Livro resgata história de líder da revolta do campo de extermínio de Sobibor que morou em Goiânia
24 maio 2014 às 14h19
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Stanislaw “Shlomo” Szmajzner escapou do campo da morte na Polônia, lutou contra os nazistas como partisan soviético e morou em Goiás. Ele era amigo do fundador da capital goiana, Pedro Ludovico Teixeira
Não se sabe com exatidão quanto judeus morreram no período de hegemonia do nazismo na Alemanha de Adolf Hitler. Sabe-se, porém, que não morreram menos de 5 milhões. No livro “A Alemanha Nazista e os Judeus — Os Anos de Extermínio, 1939-1945” (Perspectiva, 836 páginas, tradução de Lyslei Nascimento, Josane Barbosa, Maria Clara Cescato e Fany Kon), Saul Friedländer anota: “Entre 5 e 6 milhões de judeus” foram “mortos; dentre eles, quase 1,5 milhão com menos de 14 anos. (…) Apesar de vários cálculos, uma estimativa exata do número de vítimas do holocausto não é possível”. O pesquisador cita o livro “A Destruição dos Judeus Europeus”, de Raul Hilberg, como uma das fontes mais seguras. Hilberg menciona a estimativa de 5,1 milhões, mas admite que pode ter sido mais. O livro “Dimension des Völkermords”, organizado por Wolfgang Benz, apresenta duas estimativas: 5.290.000 (a menor) e 6 milhões (a máxima). Milhões de judeus morreram em conflitos com nazistas, nos guetos e nos e fora dos campos de concentração e extermínio. A maioria não reagiu, aceitando a morte de maneira passiva. Possivelmente, as pessoas estavam paralisadas pelo medo, pela brutalidade dos soldados e oficiais alemães e dos guardas ucranianos. Mas vários judeus reagiram e tentaram escapar dos campos de morte.
Judeus se rebelaram nos guetos, como os de Łódź e Varsóvia, e nos campos de extermínio, como Auschwitz, Treblinka (proporcionalmente, o mais letal) e Sobibor. No livro “Europa na Guerra — 1939-1945” (Record, 599 páginas, tradução de Vitor Paolozzi), o historiador inglês Norman Davies afiança que “Sobibor eliminou mais de 300 mil judeus, a maioria da região central da Polônia” (há livros que mencionam 250 mil judeus). “O Terceiro Reich em Guerra” (Planeta, 1.056 páginas, tradução de Lúcia Brito e Solange Pinheiro), do historiador britânico Richard J. Evans, informa sobre a revolta de Sobibor: “… mais de 300 de um total de 600 reclusos tiveram êxito em escapar do campo (todos que não conseguiram foram fuzilados no dia seguinte). Cem fugitivos foram capturados e mortos quase imediatamente. (…) Mas o restante evitou os captores e vários deles acabaram chegando às unidades da guerrilha” (partisans soviéticos, em geral, porque os poloneses também matavam judeus).
A revolta de Sobibor, exibida no filme “Fuga de Sobibor”, com os atores Alan Arkin, Rutger Hauer e Joanna Pacula, ocorreu em 1943. Liderados por Leon Feldhendler, prisioneiros criaram a Organização, mas, por falta de experiência militar, não agiam, até que chegou ao campo o prisioneiro soviético Alexander ‘Sasha’ Pechersky, também judeu (Sobibor era um campo para matar judeus). Aos poucos, depois de alguma hesitação, judeus poloneses e soviéticos se uniram, mataram vários nazistas e escaparam. Depois da fuga, Sasha e alguns judeus poloneses se uniram aos soviéticos e lutaram contra os alemães. Outros aliaram-se às forças polonesas. Richard Rashke, no livro “Fuga de Sobibor” (8Inverso, 365 páginas, tradução de Felipe Cittolin Abal), assinala: “É um fato pouco conhecido que mil judeus lutaram com o Exército Nacional [polonês], mesmo que o AK não tivesse levantado um revólver para ajudar os judeus de Varsóvia quando eles lutaram contra as forças do general Stroop na primavera de 1943. A maioria dos judeus era membro das unidades partisans comunistas. Alguns poucos se juntaram ao Exército Nacional, se passando por cristãos”.
Além de contar a história dos judeus no campo, explicitar como foi a revolta, Rashke relata o que aconteceu com alguns dos fugitivos anos mais tarde, que é o que será exposto a seguir, sobretudo a respeito de Stanislaw Szmajzner (1927-1989), Shlomo, que, depois de morar no Rio de Janeiro, veio para Goiânia, onde foi localizado e entrevistado pela jornalista Gitta Sereny — autora de um livro sobre o comandante de Sobibor, Franz Stangl — e, em seguida, por Rashke.
Quando decidiu escrever o livro (a primeira edição é de 1982), Rashke descobriu que alguns dos fugitivos de Sobibor estavam vivos— aproximadamente 30 sobreviveram à Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e “140 foram mortos durante a revolta”—, morando em Israel, nos Estados Unidos e no Brasil. Dos líderes da revolta, apenas Sasha e Shlomo estavam vivos, o primeiro na União Soviética e o segundo no Brasil. Para localizá-los, o escritor procurou Thomas Blatt, Toivi, um dos sobreviventes de Sobibor. O escritor havia lido “Inferno em Sobibor — A Tragédia de um Adolescente Judeu”, de Shlomo, publicado no Brasil em 1968. (Quando entrevistou Shlomo, em 1981, Rashke recebeu informações de que o partisan judeu Yechiel Greenshpan estava morando no Brasil. Mas não o ouviu.)
Marcas de Sobibor
“Eu penso seguidamente sobre Sobibor. Quando eu conheço alguém, me pergunto: ‘Como ele seria em Sobibor? O que ele teria feito?’”, disse Toivi a Rashke.
Na companhia de Toivi, Rashke esteve em Goiânia para entrevistar Shlomo. Levado para Sobibor aos 15 anos, Shlomo tinha 17 anos quando participou da revolta, sendo o responsável pela obtenção dos rifles.
Shlomo contou que havia planejado emigrar para Israel em 1947, mas decidiu visitar parentes no Brasil e acabou ficando no país, onde casou-se com uma judia.
Aconselhado por amigos e políticos, Shlomo “comprou uma ilha entre dois rios perto da Bacia do Amazonas”, em 1958, “a qual ele transformou em um rancho com 1.800 cabeças de gado. Ele foi o primeiro homem branco que a maioria dos índios de lá viu”.
Rashke diz que, “quando o governo caiu em 1967” — a referência precisa deve ser 1964 —, “Shlomo vendeu o rancho, com medo de perdê-lo”. O ourives era amigo de Pedro Ludovico e do governador Mauro Borges, que foi deposto em novembro de 1964.
Sem a fazenda, Shlomo mudou-se para Goiânia, onde se tornou diretor-executivo da Induprel, “uma indústria de reciclagem de papel”.
Durante a entrevista de Shlomo a Rashke, Pedro Ludovico visitou o amigo. O político escreveu o prefácio do livro “Inferno em Sobibor”.
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Nas conversas com Rashke, “Shlomo disse que nunca tinha sofrido preconceito no Brasil e que a solução para o antissemitismo era a assimilação”. Ele frisou: “Deixe aqueles que querem ser judeus ortodoxos irem para Israel. Deixe os outros se assimilarem”. (Curiosamente, quando o Jornal Opção publicou uma reportagem sobre Mauro Borges Filho, que, devido à diabetes, perdeu as duas pernas e está cego, uma neta de Shlomo entrou em contato por e-mail. Ela mora em Israel.)
Durante as conversas, com um Shlomo às vezes tenso, Rashke o observava com atenção: “Havia uma tristeza em seus olhos castanhos esfumaçados que nunca desaparecia, mesmo quando ele estava nervoso ou ria”. De repente, dizia: “Ricardo [e não Richard], eu estou em Sobibor agora”.
Na residência de Shlomo, Rashke viu “cerca de mil discos e fitas cassete”. O judeu inquieto era apaixonado por música, tanto local quanto internacional, popular e erudita. “Mantovani, ‘Russische Balalaika-Musik’, Bernstein e a Filarmônica de Nova York, ‘Chanson d’Amour’, tangos e boleros, a trilha sonora de ‘Lawrence da Arábia’. (…) Ele tinha os melhores discos em qualquer língua.” Shlomo chegou a colocar sambas na vitrola e dançou.
Quando se mencionou que poloneses haviam colaborado com os nazistas, Shlomo ficou nervoso. Ele era polonês, mas dizia que os poloneses eram “piores do que os nazistas”. De fato, com ou sem pressão, vários poloneses denunciaram e entregaram judeus aos soldados e oficiais do governo de Adolf Hitler. “O fogo da vingança ainda não tinha apagado depois de 37 anos”, escreve Rachke.
O pesquisador percebeu que a entrevista desandara, mas, ao mostrar um álbum de fotografias no qual havia uma foto sua como partisan soviético, Shlomo descontraiu-se. Ao contar que recebeu uma medalha dos soviéticos por bravura, revelou, com certa satisfação, que matou alemães.
Quando entrou em Sobibor, Shlomo acreditava em Deus. Depois da experiência trágica no campo, tudo mudou: “Eu não acredito mais em Deus. (…) Ele é o mais culpado de todos”.
Por que tantos morreram em Sobibor, mas Toivi e Shlomo escaparam? A resposta de Toivi: “Sorte e talvez um pouco de ousadia. Mesmo no campo, eu assumia riscos. Eu me alimentava bem. Era perigoso roubar comida. Eu arriscava. Eu contrabandeava comida do Campo II para o Campo I. Eu estava sempre procurando por um trabalho mais fácil. Eu tentava me manter limpo. Os alemães gostavam disso. Eu caminhava ereto e rápido. Eles gostavam disso também. Talvez essa fosse minha maneira de sobreviver”. Shlomo sobreviveu em Sobibor porque, ourives, fazia joias para nazistas, como o cruel Gustav Wagner.
Toivi conta que Sobibor, mesmo anos depois da liberdade, “vivia” dentro dele e o “consumia”. “Os sonhos me fazem sentir como se eu ainda estivesse em Sobibor. Sabe, Richard, eu ainda sou um prisioneiro. Eu sinto que seria uma traição aos meus pais, irmãos e amigos se eu fingisse que Sobibor nunca aconteceu, como alguns sobreviventes fazem. Eu sinto que isso seria uma espécie de insulto.”
“Você saiu de Sobibor uma pessoa melhor ou pior?”, pergunta Rashke. “Eu me tornei pessimista. Todo bom sentimento sobre as pessoas desapareceu. Se eu vejo alguém sofrendo, eu não consigo sentir pena. Eu costumava sentir — antes de Sobibor… Todos os sentimentos de piedade estão mortos”, disse Toivi.
Shlomo quase repete as palavras de Toivi: “Existem quatro coisas que se precisa para sobreviver. Sorte, coragem, inteligência e uma forte vontade de viver… Eu odiava o mundo depois de Sobibor. Toda a humanidade, sem exceção. Eu deixei Sobibor como um homem pior. Eu tinha pouca experiência de vida antes de chegar lá. Enquanto eu estava lá, eu vi apenas o pior da vida. Aquilo me encheu de ódio. Tudo morreu em Sobibor. Bandura… delicadeza… piedade. Apenas ódio. Se eu fosse mais velho? Poderia ter sido diferente. Mas Sobibor foi a minha escola”.
Ao perceber o “ódio” e a “raiva”, o autor do livro quis saber se, 35 anos depois do término da guerra, Shlomo não havia mudado. “No início, eu só queria vingança. Eu tive sorte. Eu tinha uma chance de aliviar minha raiva.” O que ele fez? Como partisan, ao lado dos soviéticos, matou alemães. “Meu livro foi a melhor coisa que eu fiz em minha vida. A melhor terapia. Por causa do livro, grande parte da pressão que eu sentia foi aliviada junto com muita raiva.”
Ao conceder a entrevista, Shlomo não parava, estava inquieto, se movimentando muito. “Nós [sobreviventes dos campos de extermínio] somos assim. Se eu for viver mais alguns anos, eu preciso esquecer Sobibor. Mas eu não posso. Eu tenho de falar disso.” Em seguida, perguntou para Rashke: “Você acha que sou normal?” Como havia ficado muito tenso ao falar sobre sua vida em Sobibor, acrescentou: “Ricardo, você tirou dois anos do que resta da minha vida”.
Um momento delicado da entrevista ocorreu quando Rashke perguntou a Shlomo sobre Sasha. Após a fuga, o militar soviético deixou o grupo de judeus numa floresta, dizendo que iria buscar ajuda e não voltou. Ele argumentava que em pequenos grupos era mais fácil escapar dos nazistas da SS. Sasha integrou-se às tropas soviéticas e foi ferido em combate. “Eu o respeito. Sem ele, nós não teríamos sobrevivido. Mais do que isso eu não vou falar. Eu não posso falar sobre alguém que fez, digamos, dez coisas boas e talvez uma coisa ruim. Não seria justo”, contemporiza Shlomo.
Quem, de fato, liderou a revolta de Sobibor? “Os líderes são Feldhendler e Pechersky. Meu papel foi pequeno. Eu peguei os rifles”, disse Shlomo.
Após falar de Sasha, o principal líder da revolta, e de Feldhendler (filho de um rabino), uma espécie de líder espiritual — que unificou os judeus —, Shlomo, “do nada”, disse: “Depois de Sobibor, eu nunca mais ri. Eu não consigo rir. Eu não consigo amar. Eu dormi com mulheres, mas não havia amor. Uma mulher era um objeto. Às vezes, eu fico imaginando se eu não enlouqueci depois de Sobibor”. Fez uma pausa, e acrescentou: “Eu ainda estou em Sobibor”.
Embora apreciasse o Brasil, espécie de pátria que adotou, Shlomo disse a Rashke: “A melhor época da minha vida foi como um partisan russo. A melhor época de toda a minha vida. Eu estava no controle de minha vida. Não os outros… (…) Eu nunca vi ninguém em Sobibor chorar. Nunca. Em 17 meses”.
Nazistas caçados
Nazistas como Franz Stangl, um dos comandantes de Sobibor, e Gustav Wagner, ajudados pelo bispo católico Aloïs Hudal, escaparam dos Aliados. Stangl viveu três anos na Síria e, em 1951, mudou-se para o Brasil, tendo trabalhado como “supervisor de manutenção preventiva em uma fábrica da Volkswagen, em São Paulo”.
Em 1967, um ex-agente da Gestapo recebeu 7 mil dólares de Simon Wiesenthal, o caçador de nazistas, e contou onde Stangl estava “escondido”. Ele estava tranquilo, tanto que não havia mudado seu nome.
No seu julgamento, em Dusseldorf, Stangl revelou que Gustav Wagner morava no Brasil desde 1970, numa fazenda em Atibaia. Em 1978, jornalistas brasileiros publicaram que Wagner havia sido visto na comemoração do octogésimo nono aniversário de Hitler. “Wagner, com medo de que agentes de Israel estivessem atrás dele” — havia o precedente de Adolf Eichmann, sequestrado pelo Mossad, em Buenos Aires —, “foi até a polícia e se rendeu”.
Ao assistir o noticiário na televisão, à noite, Shlomo “viu o rosto de Wagner”. “Ele quase enlouqueceu de raiva quando soube que por quase 30 anos estava respirando o mesmo ar que Wagner. Ele entrou no primeiro avião para São Paulo, já que, se ninguém identificasse positivamente Gustav Wagner como o nazista de Sobibor em poucos dias, a polícia o soltaria e, então, ele poderia fugir para o Paraguai ou se esconder em um vilarejo distante no Brasil.”
Ao encontrar Wagner na cadeia, Shlomo disse: “Olá, Gustl”. Era o “apelido íntimo” do nazista. Assustado, o carrasco de Sobibor, confuso, perguntou: “Quem está aí? Quem disse isso?” O judeu, sua vítima no campo, disse: “É o pequeno ourives de Sobibor”. Wagner replicou: “Sim, sim, eu conheço você. Eu salvei você e seus três irmãos”.
Identificado, “Wagner admitiu que era nazista e que havia trabalhado em Sobibor”. Entretanto, como “o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Polônia e Israel não possuíam jurisdição sobre Wagner e que estavam faltando documentos por parte da Alemanha”, Wagner foi libertado. Em 1980, Wagner “cometeu” suicídio, em Atibaia. “Shlomo deixou subentendido para mim que a morte de Wagner não foi um acidente. Os israelenses o mataram? O Kameradenwerk do Brasil, o submundo nazista, o matou? Shlomo se recusou a explicar sua colocação”, relata Rashke.
Depois do Brasil, Rashke foi para a União Soviética, tendo Toive como guia, para encontrar-se com Sasha. O judeu russo disse que decidiu fugir e salvar os judeus ao ouvir o grito de uma criança: “Mamãe, Ma-”. A mulher e sua criança foram mortas na câmara de gás de Sobibor. O escritor contou a ele que “a fuga de Sobibor foi aquela em que mais prisioneiros escaparam em toda a Segunda Guerra Mundial, tanto em campos de civis quanto de prisioneiros”. Sasha ripostou: “Eu acredito que fiz algo muito importante. E bom. Mas eu não fui um herói. Eu apenas cumpri com o meu dever”.
Ao ser encontrado por Rashke, Sasha tinha 72 e estava doente.