Jô Soares fez sucesso como humorista e reinventou-se como apresentador de televisão. Renato Aragão, que foi tenente do Exército, divertiu gerações de brasileiros

O livro de Jô Soares é uma autobiografia que será útil para seu futuro biógrafo e o segundo livro é sobre Renato Aragão: os dois brilharam na TV Globo

Dois humoristas que fizeram o Brasil rir por décadas são radiografados em livros recém-lançados: “O Livro de Jô —Uma Autobiografia Desautorizada” (Companhia das Letras, 480 páginas), de Jô Soares, em colaboração com o jornalista Matinas Suzuki Jr., e “Renato Aragão — Do Ceará Para o Coração do Brasil” (Estação Brasil, 304 páginas), de Rodrigo Fonseca.

Os livros são autorizados. Jô Soares brinca que sua autobiografia é desautorizada, o que, claro, não é. O biógrafo de fato não-autorizado — e crítico — terá, no futuro, os dois volumes (o segundo, possivelmente o mais interessante, sai no fim de 2018) como base para sua pesquisa. Mas terá de buscar também o contraditório, porque, no geral, a versão de Jô Soares é relativamente rósea. “Josoariana” em demasia. A imprensa publicou resenhas, digamos, “comemorativas”. “Veja”, “Folha de S. Paulo”, “Estado de S. Paulo” e “O Globo” publicaram textos laudatórios (Sérgio Dávila, editor-executivo da “Folha de S. Paulo”, chega a mencionar “fluxo de consciência”!). De fãs. Pergunto-me: poderia ser diferente? Talvez não. É provável que a obra, de um gigante do humor — e não só do humor — exija aquilo que a imprensa cada vez mais deixa de fazer com qualidade: reportagem. Ninguém quis checar a veracidade do que escreveu Jô Soares.

Além de Machado de Assis, Graciliano Ramos (ter sido comunista prejudica sua reputação literária) e Guimarães Rosa, Jô Soares é uma das poucas unanimidades inteligentes no Brasil. Seu humor na televisão era de primeira linha. Sofisticado, afiado e sutil. Criticava tudo e todos. Felizmente, não pegou a época do politicamente correto. Mas não seria ele, ao impor, por exemplo, o Capitão Gay — a censura tentou barrá-lo porque de fato havia um coronel de sobrenome Gay (que gostou da personagem) —, politicamente correto? É possível. Ou talvez ficasse no meio do caminho.

Gordo, mas não desengonçado, parecia o humorista improvável para fazer tanto sucesso na televisão. Mas fez, e tinha plateia cativa — hoje, talvez devido à oferta excessiva de programas, não há mais grandes grupos cativos. Era ágil, serelepe e inteligente (o uso de “era” tem a ver com o fato de que não atua mais, ao menos na tevê). Agora, quando o humor excede, para chamar a atenção dos telespectadores — que parecem insensíveis à sutileza —, é pouco provável que Jô Soares fizesse tanto sucesso quando nos seus melhores anos.

Jô Soares dizia a piada, sempre ao lado de um grande grupo de parceiros — o Brasil é pródigo em bons humoristas —, e deixava que os telespectadores o seguissem. É como se, ao ouvir sua sutileza — como na crítica à ditadura (com a velhinha supostamente surda, por exemplo) —, as pessoas fossem convocadas à participação. O humor de Jô Soares, mesmo quando parecia grosseiro, era, na verdade, delicado e perspicaz. Não era só divertido.

O tempo dos humoristas sutis passou, mas deve, um dia, voltar. Ao perceber que não havia mais espaço para seu humor escrachado mas em geral não excessivo, Jô Soares reinventou-se como entrevistador. Durante anos, fez entrevistas relevantes. Entretanto, esgotados os entrevistados de algum interesse, começou a entrevistar qualquer pessoa que fizesse algo considerado extraordinário — como não deixar o café cair de uma xícara. Tornou-se quase um Faustão sem grosserias e menos clichês.

Ao perceber que seus entrevistados eram personagens menores, sobretudo menores do que ele mesmo, Jô Soares começou a entrevistar a si mesmo a partir das conversas com terceiros. Ele de fato é interessante, mas, “entrevistado” quase todo dia, passou a produzir um talk show unidimensional. O que tornou o programa tão chato quanto modorrento. A audiência deve ter caído, mas o que pesou mais foi a idade. O artista fará 80 anos em janeiro.

Entrevistado pelo “Globo”, Jô Soares sugere que controlar o humor é roubar sua alma. “Há uma vigilância equivocada, que faz com que muita gente esqueça que o principal é a irreverência. O limite do humor é só o que não é engraçado, o resto é livre. Um exemplo é o Fábio Porchat, que tem um talento natural. Ele pode falar sobre o que quiser. Fez um esquete sensacional sobre uma empresa de telecomunicações que é a patrocinadora do seu espetáculo”, afirma Jô Soares. Penso o mesmo sobre Fábio Porchat — que parece um songamonga, mas é extraordinário — e acrescentaria Paulo Gus­tavo, que, embora excessivo, é um hu­morista de primeira linha. O humorista Eraldo Fontiny, o da boneca Lili, dará o que falar, se organizar seu talento.

“Sou um artista. Tudo o que faço são dedos da mesma mão”, disse Jô Soares ao “Globo”. Ele dirige peças de teatro — pretende encenar “A Noite de 16 de Janeiro”, da escritora e filósofa russo-americana Ayn Rand — e escreve livros (medianos, frise-se, mas muito bem editados). Ele pretende atuar em “A Lição”, de Ionesco.

Os Trapalhões

O livro de Renato Aragão merece destaque, mas certamente não ganhará tantas páginas nos jornais e revistas. Por quê? Não sei exatamente. Uma hipótese: seu humor é mais simplório, quiçá infanto-juvenil.

Durante alguns anos, assisti “Os Tra­palhões” e, como muitos brasileiros, ri muito e sempre. Achava uma graça imensa das diatribes de Didi, Mussum, De­dé e Zacharias. O quarteto era divertido, nada politicamente correto — nem Mussum o era. Hoje, sob o primado da “ditadura do certismo”, habituou-se a dizer que eles excediam, que eram racistas, porque exageravam com o negro Mussum, e críticas do gênero. Pode ser que havia algum excesso, mas os quatro atores encantavam o público aos domingos.

Aos 82 anos, Antônio Renato Ara­gão, o Didi, é um grande humorista e diz que “ainda há muito a fazer”. Mes­mo velho, faz um humor malicioso e, a rigor, não faz mal algum a crianças e adultos. O humor, quando “aceita” con­­trole, tornando-se didático e pedagógico, deixa de ser humor e se torna mau humor.

O livro escrito por Rodrigo Fon­se­ca revela, entre outras coisas, que Re­na­to Aragão foi tenente do Exército e é for­mado em Direito, com carteira da OAB. Trata-se também de um empresário atilado. Por isso, ao contrário de ou­tros trapalhões, como Dedé, não perdeu bens nem quebrou. É um profissional do humor, como Jô Soares e o excelente Chico Anysio. Os três brilharam na TV Globo.

Por que os programas de humor, inclusive os stand ups, fazem tanto sucesso no Brasil? Óbvio: os brasileiros a­doram humor, divertem-se com a graça e mesmo com os excessos. Rir do cômico e, sobretudo, do trágico é sinal de sanidade.

É preciso “inventariar” uma coisa: o humor rende dinheiro para os artistas. Rir é um bom negócio.