Livro revela que Fernando Sabino quase complicou José Cardoso Pires com os portugueses

16 janeiro 2022 às 00h03

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Com receio de ser preso pela cruenta PIDE, a polícia do ditador português Salazar, o escritor veio para o Brasil e escreveu na “Última Hora” e na “Senhor”
O escritor português José Cardoso Pires é autor de romances de qualidade, como “O Delfim” (Civilização Brasileira, 183 páginas), “Balada da Praia dos Cães” (Bertrand Brasil, 364 páginas) e “Alexandre Alpha” (Companhia das Letras, 364 páginas), e do livro de não-ficção “De Profundis — Valsa Lenta” (Bertrand Brasil, 80 páginas). Ao resenhar “Alexandre Alpha”, lançado no Brasil em 1988, o crítico Leo Gilson Ribeiro escreveu que Cardoso Pires era, “possivelmente, o maior escritor português em um país de revigorante efervescência literária atual”. João Moura Jr., crítico e tradutor, frisou que “muitos” o “consideram o maior ficcionista português contemporâneo”.
A obra de Cardoso Pires fala por si. Mas faltava examinar o homem e o escritor (o tradutor, o editor de livros, o jornalista, o polemista) — os livros estão devidamente escrutinados pela crítica de jornal e acadêmica. Morto há 23 anos, em 1998, aos 73 anos, ganhou, em 2021, um estudo de sua vida e, também, de sua obra de rara excelência. “Integrado Marginal — Biografia de Cardoso Pires” (Contraponto, 599 páginas; uma lacuna é não ter fotografias), do escritor Bruno Vieira Amaral, explica o homem e seus livros de maneira competente. Chega a ser ousado na interpretação da obra — com alto espírito de síntese —, às vezes discordando das críticas mais convencionais, e ampliando seu entendimento (avulta um Cardoso Pires mais modernista e inventivo). É, pois, um portento — a obra que faltava sobre o autor de “O Anjo Ancorado” e “O Hóspede de Job”.

No texto a seguir, vou explorar basicamente dois capítulos do livro, “Revista à portuguesa” e “Meu Brasil brasileiro”.
Portugal viveu sob ditadura do final da década de 1920 até 1974. O salazarismo, espécie de fascismo à portuguesa, governou o país com mão de ferro. Sua polícia, a onipresente PIDE, era cruenta. A censura e as perseguições a jornalistas e escritores eram radicais. Escrevia-se e não se sabia se o livro seria vendido nas livrarias. O governo era o senhor da vida dos criadores artísticos. Cardoso Pires escrevia e ficava preocupado: a obra seria publicada? Se publicada, seria recolhida? Certa feita, um censor sugeriu que mudasse o conteúdo de uma de suas obras, sugerindo que o adocicasse, o que ele não aceitou.
Em 1959, houve uma tentativa de golpe contra o regime do duce português, António de Oliveira Salazar. Fracassado, seus líderes foram presos e seguiu-se uma repressão feroz. Nesse ano, Cardoso Pires e o editor Joaquim Figueiredo Magalhães decidiram lançar uma revista, “Almanaque”. “Os artigos não seriam assinados e, ao serem publicados, toda a redação se tornava responsável”, relata Vieira Amaral. Para editá-la — o nome inicial seria “A Semana” —, Cardoso Pires convocou os amigos Alexandre O’Neill e Luís Sttau Monteiro, e mais Augusto Abelaira e José Cutileiro. A redação era meio anárquica, mas “as coisas funcionavam”, quiçá devido à soma dos muitos talentos envolvidos no projeto editorial. O primeiro número contou com uma tiragem de 15 mil exemplares. “‘Almanaque’ era diferente de quase tudo o que se fazia na imprensa da época, tinha um arrojo gráfico que tanto lhe dava uma aura de qualidade como de… snobismo.” Os intelectuais aprovaram, mas não o público.
Alertado que, num interrogatório, seu nome havia sido citado, o que possivelmente poderia levá-lo à prisão — era membro do Partido Comunista —, Cardoso Pires escapou para Londres e, depois, para Paris.

A crise com o escritor Fernando Sabino
Com receio de voltar a Portugal, Cardoso Pires decidiu vir para o Brasil. “Penso naturalmente fixar-me no Brasil; São Paulo de preferência. (…) É evidente que alguma coisa hei-de de ganhar para as sopas e que só depois de instalado poderei arranjar colocação que me permita escrever e continuar a minha pobre carreira”, disse num carta a Vítor Ramos. Ele contou que tinha experiência como editor da revista mensal “Almanaque” — “que eu dirijo na sombra”. Postulava que era “a publicação mais bem-feita e a melhor paginada” de Portugal. Relatou que havia dirigido uma editora, a Fólio, e fez “parte da Editora Ulisseia”.
No dia 15 de junho de 1960, deixou Paris, num voo da Lufthansa, em direção ao Rio de Janeiro. A “Última Hora” deu na primeira página: “Cardoso Pires na Guanabara”. O jornal assinalava que era “considerado o maior novelista da sua geração e combatente de primeira linha das fileiras democráticas do país irmão”.
Cardoso Pires instalou-se no Hotel Excelsior, em Copacabana, e, em seguida, no Nelba, no centro da cidade.

Com a aprovação de Figueiredo Magalhães, Cardoso Pires seria o representante da Ulisseia no Brasil. “A ideia era a de tornar mais eficiente a distribuição dos livros de autores portugueses no Brasil e, em contrapartida, publicar mais autores brasileiros em Portugal.” A editora já publicara em Portugal livros de Graciliano Ramos e Dinah Silveira de Queiroz.
Vieira Amaral diz que “a reação favorável ao primeiros contactos editorais e a beleza da cidade [o Rio] encantaram Cardoso Pires. (…) A cidade era bela e suja, embora os brasileiros parecessem muito limpos. A beleza da paisagem só perdia para a beleza das praias brasileiras. Cardoso Pires confessava que excediam as expectativas”.
“Se não poupava elogios ao brasileiro em geral — ‘o cidadão mais acolhedor, aberto e expansivo que encontrou no mundo’ — os cariocas, com a sua tendência para a malandragem e para o gozo, fascinavam-no enquanto romancista. Também o fascinava a cor local, nomeadamente a do mercado semanal na Praça Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, ‘com suas tendas de frutos tropicais, abóboras gigantes e doces populares em tu-cá tu-lá festivo com a burguesia sofisticada daquela área”.
Cardoso Pires só não apreciava o barulho do Rio, que seria “a cidade mais barulhenta do mundo’.”
“Em contacto com os brasileiros, rapidamente se apercebeu de que os seus conterrâneos, portugueses que tinham emigrado décadas antes para o Brasil, não gozavam de grande reputação. Eram tidos por trabalhadores, mas atrasados, incultos, fechados para o mundo”, registra Vieira Amaral.
Numa conversa com o escritor Fernando Sabino, Cardoso Pires falou sobre como os portugueses eram vistos. “Fernando Sabino escreveu um longo artigo [publicado no “Jornal do Brasil”], misto de crónica e entrevista (não autorizada), sobre a estadia do escritor português na cidade. Cardoso Pires ficou de queixo no chão. O retrato, que até era simpático, continha opiniões francas [sobre os portugueses que moravam no Brasil] que o escritor se sentira à vontade em partilhar com um amigo, mas que não esperava ver divulgadas na imprensa.”
Com receio de ficar mal com os portugueses, os que moravam em Portugal e os que residiam no Brasil, Cardoso Pires escreveu uma carta para o “Jornal do Brasil” — dirigida a Fernando Sabino — com a finalidade de prestar um esclarecimento (um tapa duro, mas disfarçado pelas luvas de pelica).
“Meu caro amigo:
“Assim como quem acorda no Rio e encontra a janela do quarto tapada por um arranha-céus que surgiu da noite para o dia, à velocidade recorde em que aqui se faz a vida, assim me apareceu a sua crónica no dia 12, com as suas conclusões sobre os encontros ao acaso, as pausas e os silêncios, das breves peregrinações cariocas que Você me proporcionou gentilmente.
“Compreenda a minha surpresa: se se tratasse de uma entrevista, ou de diálogo organizado para publicação, Você ao menos me tivesse comunicado a sua cordial intenção de escrever a meu respeito, eu ter-lhe-ia, por certo, fornecido elementos mais positivos sobre a minha maneira de pensar, inclusivamente acerca dos comentários que Você me atribuiu.
“Assim, por exemplo, como português que lucidamente procura interpretar a vida de seu país, eu não sou nem posso ser, como Você sabe, um saudosista ou patrioteiro de frases vazias. Mas por isso mesmo, por horror às generalizações (que desgraçadamente podem conduzir a racismos), eu lhe diria que considero o meu povo nas diversidades que lhe dão uma unidade social e cultural, na linha positiva que traçou historicamente. Orgulho-me dele, da sua missão e das suas capacidades específicas. […] Eu, que não aceito fatalismos de casta social, penso que todo o português, como todo o brasileiro, é suscetível de evolução e, portanto, merecedor de meu respeito; que o menos letrado dos emigrantes tem a sua dignidade e o seu progresso necessário e que impor-lhe uma generalização de princípio, decorrente de sua condição social, é, do ponto de vista humano, uma distorção”.
Apesar da contundência — elegante, por certo — da resposta, Cardoso Pires e Fernando Sabino, o autor de “O Encontro Marcado”, não romperam as relações.

A produção editorial e literária do Brasil impressionou Cardoso Pires. “O país que encontrou foi uma excelente surpresa: ‘Isto aqui está editorialmente superior, há livros da Penguin traduzidos (pelo menos já vi três…) e existe uma colecção em moldes semelhantes editada pela Cultrix. (…) Esta gente [os brasileiros] — ao contrário do que eu pensava — trabalha muito mais do que nós! Chamam-lhe o ‘ritmo JK’. Por outro lado, a vida está cara’.” Juscelino Kubitschek, por sinal, era aplaudido nas ruas de Lisboa.
O escritor e jornalista Otto Lara Resende , secretário da embaixada do Brasil em Portugal, “arranjou um lugar” para Cardoso Pires na redação da “Última Hora”, jornal no qual Nelson Rodrigues escrevia (Amaral Vieira usa uma das frases do cronista e dramaturgo brasileiro — “O grande homem é o menos amado dos seres” — como epígrafe da biografia) .
Cardoso Pires foi convidado a escrever na revista “Senhor”, que, dizia, era “muito bem-feita”. “Surgida no auge do período JK, em 1959, o mesmo ano do ‘Almanaque’, liderada por ‘uma quantidade de meninos ricos muito snobs mas muito de esquerda, judeus e ricos’, ‘Senhor’, criada por Nahum Sirotsky, foi um marco na imprensa brasileira. O naipe de colaboradores era notável, desde Clarice Lispector a João Guimarães Rosa, passando por novos valores como o próprio Fernando Sabino, Paulo Francis ou o diretor de arte da revista, Carlos Scliar, que foi o grande amigo brasileiro de Cardoso Pires naquele tempo.”
Cardoso Pires frequentava o Bottle’s e o Au Bon Gourmet, ouvia a música dos criadores da Bossa Nova e se encontrava com “figuras da ‘Senhor’ na boate Fred’s, na Avenida Atlântica”. Ele mantinha contato com a atriz Fernanda Montenegro, com o jovem cantor e compositor Chico Buarque e com o pintor Cândido Portinari. Com tantas coisas boas, “como é que não haveria de ficar no Brasil?” No país morava o amigo Vítor Ramos. “A ideia era fixar-se no Brasil e depois mandar vir a mulher e as [duas] filhas.” Ele tentou até convencer Castro Soromenho a se mudar para o país de Jorge Amado e Guimarães Rosa. “Tudo indicava que o Brasil era o país do futuro. Do seu futuro”, anota Amaral Vieira.
Ante as boas notícias sobre o mercado editorial e literário, Figueiredo Magalhães esteve no Brasil. Queria verificar se havia espaço para a Ulisseia. Cardoso Pires pensou em abrir uma editora em São Paulo, semelhante à sua Fólio.
Em agosto de 1960, Cardoso Pires participou, ao lado dos portugueses Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena e Maira de Lourdes Belchior Pontes, do I Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, em Recife. Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir também estiveram no encontro. Os portugueses foram tão bem tratados que Cardoso Pires chegou a dizer: “A coisa melhor do Brasil é ser português aqui”.
O Brasil parecia uma “maravilha”, mas Cardoso Pires voltou para Lisboa, em agosto de 1960. “O Brasil do futuro já era parte do seu passado.”