Livro revela rivalidade e conexão entre Churchill e Gandhi, o indiano que elogiou Hitler

29 outubro 2023 às 00h01


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Quando Winston Leonard Spencer Churchill nasceu, em1874 (há quase 150 anos), Mohandas Karamchand Gandhi, nascido em 1869, tinha 5 anos. Os dois são, portanto, contemporâneos e se tornaram grandes estadistas no século 20.
Churchill viveu 90 anos e morreu em 1965. De “velhice”. Gandhi foi assassinado em 1948, aos 78 anos, por Nathuram Godse. Estupidade e suspanto, diria Mário de Andrade. Era um homem pacífico — que não é o mesmo que passivo. Um resistente, de uma coragem inaudita e admirável.
Na década de 1940, depois de ter sido decisivo para derrotar a Alemanha nazista de Adolf Hitler, o primeiro-ministro Churchill foi retirado do poder pelos ingleses — que optaram por serem governados pela esquerda trabalhista. Winston era, por certo, visto pelos britânicos como um político bélico, um dínamo da destruição, ao contrário dos trabalhistas, que, então, eram vistos como homens da construção, com preocupações sociais efetivas.


Gandhi, adepto do pacifismo — da resistência (desobediência civil) não violenta —, acabou assassinado.
Churchill e Gandhi foram figuras decisivas do século 20 e “sobrevivem” no século 21 — como figuras emblemáticas, reverberantes. Porque foram líderes políticos incomuns.
Churchill, além de hábil estrategista, era historiador e escritor (ganhou o Nobel de Literatura). Deixou sua versão sobre fatos e a respeito de vários políticos.
Formado em Direito em Londres, Gandhi deixou, por assim dizer, uma filosofia político-comportamental — como o russo Liev Tolstói e o americano Henry Thoreau. Ele pôs em prática — e funcionou — a desobediência civil contra os ingleses. Tanto que a Índia se tornou independente do Reino Unido, em 1947 (há pouco menos de 80 anos). O país, hoje, tem 1,4 bilhão de habitantes, praticamente empatado com a China.
Imperialista incontornável, Churchill não queria a independência da Índia. Por isso, em 23 de fevereiro de 1931, Churchill fez o que o historiador Andrew Roberts (“Churchill — Caminhando com o Destino”, Texto Editores, 1160 páginas, tradução de José Mendonça da Cruz) chama de “talvez o discurso mais famigerado da sua vida”: “É alarmante e também nauseante ver o sr. Gandhi, um advogado sedicioso do Middle Temple [associação profissional de advogados], posando agora como um certo tipo de faquir bem conhecido no Oriente, subindo a boa passada, meio nu, a escadaria do palácio vice-real, enquanto continua a organizar e dirigir uma campanha insolente de desobediência civil, para charlar em pé de igualdade com o representante do Rei-Imperador. Um tal espetáculo só pode aumentar a agitação na Índia e o perigo a que as pessoas brancas ali estão expostas” (página 405).


Churchill acrescentou, maldosamente, que Gandhi era “fanático, maligno e subversivo”. O motivo de tanta brutalidade verbal? Gandhi defendia a Índia, como nação independente, e seu rival defendia a Inglaterra, seu país.
Adiante, Churchill moderou-se em relação a Gandhi. “Tenho uma simpatia sincera pela Índia”, disse o britânico a G. D. Birla, amigo e aliado indiano de Gandhi. Ao receber o recado, Gandhi disse: “Recordo-me bem do sr. Churchill quando estava no Ministério das Colônias e, por isto ou por aquilo, tenho desde então a opinião de que posso sempre contar com a sua simpatia e boa vontade”. Andrew Roberts assinala: “Estava a exagerar, e muito, embora Churchill tivesse realmente dito que a sua estima por Gandhi aumentara desde que ele ‘assumira a causa da defesa dos intocáveis’” (uma casta indiana).
Em 1942, o primeiro-ministro Churchill — em guerra contra a Alemanha nazista de Adolf Hitler — operou para evitar que o Partido do Congresso, da Índia, continuasse sua campanha contra a Inglaterra.

O enviado britânico, Stafford Cripps, pediu a Gandhi apoio contra os japoneses. “O Congresso rejeitou toda e qualquer proposta que concedesse à Grã-Bretanha alguma medida sequer parcial de ligação constitucional à Índia, e no dia 9 de agosto Gandhi e os líderes do Congresso tiveram de ser presos, enquanto os exércitos britânico e indiano procuravam repelir os japoneses que se encontravam às portas da Índia”, relata Andrew Roberts.
Irritado com os ingleses, Gandhi disse: “Entreguem a Índia às mãos de Deus, ou, no frasear moderno, à anarquia, e essa anarquia poderá conduzir a guerras intestinas durante algum tempo, ou a dacoitis desbragados [assaltos de gangues]. Destes se erguerá uma Índia genuína, para substituir a falsa que agora vemos”. Os britânicos passaram décadas massacrando indianos e afanando suas riquezas, o que justifica a ira de Gandhi e aliados.
Churchill não aprovou o discurso de Gandhi. Durante a blitz em Londres, com os alemães bombardeando as ruas e edifícios, o indiano aconselhou: “Convidem Hitler e Mussolini a tirar o que quiserem dos países que chamam vossas possessões. Deixem-nos tomar posse da vossa bela ilha com os seus muitos e belos edifícios. Poderão dar tudo isso sem dar nem as vossas mentes nem as vossas almas”.
Um pouco antes, em maio de 1940, Gandhi disse a um amigo: “Não considero que Hitler seja tão mau como o pintam. Dá mostras de aptidões que são espantosas e parece conseguir as suas vitórias sem grande derramamento de sangue”. O que, mesmo em 1940, não era verdadeiro. Extremamente cruéis, as tropas de Hitler não hesitavam em torturar e matar.
Numa carta a Hitler — a última —, de dezembro de 1941, Gandhi elogiou o Führer por sua “valentia [e] devoção à Pátria-Mãe […]. Nem acreditamos que seja o monstro que os seus adversários descrevem” (a história está na página 786 do livro de Andrew Roberts. A edição que comento é a portuguesa, mas há uma ótima edição da Companhia das Letras, com tradução de Denise Bottmann e Pedro Maia Soares).
Andrew Roberts assinala que “Gandhi teve sorte de ser o vice-rei, e não Hitler, a governar a Índia; o conselho do Führer a Lorde Halifax, aquando do encontro em Berchtesgaden, em 1937, fora: ‘Fuzilem o Gandhi’”
Nas suas memórias, com mais distanciamento, Churchill escreveu: “A inexcedível bravura dos soldados e oficiais indianos, tanto muçulmanos como hindus, brilhará para sempre nos anais da guerra. Mais de 2,5 milhões de indianos voluntariam-se para servir nas forças armadas”. Andrew Roberts frisa que o primeiro-ministro “não” odiava os indianos. O que queria era, evidentemente, que a Inglaterra não perdesse a colônia. Era defensor, em tempo integral, do poderoso, extenso e brutal Império britânico.
Dada sua complexidade e contradições, Churchill “tem de ser tomado pelo todo, ou por nada”, frisa Andrew Roberts. “O homem que desafiou Hitler e proclamou as virtudes da liberdade era o mesmo homem que ficava nauseado com Mahatma Gandhi.”
O historiador Manfred Weinhorn corrobora: “Preferiríamos que os gênios fossem criteriosos e moderados, que fossem um bocadinho mais como nós. Poucos gênios foram assim. Churchill tinha os vícios das suas virtudes”.
Claro que a biografia escrita por Andrew Roberts — por sinal, de excelente qualidade, inclusive com o acréscimo de novos documentos, como os da família real britânica — é, no geral, mais favorável a Churchill, sem deixar de apontar suas contradições e vicissitudes. Para uma interpretação mais ampla do líder indiano é válido consultar a biografia “Mahatma Gandhi e Sua Luta Com a Índia” (Companhia das Letras, 472 páginas, tradução de Donaldson M. Garschagen), de Joseph Lelyveld. Não se trata de hagiografia, e sim de uma pesquisa equilibrada, nuançada.
Afinal, quem ganhou a parada: Churchill ou Gandhi? O indiano, claro, porque a Índia se tornou independente. A grande vitória do britânico se deu contra a Alemanha nazista e Hitler.
Faltava em português um livro para colocar Churchill e Gandhi em perspectiva — lado a lado. Os dois duelaram durantes décadas — ao menos quatro. O primeiro para impedir a autonomia da Índia. O segundo para torná-la independente.
O livro está chegando às livrarias brasileiras. Trata-se de “Gandhi e Churchill — A Rivalidade Épica que Destruiu um Império e Forjou Nossa Era” (Record, 826 páginas, tradução de Renato Prelorentzou), do historiador Arthur Herman, doutor em história pela Universidade Johns Hopkins. O livro é de 2009, mas está saindo no Brasil em 2023.
A pesquisa de Arthur Herman mostra ao lado de Gandhi e Churchill grandes personalidades de seu tempo, como o general Kitchener, Rabindranath Tagore, Franklin D. Roosevelt, lorde Mounthbatten e Muhammad Ali Jinnah (fundador do Paquistão), entre vários outros.