O presidente Lula da Silva (PT) tem uma história admirável. Sugerir que é admirável não equivale a postular que seja perfeita. Porque não é. Ninguém é perfeito. De perto, como ensinou Caetano Veloso, ninguém é normal.

Entretanto, avaliado pela média, Lula da Silva tem grandeza. É o retirante heroico que saiu menino de Caetés-Garanhuns, enfrentou ingentes dificuldades em São Paulo, se tornou líder sindical e, mais tarde, deputado federal e presidente da República.

Há um romance de formação “pronto” — as aspas indicam apenas que ainda não foi escrito — a respeito da trajetória de Lula da Silva. O político talvez fique na história por três motivos.

Primeiro, por ter sido o 1º presidente do país de origem operária — um retirante que se desbancou do Nordeste e venceu no Sul às vezes maravilha.

Segundo, por ter avançado na questão das cotas sociais e raciais com o objetivo de criar uma inclusão efetiva dos pobres a uma sociedade que os rejeita (vale observar a quantidade de escravizados que têm sido libertados pela Polícia Federal em 2023… sim, 2023 — 135 anos depois da “abolição” da escravatura).

Lula da Silva jovem: um retirante do Nordeste | Foto: Arquivo da família

Terceiro, Lula da Silva talvez seja o presidente mais preocupado com assistência do Estado aos mais pobres da história do país (um par talvez tenha sido Getúlio Vargas). Seu interesse pela redução das desigualdades sociais não é politiqueiro. Pelo contrário, é genuíno e talvez derive de sua própria história — o que sugere que, se gosta da boa vida (como todos nós), não rompeu os laços com suas origens.

Quarto, Lula da Silva parece o presidente brasileiro mais parecido com os demais brasileiros. Tem a cara de todos nós, sobretudo dos mais pobres.

Pois sim: Lula da Silva também será lembrado porque houve corrupção — e muita — em seus governos. É um fato incontestável. Isto diminui a estatura do presidente, mas não derruba toda a sua história — que é positiva.

A corrupção “puxa” Lula da Silva para baixo, numa comparação com Juscelino Kubitschek, mas uma certa grandeza permanece.

Destilando ódio contra Campos Neto

Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central | Foto: Câmara dos Deputados

O que Lula da Silva não é? O presidente é de esquerda, mas não é comunista. Aproxima-se do socialismo e, sobretudo, da socialdemocracia.

O que “leva” o petista-chefe rumo ao esquerdismo não são suas ideias e tampouco suas ações — porque, como dissemos, nada tem de comunista —, e sim suas ligações políticas com dirigentes da Nicarágua (Daniel Ortega), de Cuba (Miguel Díaz-Canel — castro-boy) e da Venezuela (Nicolás Maduro).

Por mais que tenha certa paixão por Ortega, Díaz-Canel e Maduro, Lula da Silva tem pouco a ver com eles. E não deve permitir que o BNDES se torne a Bolsa Família de amigos e aliados, e não apenas dos que são ditadores.

Quem pressiona os Estados Unidos para liberar mais dinheiro para “salvar” a Amazônia não pode sair distribuindo uma grana que não tem, ou melhor, não pode “doar” (todo dinheiro que se empresta a Cuba, por exemplo, não retorna — é a fundo perdido; e, claro, só dá sobrevida à ditadura comunista, um dinossauro da política).

Quem observa Lula da Silva esbravejando contra seus adversários — alguns são tratados como “inimigos” — fica a pensar que suas palavras revelam uma clara “vocação” para ditador.

Miguel Diáz-Canel e Daniel Ortega: ditadores de Cuba e da Nicarágua são amigos de Lula da Silva, mas não definem política e ideologicamente o presidente brasileiro | Foto: Divulgação

Mas é um engano. O ditador não recua, exceto para salvar a própria pele. Nos seus dois governos anteriores, quando tentou implementar medidas autoritárias que atingiam a imprensa e o Ministério Público, Lula da Silva, ao sofrer pressão da sociedade, recuou. Por quê? Porque o velho “igrejeiro” — aquele dos tempos de fundação do PT, em São Paulo — é democrata e moderado.

A fala “esbravejante” de Lula da Silva, quase sempre tonitruante, esconde o político moderado e cauteloso. Lula da Silva, o da prática, é muito melhor do que o Lula da Silva que fala.

Mas, no momento, embora fale em “pacificação” e em “paz”, Lula da Silva está no ataque — “odiando”, como se fosse uma espécie de novo Lampião.

Primeiro, ataca o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que, para contribuir com o controle da inflação, mantém os juros altos. Muito altos, por sinal, o que tende, em parte, a travar a expansão da economia. Porém, como democrata, Lula da Silva não tem de ameaçá-lo, e sim de negociar uma alternativa. O presidente da República está claramente pressionando o Senado para “destituir” Roberto Campos Neto, que não parece ter a intenção de confrontar o governo do PT por uma questão de ideologia.

O mais provável é que Roberto Campos Neto esteja preocupado com um possível desequilíbrio fiscal do governo Lula da Silva e que isto, aos poucos, leve a uma retomada da inflação. Combater a inflação, depois que sobe muito, é bem difícil. O neto de Roberto Campos, o “Robarchev” e ex-Bob Field, talvez esteja certo, em parte. Assim como o presidente da República tem alguma razão, sobretudo quando conecta juros mais baixos com crescimento econômico e, portanto, geração de empregos.

O equívoco de Lula da Silva não está na crítica a Roberto Campos Neto, mas na pressão excessiva, até abusiva e antidemocrática. O modo como tenta “expurgar” o economista da presidência do Banco Central não é a correta. O adequado é esperar que seu mandato acabe. Enquanto isto, o ideal é adotar um comportamento semelhante ao do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que, embora submisso ao petista-chefe, age de maneira moderada em relação ao presidente do BC.

Lula da Silva, Sergio Moro e PCC

Como sabe a Polícia Federal, e portanto o ministro da Justiça, Flávio Dino — que está indo bem, moderado —, o Primeiro Comando da Capital articulou um plano para assassinar o senador Sergio Moro. Tanto que, com sua eficiência habitual, a PF prendeu integrantes do PCC envolvidos no esquema.

Sergio Moro, senador pelo União Brasil | Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Trata-se de um fato, não tem a ver com opiniões. Mesmo assim, Lula da Silva, comportando-se como se fosse o Bolsonaro da esquerda, partiu para o ataque. Rindo, disse que duvida de Sergio Moro — a articulação do PCC teria sido uma “invenção” do ex-magistrado —, mas está duvidando, isto sim, da apuração rigorosa da Polícia Federal e, portanto, de seu ministro da Justiça. A risada do presidente ofende não apenas o senador — ofende os brasileiros, as instituições e o decoro.

A risada de Lula da Silva, seu escárnio, o afasta do democrata Juscelino Kubitschek e o aproxima, paradoxalmente, daquele que combate de maneira tão tenaz — Jair Bolsonaro. O ex-presidente parece ter contaminado boa parte daqueles que não o toleram. É como se, para combatê-lo, seus adversários estejam se tornando “bolsonaristas do (suposto) bem”. Bolsonaro estaria habitando o consciente e o inconsciente daqueles que o abominam? Fica-se na torcida para que a resposta seja “não”.

Bolsonaro escolhia adversários a granel para atacar: a imprensa, mulheres — parlamentares e jornalistas — e ministros do Supremo Tribunal Federal. Criar inimigos reais e imaginários é uma maneira, direta ou indireta, de conquistar seguidores, soldados do caos, e de mantê-los conectados a uma espécie de “causa”. Quando se tem figuras definidas — “alvos fixos” — para se combater é mais fácil agregar aliados, muitos deles fanáticos e capazes de quaisquer cousas.

Jair Bolsonaro: seu discurso raivoso “sobrevive” em Lula da Silva? | Foto: Sérgio Lima/Poder

Lula da Silva ataca o sistema financeiro — a especulação —, Roberto Campos Neto e Sergio Moro (a quem quer “foder” — e a palavra sugere que, para além da ideia de destruição, que é o significado efetivo, há um desejo, quiçá subliminar, e para além da política. Ama-se aquele se odeia?). Mas não ataca o Centrão? E aqui estou com o presidente. Manter o Centrão ao lado — e como é difícil saciá-lo — revela realismo e, sim, moderação.

Qual será o próximo “alvo” de Lula da Silva? Talvez a imprensa. Até a turma da GloboNews, que andava entusiasmada com o presidente, já demonstra certa reticência.

Por fim, um comentário sobre uma questão espinhosa, e exposta por quem respeita Lula da Silva: por que o presidente parece tão “acelerado”, querendo tudo para ontem?

“Saturno devorando um filho”, de Francisco de Goya

Arrisco uma hipótese (e sabendo que, a rigor, serve para todos nós, sobretudo os que estão envelhecendo): é provável que o presidente está percebendo — o que é óbvio, claro — que seu tempo é curto. Quer dizer, para um homem de 77 anos — quase 80 anos —, não dá para esperar muito. Tudo é mesmo para ontem. Por isso, Lula da Silva está tentando “apressar” a história. O petista-chefe tem razão?

Em parte, ao menos, Lula da Silva tem razão. Nós, brasileiros, somos, por assim dizer, por demais tucanos e petistas: falamos demais, apreciamos reuniões, mas temos dificuldade de transpor as ideias do papel para o dia a dia. Às vezes falamos em mudança, não para fazê-la, e sim para protelá-la. Então, o presidente tem razão quando, notando que seu tempo é curto — e o tempo dele não é o dos brasileiros, pois milhões são jovens e estão noutra vibe (pensando em jogos e inteligência artificial, que é incontornável) —, mas equivoca-se quando parece pensar que, sendo uma “instituição”, o que não é, pode se alçar acima das instituições do país.

Lula da Silva nada tem de aloprado, mas sua “pressa” — o que produz excessos verbais — o aproxima dos excessos verbais de Bolsonaro.

Mas é preciso ser justo: há um Lula da Silva moderado, e verdadeiro, por trás do Lula da Silva meio “fake” que temos visto nos últimos dias.

Noutras palavras, Lula da Silva é melhor do que está demonstrando. Convém, pois, um recuo ao Lula da Silva verdadeiro. Porque o Lula da Silva bolsonarizado não é o Lula da Silva que foi eleito, em 2022, pregando a paz e o fim do discurso do ódio.

O que se pede, portanto, é que Lula da Silva “acorde” do atual “transe” (ou até “surto”). Porque senão acabará “justificando” a volta de Bolsonaro à Presidência.

Se Lula da Silva continuar se comportando de maneira radical, transformando adversários em inimigos, os eleitores terão de decidir, em 2026, não entre a civilização (o postulante do PT) e a barbárie (Bolsonaro). Mas entre dois Bolsonaros — o da direita, o oficial, e o da esquerda, o fake. Aqueles que votam estão observando os acontecimentos. Tanto que pesquisa do Ipec, divulgada na semana passada, mostra que 57% dos eleitores querem uma alternativa entre o petista e o ex-presidente.