Livro revela história do boina-verde que treinou rangers bolivianos pra caçar Che Guevara
07 abril 2018 às 23h55
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Ralph Shelton qualificou 650 soldados e oficiais da Bolívia, que, com o apoio da CIA, prenderam e mataram o guerrilheiro com facilidade, em outubro de 1967
Ernesto Guevara, o Che, foi executado por militares em 8 de outubro de 1967, na Bolívia. Sabe-se que americanos participaram da preparação da caçada humana. Militares das forças especiais e agentes da CIA trabalharam como articuladores, orientando e monitorando soldados e oficiais bolivianos do governo do presidente-general René Barrientos Ortuño. Se a ação dos homens do serviço secreto é mais conhecida, a dos boinas verdes é menos citada. Os capturadores do guerrilheiro que, descendo de Sierra Maestra, liderou a Revolução Cubana de 1959, ao lado de Fidel Castro, foram treinados por boinas-verdes, liderados pelo major Ralph “Pappy” Shelton. A história está registrada no livro “Caçando Che” (Record, 279 páginas, tradução de Flávio Gordon), dos jornalistas Mitch Weiss (Prêmio Pulitzer de 2004) e Kevin Maurer.
Com o apoio da argentina-alemã Tamara Bunke Bide, a Tania, Che Guevara, com o nome de Adolf Mena González, entrou na Bolívia com objetivo de dar início a “dois, três, muitos Vietnãs” (se Cuba era “de” Fidel Castro, a Bolívia seria a Cuba “de” Che Guevara). O médico argentino, guerrilheiro profissional, acreditava que havia condições objetivas para se fazer uma revolução no país, que seria uma nova Cuba. Nos primeiros confrontos, as bem treinadas tropas de cubanos e bolivianos de esquerda mataram e prenderam soldados bolivianos (raramente lembrados pelos pesquisadores), que eram despreparados. Parecia uma barbada.
No início, duvidou-se que a guerrilha era comandada por Che Guevara, que “era temido e adorado na Bolívia, com o mesmo grau de intensidade”. Mas documentos apreendidos num acampamento secreto apontaram que ele estava na Bolívia. Alarmado, o presidente René Barrientos pediu socorro ao governo dos Estados Unidos.
O presidente americano Lyndon Johnson, preocupado com o “avanço” do comunismo, decidiu ajudar o governo boliviano. O major Ralph Shelton — havia lutado “na Coreia e servido com os Boinas-Verdes no Laos e na República Dominicana — foi recrutado pelo coronel Magnus Smith para constituir um batalhão de rangers bolivianos, com 650 homens. Ele teria 19 semanas para organizar uma força especial para combater Che Guevara.
Lyndon Johnson e o Pentágono decidiram que dezesseis boinas-verdes, liderados por Ralph Shelton, não participariam de combates — seriam apenas mestres dos rangers bolivianos. O embaixador americano na Bolívia, Douglas Henderson, era um dos encarregados de manter os militares do Tio Sam fora da zona de combate. “Os bolivianos teriam que arrumar a bagunça sozinhos.”
Ralph Shelton não era um homem alto, mas era forte, sobretudo era um líder nato. Na Bolívia, na vila de La Esperanza, descobriu logo que era preciso conquistar a população. Enfrentando burocratas americanos, que avaliavam que os militares estavam na Bolívia só para “caçar” guerrilheiros, construiu uma escola e, tocando violão, enturmou-se com as pessoas simples.
Enquanto Ralph Shelton qualificava a tropa ranger, Che Guevara e os guerrilheiros atacavam e matavam soldados e oficiais bolivianos — assustando inclusive os governantes da Argentina (enviaram armas e munição) e do Brasil (prometeram “um grande carregamento de rações de combate”). O presidente Barrientos “decretou a lei marcial” e “lançou na ilegalidade o Partido Comunista da Bolívia e o Partido Revolucionário dos Trabalhadores, prendendo 41 de seus líderes”. O governo era brutal contra oposicionistas, ainda que não guerrilheiros. Chegou a propor jogar napalm na zona guerrilheira, mas o embaixador americano Douglas Henderson, “chocado”, vetou.
Como as forças bolivianas não conseguiam conter a guerrilha de Che Guevara, da qual participavam poucos militantes — a maioria da esquerda do país não aderiu ao projeto foquista —, o governo de Barrientos começou a pressionar Ralph Shelton para liberar os rangers o mais rápido possível. O boina-verde resistiu e disse que só seriam liberados quando estivessem aptos.
Régis Debray
A prisão dos guerrilheiros Ciro Roberto Bustos (argentino) e Jules Régis Debray (francês), autor do livro “Revolução na Revolução”, descortinou a micro organização montada por Che Guevara e Tania-Tamara Bunke. O agente da CIA Gabriel García, nascido em Cuba, colheu o depoimento de Régis Debray, que nada escondeu sobre a presença de Che Guevara na Bolívia e sobre seus planos.
A CIA começou a montar um dossiê sobre as ações de Che Guerra e do Exército de Libertação Nacional (ELN). Um de seus homens, o cubano Félix Rodríguez, conhecia como poucos os métodos dos guerrilheiros treinados pelos comunistas de Fidel Castro, por isso a agência o enviou para a Bolívia, com o agente Gustavo Villoldo. Cubanos, e não americanos, Félix Rodríguez e Villoldo puderam trabalhar livremente no país. O objetivo era treinar a Inteligência do governo de Barrientos e colher informações precisas para o governo americano.
O coordenador de Félix Rodríguez, o agente Bill, disse-lhe: “Traga-o vivo. Se, por acaso, Che for capturado vivo, o que será difícil, tentem mantê-lo vivo. Mantenham-no vivo a todo custo, e daremos um jeito de transportá-lo ao Panamá”. Porque a CIA queria o guerrilheiro vivo, não é explicitado inteiramente no livro, mas certamente queria negociar informações, o que não seria fácil, pois Che Guevara era durão. Ressalva: o agente da CIA Gustavo Villoldo não tinha interesse em mantê-lo vivo. Tratava-se de vingança pessoal. Barrientos chegou a dizer ao agente: “Você tem a minha palavra, na qualidade de presidente do país, que, se capturarmos Guevara, ele não sairá da Bolívia”. Ralph Shelton disse para Félix Rodríguez: “A brincadeira acaba aqui”. Traduzindo: o guerrilheiro argentino-cubano não deveria sair vivo da Bolívia, porque, se saísse, iria fazer guerrilha noutros países.
Enquanto a CIA recolhe e processa informações, e o presidente Barrientos comanda uma caçada infrutífera a Che Guevara, Ralph Shelton continua qualificando o 2º Batalhão de Rangers. O treinamento era tão duro que alguns pensaram em desistir e, às vezes, ficavam feridos. O americano encontrou no capitão boliviano Gary Prado Salmón um homem à altura do que imaginava que deveria ser um militar. Era duro e franco. Gary Prado entendeu, de cara, que Ralph Shelton era um oficial qualificado e perceptivo. As tropas bolivianas mal sabiam usar armas modernas e potentes. A equipe americana ensinou-as, pacientemente. Aos poucos, um exército especializado em lutas e Inteligência foi montado.
Com a prisão do boliviano José Castillo Chávez, o Paco, e com a apreensão do diário do cubano Israel Reyes Zayas, codinome Braulio, Félix Rodríguez montou, de vez, o quebra-cabeça da guerrilha de Che Guevara. No diário, Braulio relata que “a guerra de guerrilhas” de Che Guevara “era mal organizada, mal planejada, e mal executada. Os suprimentos eram escassos e de baixa qualidade. Mas o incrível de tudo era que a força de Braulio não tinha nenhuma comunicação com a unidade de Che”. Dados os ataques das forças armadas bolivianas, “as duas metades do temível exército rebelde de Che haviam se separado. Perdidas, elas perambulavam durantes meses pelas montanhas em busca uma da outra”.
Os autores do livro perguntam: “E toda aquela conversa sobre centenas de guerrilheiros disciplinados prontos para invadir La Paz? Pura bobagem, percebeu Rodríguez. O mundo assustara-se por nada. O que diabos Che estava fazendo ali?” Rodríguez ficou estupefato. “Era irreal.”
Paco deu informações precisas sobre Tamara Bunke Bider, uma agente da Alemanha Oriental (nascida na Argentina, era filha de alemães) “que trabalhava para a KGB” e colocara Bustos e Régis Debray no acampamento dos guerrilheiros. Na guerrilha, ela operava o rádio de Che Guevara e foi morta numa emboscada.
Che Guevara confiava mais nos cubanos e em Tamara Bunke Bider para o comando da guerrilha. Os bolivianos eram menosprezados e, de fato, não demonstravam muito apego à guerrilha.
Rangers
Ralph Shelton e seu braço direito, o capitão Edmond Fricke, finalmente “entregaram” os rangers ao governo da Bolívia. Bem treinados e armados, começaram a caçada e, rapidamente, prenderam e a mataram guerrilheiros.
O capitão Gary Prado, da companhia B, era um dos rangers mais bem preparados pelos americanos. Com Ralph Shelton, havia aprendido a liderar. O primeiro passo era se mostrar confiante. “Nós vamos destruir esses homens”, dizia para seus liderados a respeito dos guerrilheiros. Na primeira investida, um homem de Che Guevara, o boliviano Orlando Jiménez Bazán, Camba, rendeu-se. Estava esfarrapado.
Che Guevara estava cercado e, agora, por um exército bem treinado (com informações de primeira linha, colhidas e processadas por Félix Rodríguez, com o apoio de Paco). Entre setembro e outubro de 1967, “a força guerrilheira de Che já não lutava pela revolução, mas por sobrevivência”.
No dia 8 de outubro de 1967, um agricultou contou aos militares que dezessete homens caminhavam pela mata. Os guerrilheiros atiraram, mataram soldados, mas estavam cercados. Dois guerrilheiros foram capturados pelos soldados de Gary Prado. Um deles “tinha um olhar impressionante, olhos claros, e uma barba espessa e selvagem. Usava uma jaqueta com capuz e uma camisa sem botões. Na sua mão direita, uma carabina”.
Gary Prado perguntou: “Quem é você?” O homem respondeu: “Eu sou Che Guevara”. O outro homem era Siméon Cuba, Willy, boliviano. Che Guevara carregava “uma sacola, duas mochilas, uma pistola na cintura, e cinco ovos cozidos que ele guardava para comer mais tarde”. Sua perna direita estava ferida.
“Eu suponho que você não vá me matar agora. Eu valho mais para você vivo do que morto”, disse Che Guevara para Gary Prado. O guerrilheiro “estava macilento, envolto em farrapos; era um espantalho, um mendigo”.
Numa conversa ríspida, Gary Prado disse para Che Guevara: “Tenho a impressão de que você cometeu um erro desde o início, ao escolher a Bolívia para a sua aventura”. O guerrilheiro o interrompeu: “A revolução não é uma aventura”. E acrescentou: “A guerra de independência não começou na Bolívia?” Escrevem os autores do livro: “Talvez tivesse sido mesmo um erro escolher a Bolívia, concedeu Che, mas a escolha não fora sua. A revolução precisava de um campo de lançamento na América do Sul. Quando surgiu a ideia, a resposta mais entusiasmada veio dos bolivianos”. A Félix Rodrigues, Che Guerra revelou: “Nós consideramos outros lugares”. Ele mencionou Venezuela, América Central, República Dominicana. “Mas, em cada lugar, os EUA agiram rapidamente para conter a ameaça. Percebemos que, escolhendo um país tão longe dos EUA, isso não soaria como uma ameaça imediata”. Ele lembrou que a Bolívia tem fronteiras com cinco países. “Se formos bem-sucedidos na Bolívia, poderemos chegar a outros lugares: Argentina, Chile, Brasil, Peru e Paraguai.”
Os bolivianos deram escasso apoio à guerrilha. Che Guevara sugeriu que queriam um comandante boliviano, e ele era argentino e ligado aos cubanos.
Como havia combinado com seu chefe na CIA, Félix Rodríguez operou para manter Che Guevara vivo. Recolheu seus documentos e fotografias, organizou e fotografou tudo e enviou para os Estados Unidos. Ernest Nance, adido da Agência Norte-Americana de Inteligência e Defesa em La Paz, conversou com o general Alfredo Ovando Candía e o general Jorge Belmonte Ardile e “pediu-lhes que poupassem a vida de Che. Eles não prometeram nada”.
Apesar dos pedidos americanos, Ovando e Barrientos decidiram matar o guerrilheiro. “Executar Che Guevara seria uma clara mensagem: não mexam com a Bolívia.” “Estava decidido: morte.” Félix Rodríguez “sabia que os Estados Unidos planejavam contrabandear Che para o Paraguai [noutro lugar, aparece Panamá], a fim de interrogá-lo.” Ao coronel Joaquín Zenteno Anaya, o agente da CIA insistiu: “As instruções por mim recebidas do governo dos EUA são para mantê-lo vivo sob quaisquer circunstâncias”. Zenteno respondeu: “Se eu não cumprir as ordens para executar Che, estarei desobedecendo ao meu próprio presidente”.
Quando Zenteno solicitou dois voluntários para matar Che Guevara, o primeiro-sargento Mario Teran e o sargento Huanca se apresentaram. Félix Rodríguez disse para o guerrilheiro: “Comandante, eu fiz tudo o que estava sob o meu poder, mas vieram ordens do supremo comando boliviano”. Pálido, Che Guevara disse: “É melhor assim, Félix. Eu não deveria nunca ter sido capturado vivo”.
Félix Rodríguez ofereceu para levar alguma mensagem à família, e Che Guevara disse: “Diga à minha mulher que se case de novo e tente ser feliz”. Os dois se abraçaram. “Che Guevara era um homem — um homem encarando o seu fim com dignidade. Rodríguez já não o odiava mais.”
Vingança
Uma história fascinante é contada no livro “La Mujer Que Vengó Al Che Guevara — La Historia de Monika Ertl” (Capital Intelectual, tradução de Florencia Martin, 293 páginas), do jornalista alemão Jürgen Schreiber. Não há tradução para o português.
A obra conta que, em 1971, em Hamburgo, na Alemanha, a alemã Monika Ertl, controlada pelo Ejército de Liberación Nacional (ALN), assassinou Roberto (Totó) Quintanilha Pereira, cônsul da Bolívia. Era uma vingança do ELN porque o ex-chefe do serviço secreto havia mandado cortar as mãos de Che Guevara.
Monika Ertl era filha de Hans Ertl, alemão que trabalhou para Adolf Hitler, como fotógrafo-cinegrafista, e com Leni Riefenstahl. Ele e a diretora de cinema foram amantes. A família mudou-se para a Bolívia, onde Monika Ertl casou-se com um homem rico, mas, ao descobrir a vida dura da maioria dos bolivianos e as ideias de Che Guevara, aderiu à esquerda.
“Tamara, Laura, Tania — Un Misterio en la Guerrilla del Che” (Del Nuevo Extremo, 435 páginas), do economista e professor universitário Gustavo Rodríguez Ostria, relata a história de Tamara Bunke Bider, que, nascida na Argentina, trafegou pela Alemanha Oriental, Cuba e Bolívia. Era uma agente do micro exército de Che Guevava na Bolívia e foi morta pelos militares, em agosto de 1967. Era conhecida como Laura Gutiérrez Bauer e, sobretudo, a guerrilheira Tania.