobiliário com o clã La Barbera, Luciano Leggio uniu-se aos irmãos Grecco. Entre 1962 e 1963, numa luta violenta pelo poder e para assumir o controle dos negócios legais e ilegais, deu-se a primeira guerra da máfia.
Enquanto centenas de chefes e pistoleiros eram mortos, Luciano Leggio assistia de camarote e lia “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói, e “Crítica da Razão Pura”, de Kant (se entendia, não se sabe). Quando um carro-bomba matou cinco policiais e dois engenheiros militares, a polícia prendeu mais de 250 mafiosos. “A Cosa Nostra cessou de existir na região de Palermo depois de 1963. Foi simplesmente aniquilada”, avaliou um desertor.
Mesmo caçados pela política e levados a julgamento pela Justiça, Luciano Leggio e seus aliados sobreviveram. Ao ser preso, Totò Riina disse ao companheiro de cela: “Você deve usar todos os meios para alcançar seu objetivo e todos os obstáculos devem ser eliminados”.
Luciano Leggio, Totò Riina e Bernardo Provenzano foram acusados de cometer vários homicídios. No julgamento, Luciano Leggio disse: “A máfia não existe em Corleone”. “O promotor pediu prisão perpétua para Leggio.”
No entanto, Luciano Leggio, Totò Riina e Bernardo Provenzano foram absolvidos. Doente, Luciano Leggio foi operado pelo médico do presidente da Itália.
Em 1969, devidamente instalados em Palermo (a capital da máfia não é Corleone), livrando-se do provincianismo, os corleoneses se uniram a mafiosos da capital para matar Michele “o Cobra” Cavataio, um dos chefes da máfia e da construção civil. Entre os corleoneses estavam Bernardo Provenzano e Calogero Bagarella, dois homens de Luciano Leggio. Cavataio reagiu, mas foi morto por Bernardo Provenzano (esmagou seu crânio e atirou na sua têmpora), que passou a ser chamado de “Trator”.
A serviço de Luciano Leggio, Totò Riina e Bernardo Provenzano se tornaram aliados do capo Gaetano Badalamenti. Luciano Leggio começou a ficar irritado porque Totò Riina começou a se relacionar com Tommaso Buscetta, o chefe de Palermo.

Totò Riina e Bernardo Provenzano
Em 1970, um triunvirato, composto de Luciano Leggio, Badalamenti e Bontate, assumiu o comando da máfia. Procurado pela polícia, Luciano Leggio nomeou Totò Riina e Bernardo Provenzano para representá-lo. No filme “O Poderoso Chefão”, o velho Corleone briga com amigos mafiosos porque rejeita participar do tráfico de drogas. Na vida real, todos brigavam para participar. “Durante os anos de 1960 e 1970, Bontate e seus aliados controlaram o tráfico de heroína, as refinarias e o abastecimento do mercado americano”, conta John Follain. Em 1968, por causa de várias prisões, os mafiosos estavam sem dinheiro. Em poucos anos “tornaram-se milionários, graças ao narcotráfico”.
Os corleoneses queriam entrar no mundo das drogas, mas foram barrados por Bontate e, por isso, se tornaram sequestradores de pessoas ricas. Um dos coletores do dinheiro dos sequestros era o padre católico Agostino Coppola.
Dirigindo os negócios a partir de Milão, Luciano Leggio foi perdendo terreno, conquistado rapidamente por Totò Riina, que contava com o apoio de Bernardo Provenzano. “Riina concentrou-se no setor de construção e tráfico de drogas, enquanto Provenzano focava nos contratos de obras públicas”, relata John Follain.
A máfia, a partir de 1970, se tornou uma multinacional, “não era mais um problema siciliano, ou italiano, mas internacional”. Seus negócios estavam na Itália, França, Suíça e Estados Unidos. Em 1973, Leonardo Vitale, “primeiro mafioso a quebrar a lei do silêncio em vigor desde a Segunda Guerra Mundial”, descreveu o funcionamento da máfia e revelou a ascensão dos corleoneses.
Habilidoso, Totò Riina assumiu o comando da máfia, pelo carisma e pela força. Chegou a entrar para a maçonaria, para ampliar o raio de ação na legalidade.
Os mafiosos mais ricos e poderosos subestimaram Totò Riina, o “camponês”, e, aos poucos, ele foi matando todos aqueles que se opunham ao seu projeto de uma ditadura criminosa. O chefe mafioso Giuseppe Di Cristina, o “Tigre”, alertou: “Os camponeses estão às portas de Palermo. Vocês não entendem?” Não foi ouvido pelos chefes mafiosos. Totò Riina pôde, assim, implantar uma ditadura.
Ditadura fortaleceu Riina e matou a máfia
Salvatori (Totò) Riina, com o apoio de Bernardo Provenzano, decidiu assumir o comando solitário da máfia, tornando-se o chefão, o Marlon “Vito Corleone” Brando da vida real.
Totò Riina mandou matar o coronel carabiniere Giuseppe Russo, contra a decisão dos outros líderes da Cúpula. Era um recado de que pretendia chegar ao topo. Apesar do alerta de Giuseppe Di Cristina e de outro chefe, Pippo Calderone, ter cobrado uma explicação sobre o assassinato do oficial, os demais chefes mafiosos não deram tanta importância ao “caipira” de Corleone.
O secretário da Cúpula, Michele Greco, foi insultado por Di Cristina: “Você está permitindo a Riina tratá-lo como um fantoche; deixa-o puxar os fios”. Dois dias depois, dois aliados de Di Cristina, um deles parecido com o mafioso, foram emboscados e mortos. Os chefes de Palermo foram reunidos, a pedido de Di Cristina, que disse: “Convoquei esta reunião e pedi a presença de Michele Greco porque quero dizer que vocês estão ouvindo um homem morto. Este é um morto falando. Estou morto”.
Em 1977, com os negócios da máfia indo de vento em popa, “os chefões do oeste da Sicília se reuniram”. Em pauta: a ação dos corleoneses. Di Cristina sugeriu que Totò Riina fosse liquidado. Acusado “de montar uma rota de tráfico de drogas para abastecer cidades americanas, inclusive Detroit, sem informar os outros chefes”, Badalamenti foi expulso da máfia. Para não morrer, fugiu para a Espanha e, em seguida, para o Brasil.
Sentindo-se poderoso e, assim, incontrolável, Totò Riina expandiu os negócios, associando-se ao contrabando de cigarros com parceiros da Camorra, a máfia napolitana.
Di Cristina procurou um capitão da polícia e deu-lhe informações sobre a “famiglia” de Totò Riina. “O melhor perdão é a vingança”, frisou Totò Riina. Ao saber que Di Cristina quebrara a lei do silêncio, mandou matá-lo.
Di Cristina foi assassinado no território do capo Salvatore Inzerillo, que ficou irritado. “Os corleoneses pisotearam duas regras — aquela segundo a qual a eliminação de um chefe deveria ser unanimemente aprovada pela Cúpula e a de que o líder de um clã deveria ser avisado previamente caso o homicídio fosse acontecer em seu território —, e mais uma vez eles se safaram.”
Stefano Bontate mandou seus pistoleiros caçarem Totò Riina, que não foi encontrado. Mas o mafioso não deixou por menos e estrangulou Stefano Giaconia, aliado de Totò Riina.
Enquanto os chefões praguejavam, mas não agiam, Totò Riina liquidou mais um chefe, Pippo Calderone.
Em 1979, Leduca, irmão de Ninetta, mulher de Totò Riina, matou o jornalista Mario Francese, que publicara uma série de reportagens sobre os corleoneses no “Giornale di Sicilia”.
Entre 1979 e 1980, os mafiosos mataram Michele Reina, secretário provincial dos democratas-cristãos; Boris Giuliano, subdelegado de polícia de Palermo; o juiz Cesare Terranova, presidente do Tribunal de Apelação; Pier Santi Mattarella, presidente democrata-cristão do governo regional; e Emanuele Base, capitão dos carabinieri. Totò Riina estava fora de controle, ou sob seu único e exclusivo controle.
O ex-premiê democrata-cristão Giulio Andreotti, chamado de “Tio Giulio” pelos mafiosos, chamou Bontate às falas.

Tommaso Buscetta foge para o Brasil
No início de 1980, um grupo de mafiosos se reuniu em Roma, no Hotel Flora, para discutir a liquidação da “famiglia” Corleonese. Tommaso Buscetta, que estava fora do país, foi convocado por Bontate e Inzerillo para assumir o comando da guerra. O mafioso mulherengo escapou para o Brasil, em 1971, onde se casou com a estudante de psicologia Maria Cristina de Almeida Guimarães, de 19 anos, “filha de um rico advogado em cujo círculo de amigos constava um ex-presidente, João Goulart”.
Tommasso Buscetta era um dos chefões do tráfico de heroína e cocaína “nas rotas que se estendiam dos Estados Unidos ao México e do Canadá ao Brasil”, por isso era conhecido como “chefão de dois mundos”. Ao ser preso no Brasil, em 1972, durante o regime militar, foi torturado. “Deram-lhe choques elétricos nos genitais, nas nádegas, dentes e orelhas e arrancaram-lhe as unhas dos pés. Mas ele disse somente: ‘Meu nome é Tommaso Buscetta’. A polícia colocou-o, e à terceira esposa, Cristina, a bordo de um avião de paraquedismo. Policiais seguraram Cristina, que estava grávida, pelos cabelos e a suspenderam no ar enquanto sobrevoavam São Paulo. Ela desmaiou. Novamente Buscetta se recusou a falar. Ele passou oito anos na prisão”, relata John Follain. Era, portanto, o homem certo para enfrentar os inimigos de Corleone que assolavam Palermo.
Na reunião do hotel da Via Veneto, Nino Salvo disse ao mafioso quase-brasileiro: “Os corleoneses tomaram o comando de tudo. Os assuntos internos da máfia e suas relações com os políticos, os negócios ‘limpos’ e ‘sujos’ da organização. Eles controlam todo mundo”.
Tommaso Buscetta, então com 53 anos, não gostou do que ouviu e ponderou: “A Cosa Nostra degenerou-se. Todos só pensam em dinheiro e poucos estão prontos para lutar por uma causa justa. Duvido que me deem ouvidos. Não posso ajudá-lo”.
A Bontate, Tommaso Buscetta disse: “Vocês falam e falam. Enquanto isso, são os corleoneses que agem. Eles estão nos derrubando um a um. Acho que você já é um homem morto”.

Ação do juiz Giovanne Falcone
O principal adversário de Totò Riina e seus gângsteres surgiu, porém, não na máfia, e sim na legalidade. Em 1980, o chefe da equipe de magistrados investigadores, Rocco Chinnici, disse para o juiz Giovanne Falcone: “Este caso aqui é muito delicado. Você tem de pegá-lo”.
Quando a irmã do juiz Terranova, que havia sido abatido a tiros, perguntou-lhe por que decidira investigar a máfia, Giovanne Falcone respondeu: “Só se vive uma vez”.
O caso delicado envolvia os chefes Bontate, Inzerillo, os gângsteres “Cherry Hill Gambinos”, do Brooklyn, e o rico construtor palermitano Rosario Spatola, juntamente com traficantes de heroína, lavadores de dinheiro e maçons de ambos os lados do Atlântico.
Infatigável, Falcone “despachou uma enxurrada sem precedentes de cartas para os bancos de Palermo, exigindo detalhes de transferências suspeitas de dinheiro, inclusive todos os recibos de operações de câmbio, e então estudou a montanha de registros bancários”. Baseada nas provas reunidas por Giovanne Falcone, a Justiça condenou 74 acusados — “um feito raro na Sicília”.
Para mostrar força aos seus oponentes, o mafioso Inzerillo mandou matar o juiz Gaetano Costa. Giovanne Falcone passou a ser escoltado por policiais e a andar armado.
Em 1981, decidindo reagir, Bontate decidiu executar Giuseppe “Sapato Pequeno” Greco, assassino favorito de Totò Riina. Este articulou-se antes e mandou Greco matar Bontate, de 42 anos.
Ao mafioso Bernardo Brusca, Totò Riina esclareceu: “Os palermitanos ainda não compreenderam quem são os corleoneses. E, quando compreenderem, será tarde demais para eles. Palermo já será nossa. Toda a Sicília será nossa”. O Maquiavel da máfia estava certo.
Do Brasil, Tommaso Buscetta percebeu que o próximo a ser morto seria Inzerillo e instou-o “a não sair de casa, não marcar nenhum encontro e não falar com ninguém. Devia concentrar-se exclusivamente na contraofensiva que planejava deslanchar”.
Inzerillo não levou a sério as recomendações do amigo e acreditou que seu Alfa Romeo blindado o protegeria. Como havia enviado 50 quilos de drogas para os Estados Unidos, em nome dos corleoneses, avaliou que estaria seguro até a chegada do pagamento (5,5 milhões de reais). “Os corleoneses gostavam de dinheiro, mas prezavam o poder acima de tudo”, e mataram Inzerillo, em maio de 1981, quando “caminhava para o carro”. Seu automóvel de luxo era blindado; o corpo, não.
A matança dos aliados
Depois de matar os chefes, os corleoneses começaram a matar seus aliados. Ocorreu um gigantesco massacre.
Como prova de que a realidade é mais cruel do que a ficção de “O Poderoso Chefão”, John Follain revela que “mil mafiosos morreram nos expurgos. Nenhum deles pertencia ao clã dos corleoneses”. Os corleoneses matavam qualquer um que avaliavam como “inimigo”. Palermo estava verdadeiramente conquistada pela corte de Totò Riina.
O juiz Giovanni Falcone observou: “A força real dos corleoneses consiste em seu quase total controle da província de Palermo. Eles possuem homens em todos os lugares e não sabemos quem são. Isso lhes permite ter à disposição um verdadeiro e adequado exército fantasma que chega à cidade, mata e parte imperturbado”.
John Follain diz que “as vítimas eram esfaqueadas, esganadas ou abatidas [a tiros] na rua, em bares ou pizzarias. (…) Os corleoneses sumiam com os corpos de suas vítimas dissolvendo-os em ácido”. Nada disso aparece em “O Poderoso Chefão”, no qual há, por vezes, uma certa assepsia nos assassinatos. Uma estilização, como dizem os acadêmicos.
Em “O Poderoso Chefão” convida-se um suposto amigo para comer em casas ou restaurantes e, depois, ele é liquidado. Um delator da máfia contou: Totò Riina “foi o primeiro a inventar o método de convidar alguém para uma refeição antes de executá-lo, fazendo-o comer, relaxar e se divertir. Depois de comer, você estrangula a pessoa e pronto, fim… Você come, diverte-se e então mata”.
Em 1982, o comunista Pio La Torre, integrante do Parlamento, foi assassinado por Sapato Pequeno. Porque havia apresentado, em 1981, um projeto que introduzia “o crime específico de associação com a máfia”, permitia “ao Estado confiscar propriedades dos chefes” e proibia “os empreiteiros de obras públicas de passar o negócio adiante para outras empresas, geralmente controladas pela máfia”. Era um ataque ao bolso dos mafiosos.
O general carabinieri Carlo Alberto Dalla Chiesa foi enviado à Sicília para combater a máfia. “A máfia é cautelosa, lenta, avalia você, escuta o que você diz, observa-o a distância”, disse Dalla Chiesa. Logo depois, foi assassinado pela máfia. Por conta disso, o Parlamento sancionou a lei La Torre. “Ao fazer da associação com a máfia um crime, o Estado finalmente reconhecia a existência da fraternidade.”
No mesmo ano que La Torre foi morto, Totò Riina começou a matar aliados e parentes (um ex-cunhado, um genro, um sobrinho, dois filhos e um irmão) do “ex-mafioso” Tommaso Buscetta e, em seguida, mandou Antonino Salamone matá-lo.
Salamone preferiu entregar-se à polícia a matar o amigo. Badalamenti visitou Tommaso Buscetta no Brasil e pediu que liderasse a guerra contra os homens de Totò Riina. Ele não quis.
O Poderoso Chefão da Cosa Nostra
Em 1983, Totò Riina se tornou o “capo di tutti capi”, chefe dos chefes, da Cosa Nostra. Era o poderoso chefão, o Vito Corleone da Sicília. Os 5 mil integrantes da Cosa Nostra obedeciam às suas ordens. Ninguém mais o contestava, porque, se o fizesse, seria morto.

Giovanni Falcone disse que a máfia que surgiu dos expurgos era “mais forte do que nunca, mais sólida, monolítica, impermeável, rigidamente hierárquica e mais clandestina do que nunca”.
Totò Riina, escreve John Follain, “transformou a fraternidade numa ditadura baseada exclusivamente no terror. Dali em diante os chefes passaram a ser impostos e escolhidos de acordo com suas ligações com os corleoneses. (…) Riina não se limitou a criar uma ditadura. Estava também determinado a impor sua vontade sobre todos os meios de ganhar dinheiro”.
Num encontro com Vito Ciancimino, integrante do Partido Democrata-Cristão,Totò Riina disse que o centro de conferências na capital da Sicília deveria ser construído por Carmelo Costanzo, um empreiteiro de Catânia. Ciancimino não aceitou a pressão de Riina, mas arquivou o projeto.
Michael Corleone era durão e, eventualmente, simpático (parecia um homem praticamente sem vida amorosa e sexual, apesar de ser pai de dois filhos). Ao se ler a história de Totò Riina, pensa-se que era apenas um mafioso violento, do tipo dos que atacavam o cerebral e maquiavélico Michael Corleone. John Follain diz que, apesar da violência como forma de impor suas ideias e práticas, “Riina revolucionou o domínio da máfia sobre a economia, apontando ‘consiglieri’ (conselheiros) que respondiam somente a ele. O mais influente deles era Angelo Siino, construtor, piloto amador de ralis e maçom. O trabalho de Siino consistia em supervisionar a distribuição de contratos de obras públicas”.
“Anteriormente”, explica John Follain, “os clãs disputavam os contratos por meio das empresas que controlavam, exigindo dinheiro em troca de proteção para os vencedores da licitação. No sistema inventado por Siino, primeiro um clã obteria a lista das propostas e das empresas que tomavam parte da licitação, em seguida decidiria qual companhia deveria vencer e qual o valor da propina a ser paga à irmandade. Um mafioso designado para fiscalizar o processo visitaria as empresas e estipularia o valor da proposta que cada uma deveria apresentar. Esse procedimento asseguraria ao clã decidir quem venceria a licitação. Todos os envolvidos no golpe se beneficiariam: de 2% a 3% do valor do contrato iam para o clã local, outros 2% para os políticos e ainda mais 2% para Riina. O clã se imporia novamente depois de a licitação ser decidida ditando quais empresas deveriam ser fornecedoras e subcontratadas, quem deveria ser contratado para cuidar da segurança e outras posições administrativas”. Era a máfia operando, ilegalmente, dentro do sistema legal. Não muito diferente do que fazem políticos e empreiteiros brasileiros do mundo real.
Investidor ousado e conservador, Totò Riina investiu parte de seu capital no Instituto para Obras Religiosas, o Banco do Vaticano. Numa cena que lembra “O Poderoso Chefão 3”, a briga de Michael Corleone com os banqueiros da Igreja Católica, o financista Roberto Calvi “foi encontrado enforcado sob a ponte Blackfriars, em Londres”, em 1982. “De acordo com um delator, Calvo foi executado pelos corleoneses por não devolver o dinheiro que lhe fora confiado para ser ‘lavado’.” Ligado ao Banco do Vaticano, Calvi era conhecido como “Banqueiro de Deus”.
Bernardo Provenzano, que ganhou o apelido de “Contador”, se tornou um dos principais operadores dos negócios da máfia, porque era diplomático e ponderado, embora, no início de sua escalada criminosa, tenha sido tão violento quanto Totò Riina. Os corleoneses tinham negócios “legais”, nas áreas de construção e financeira, e “ilegais”, como o tráfico de cocaína e heroína. Importavam morfina crua da Turquia, refinavam e exportavam para os Estados Unidos. “A máfia chegou a controlar todo o setor de fabricação de concreto na Sicília, ganhando dinheiro até com a construção de tribunais de Justiça.”
John Follain revela que, “por meio de parentes e amigos, agindo como testas-de-ferro, Bernardo Provenzano fundou quatro empresas que forneciam tudo — de seringas a remédios e equipamentos de laboratório, a preços artificialmente elevados e num virtual monopólio — para os órgãos de saúde em Palermo, todos nas mãos de facções dos democratas-cristãos”.
Por que os mafiosos sicilianos se tornaram tão poderosos? Não foi apenas por serem violentos, segundo Dickie: eles “conseguiram inventar novas táticas mafiosas através de uma combinação de métodos antigos. (…) De certo modo, os corleoneses [Dickie usa “corleonesi”] tornaram-se dentro do organismo da Sicília um parasita secreto e mortífero”.
Mas a ditadura de Totò Riina foi o começo de sua ruína.
Influência do filme O Poderoso Chefão
Na história da máfia não é bem a vida que inspira a arte, e sim a arte que inspira a vida. John Follain relata que, “quando o encarregado de executar uma vítima conseguiu somente feri-lo com uma faca, [Giuseppe] Di Cristina, que havia acabado de ler [o romance] ‘O Poderoso Chefão’, de Mario Puzo, imitou um episódio do livro: mandou o primeiro assassino, acompanhado de outros, todos vestidos de médico, até o hospital onde o ferido estava sendo tratado. O grupo entrou na enfermaria onde o sujeito jazia na cama e o liquidou com tiros de pistola”. No caso do filme, Michael Corleone protege o pai, com inteligência, fingindo que estava armado, e com o apoio de outra pessoa.
No excelente livro “Cosa Nostra — História da Máfia Siciliana”, John Dickie escreve: “É difícil não deixar de concluir a partir das” fotografias de 1974, feitas num tribunal de Palermo, “que ele [Luciano Leggio] decidiu adotar para a ocasião um visual baseado no Don Corleone de Marlon Brando. E com seu charuto, o seu queixo comprido e pesado e a sua pose arrogante, acabou efetivamente por consegui-lo; existe mais do que uma semelhança passageira entre os dois. (…) Se o cinematográfico Don Vito era o rosto da máfia como ela gosta de o imaginar — judicioso e centrado na família —, então as feições de Leggio, pelo contrário, constituíam um emblema do terror caprichoso. Enquanto as pálpebras pesadas de Brando conferiam à sua personagem uma reserva quase nobre, os olhos esbugalhados de Leggio sugeriam apenas o capricho e a maldade”. No caso, pano rápido: é melhor mesmo ficar com a máfia do cinema, a de Francis Ford Coppola, porque, nesta, há um quê de filosófico e, quem sabe, de certo humanismo. Há, por assim dizer, um “sentido”. (Curiosamente, os livros sobre a máfia mostram criminosos cruéis que eram estudiosos de filosofia e teologia.)
“O Poderoso Chefão” é um filme espetacular, desses que podem ser vistos várias vezes, mas nunca se tornam datados e chatos. É como se fosse o Maquiavel do cinema. Um clássico muito superior ao romance que o inspirou. Mas não há dúvida de que, se não refletirmos, acabamos torcendo para os bandidos e, mesmo, acreditando que, no ramo dos negócios, todos “são” mafiosos. Mas afinal quem não torce por Michael Corleone e sua família? Ninguém, possivelmente. Mario Puzo e Francis Coppola apresentam as informações de que a máfia é violenta, e não titubeia, mas acabamos percebendo-a como menos perigosa e nefasta do que é. De algum modo, é como se alguma parte dela fosse boa. A operação de Michael Corleone para limpar os negócios da família — o que prova-se impossível, até porque os grandes negócios, no geral, não são limpos (o mundo real nada tem de puro) — chega a nos comover. Torcemos para que consiga, embora Francis Coppola, com a ambiguidade de Henry James, nos apresente, aos poucos, a realidade como ela é.
Em “Cosa Nostra”, Dickie escreve: “A publicação de ‘O Padrinho’ de Mario Puzo, em 1969, cimentou então a percepção pública errada de que as organizações criminosas eram exclusivamente uma importação siciliana. Os factos da época da Proibição contrariam claramente essa percepção: na zona metropolitana de Nova York, 50% dos contrabandistas eram judeus, comparados com os cerca de 25% de italianos”. Mas nós, apaixonados pelo filme de Francis Coppola, pela sua riqueza cinematográfica e existencial, não damos importância à informação verdadeira exposta por Dickie.
Dickie diz que, por intermédio “de Holywood, os Estados Unidos têm apresentado a máfia como fenômeno seu. (…). As cenas sicilianas do ‘padrinho’ de todos os filmes americanos sobre a máfia são indiscutivelmente grosseiras”. Na Sicília, dizem a Michael Corleone que os homens “estão todos mortos, (…) por causa da vendeta”. No momento em que Michael visita a terra natal do pai, “o tifo era um perigo muito maior para a população do que os crimes da máfia”.
“Tommaso Buscetta era fã de ‘O Padrinho’ [“O Poderoso Chefão”], embora achasse a cena final, em que os outros mafiosos beijam a mão de Michael Corleone, pouco realista”, conta Dickie. “Seria ao mesmo tempo presunçoso e incorreto dizer que a máfia apresentada em obras de ficção é pura e simplesmente falsa — ela é estilizada”. “O glamour do cinema não” consegue “sobreviver a um confronto com a terrível realidade da Cosa Nostra. Outra diferença menos óbvia, mas no fundo mais importante, é que enquanto a história de Michael Corleone lida com os perigos morais do poder ilimitado, os verdadeiros mafiosos sicilianos preocupam-se obsessivamente com as regras de honra que restringem as suas ações.”
A despeito dos reparos, o que dizer? Pouco: o filme continua de pé, fabuloso, uma obra-prima. Se cinema fosse arte, e não subproduto de uma arte, a literatura, diria que “O Poderoso Chefão” é arte. É Dante chegando ao cinema.
Bibliografia mínima sobre a máfia
O professor universitário italiano Salvatore Lupo é autor de “História da Máfia — Das Origens Aos Nossos Dias” (Unesp, 442 páginas, tradução de Álvaro Lorencini). A edição italiana saiu em 1996 e a brasileira, em 2002. Parte do título (“Aos Nossos Dias”) prejudica o livro porque, quatorze anos depois, a máfia continua, ainda que, no caso da Cosa Nostra, abalada. Mas é a obra mais bem informada a respeito da organização criminosa siciliana.
Tão bom quanto o trabalho de Lupo é “Cosa Nostra — História da Máfia Siciliana” (Edições 70, 485 páginas, tradução de Jaime Araújo e João Reis Nunes), de John Dickie. Publicado em 2004 nos Estados Unidos e em 2006 em Portugal, a obra não inclui a prisão do chefão Bernardo Provenzano. Não há edição brasileira, mas o livro pode ser encontrado nas livrarias Cultura e Saraiva.
“Assassinos Profissionais” (Larousse, 303 páginas, tradução de Alexandre Martins), publicado em 2008 na Inglaterra e em 2010 no Brasil, contém 19 páginas sobre a máfia siciliana e dezenas de páginas sobre assassinos do crime organizado nos Estados Unidos, como John Gotti e Joey Massino, o último chefão. Não é ruim, mas não tem a qualidade da pesquisa de Lupo e Dickie.
“Os Últimos Mafiosos — A Ascensão e a Queda da Família Mais Poderosa da Máfia”, de John Follain, ex-correspondente do “The Sunday Times” e “The Sunday Times Magazine”, deve muito às investigações de Lupo e Dickie, mas tem a vantagem de atualizar a história. Saiu em 2008, na versão em inglês, e em 2010, na versão brasileira. É ótimo e serviu de base para o meu texto.
Não li “Mulheres da Máfia” (Landscape, 306 páginas), de Clare Longrigg.
“Uma Brasileira Contra a Máfia” (Contexto, 159 páginas, texto final de Sandra Garcia a partir de relato feito ao jornalista Cláudio Camargo), de Dafne Cristhine, conta uma história surpreendente. Casada com o americano Glenn Walker, Dafne, ou Dirce, vê seu marido ser assassinado, porque, como pequeno empresário, deixou de pagar a taxa de proteção aos mafiosos e passou a contestar um deles, Frank Pagaro. Dafne vive nos Estados Unidos, sob proteção do FBI e com nome falso.
“Infiltrado — O FBI e a Máfia” (Larousse, 287 páginas, tradução de Vera Martins), de Joaquin (Jack) Garcia, com Michael Levin. Agente do FBI, Jack Garcia infiltrou-se na família mafiosa Gambino, nos Estados Unidos, e colaborou para a prisão de uma série de criminosos.
“Honra Teu Pai” (Companhia das Letras, 512 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen), de Gay Talese. Para compreender a máfia e descrevê-la, como insider — sem se tornar mafioso —, o jornalista americano aproximou-se um mafioso e se tornaram amigos. Ele conta a história de Joseph Bonanno (Joe Bananas), chefão de uma das famílias mafiosas dos Estados Unidos. Trata-se de um livro notável.
“O Irlandês — Os Crimes de Frank Sheeran a Serviço da Máfia” (Seoman, 320 páginas, tradução de Drago), de Charles Brandt. A história de Frank Sheeran, um assassino profissional, foi levado ao cinema, com a participação dos atores Robert De Niro (Frank Sheeran), Harvey Keitel, Joe Pesci e Al Pacino (que faz o sindicalista Jimmy Hoffa).
[Texto publicado no Jornal Opção na edição de 16 a 22 de janeiro de 2011]
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