Livro de memórias do crítico Herondes Cezar resgata sua paixão pelo cinema
05 janeiro 2020 às 00h00
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Fundador do Cine Clube Antônio das Mortes, crítico de cinema e contista revela que foi ator de João Bennio
O livro “Becape da Memória” (203 páginas) é a história do notável crítico de cinema Herondes Cezar de Siqueira, de 74 anos. Narrador contido, estilista da Língua Portuguesa, o autor faz, sem grandes pretensões, aquilo que se pode denominar de história do cotidiano.
Pode-se sugerir também que, ao contar sua história de menino nascido (com parteira) em fazenda, na região de Piracanjuba – sua eterna Ítaca –, Herondes Cezar, mais do que historiador da vida privada, é uma espécie de antropólogo. Sua percepção dos detalhes, resultante de uma curiosidade atávica – quiçá derivada do fato de ter sido uma criança solitária –, impressiona.
O pai lia livros e, como tal, era visto como preguiçoso. Herondes Cezar é delicado ao falar dos pais – Maria Aparecida de Lima e Sílvio Cezar de Siqueira –, mas tem distanciamento suficiente para mostrá-los de maneira realista, sem rapapés.
A descoberta do rádio é contada com graça. “Tinha um caixote escuro em cima da mesa da sala, e eu deduzi que aquilo deveria ser o rádio. Fiquei olhando para o caixote apagado, mudo, até que perdi a paciência e perguntei por que o rádio não falava. [O tio-avô] Ciciliano [Dias Pinheiro] disse que ele não estava funcionando e deu uma explicação que me deixou confuso: ‘Barata roeu a moela dele’.” Aos 10 anos, em 1955, Herondes Cezar ouviu rádio pela primeira vez, em sua casa. O pai apreciava música, notícia e humor. Faziam sucesso Inezita Barroso, Os Três Batutas do Sertão e as duplas Alvarenga e Ranchinho, Tonico e Tinoco, Zico e Zeca, Irmãs Galvão, Cascatinha e Inhana e Jararaca e Ratinho.
Se tratará, adiante, mais da ligação de Herondes Cezar com o cinema. Mas perderá o leitor que não se deleitar com as outras histórias da criança, do adolescente e do adulto. A história da perda da virgindade, com a garota de programa Rosicleide – na época, dizia-se “puta” e “prostituta” – é divertida. Mas fica para os leitores do livro.
Descoberta do cinema
Herondes Cezar descobriu o cinema, por vias indiretas, ao ouvir sua mãe informar que havia visto um, possivelmente, faroeste. “Os homens do filme usavam chapéu de aba acanoada.” Aos 12 anos, recebeu notícia do filme “Nadando em Dinheiro”, de 1952, com Mazzaropi. Os informantes, ao comentarem as cenas, riam muito. “Ouvindo aquela moça bonita e estudada, pensei comigo que o cinema era mesmo uma coisa do arco-da-velha.”
Em 1951, aos 6 anos, Herondes Cezar conheceu o cinema, ainda sem saber ler. Dentro do cinema, ficou “desorientado”. “Nas altas paredes laterais, próximo do teto, havia pequenas janelas com cortininhas pretas. Eu, imaginando que o espetáculo surgiria através das janelas, olhava para um lado e olhava para o outro. Meu primo me disse, apontando a tela: ‘Olha pra lá. É lá que o filme vai aparecer’.”
O trailer exibiu um automóvel em movimento. “Olhei para trás, pensando que as imagens fossem uma projeção do que acontecia na rua em frente ao cinema.” O filme era “Bomba e a Pantera Negra”, de 1949.
Em três meses e meio, Herondes Cezar aprendeu a ler. Lembra-se da revista “O Cruzeiro” e de que se encantou com “uma reportagem sobre o escritor Ernest Hemingway caçando na África e fazendo pose com as feras abatidas”. Divertia-se com as piadas do Amigo da Onça, a criação “imortal” de Péricles, e com o humor corrosivo de Millôr Fernandes, na época Emanuel Vão Gogo.
Na segunda ida ao Cine Brasil, Herondes Cezar viu o faroeste “Rio Vermelho” (1948). Espécie de “romance de formação” cinematográfico, o filme mostra a excelência do diretor Howard Hawks e dos atores John Wayne e Montgomery Clift, pai e filho. O cinema, frisa o memorialista, “é o programa perfeito para quem teve infância solitária”.
O cinema se tornou a paixão da vida de Herondes Cezar. Vendia banana e frangos para conseguir dinheiro para comprar ingresso para ver filmes. “O cinema abriu meus olhos para o mundo. (…) O cinema acabou se tornando um distintivo pessoal na minha relação com as pessoas e o mundo.” As belas atrizes encantaram o jovenzinho. A espanhola Sarita Montiel, “que também cantava”, mesmerizou-o. Ela “brilhou” no filme “Serenata”, duelando com Joan Fontaine pelo amor do tenor e ator Mario Lanza. Anthony Mann dirigiu o filme.
Elvis Presley chamou a atenção de Herondes Cezar sobretudo pelos filmes “Balada Sangrenta”, “Estrela de Fogo” e “Amor à Toda Velocidade” (no qual também brilhou a atriz Ann-Margret).
Lembra-se de “Cine Paradiso”? Herondes Cezar viveu situação parecida, ainda que não igual. Ele se tornou “revisor de fitas” do Cine Brasil. “A revisão consistia em rodar a bobina de filme na enroladeira, girando a manivela com a mão direita enquanto tateava com a esquerda algum ponto de estrago da fita.”
Em 1962, viu o cantor e ator Frank Sinatra na televisão. Apreciou. Herondes Cezar, como quase todo menino do interior, em tempos idos, começou a trabalhar cedo, em várias atividades.
Um tio, para o qual trabalhava, era assinante de “O Estado de S. Paulo”, o “Estadão”. O jornal era usado para embrulhar as compras dos clientes. Mas, antes, Herondes Cezar lia as reportagens e as críticas de cinema. Estavam no seu radar os textos dos críticos Rubem Biáfora, Pola Vartuk e Paulo Emílio Salles Gomes. Foi sua, digamos, segunda universidade cinematográfica. A primeira foi mesmo o cinema – que o “educou”, ou melhor, Herondes Cezar se educou vendo quase todo tipo de filme.
Aos 16 anos, Herondes Cezar leu o primeiro livro, com duas histórias de José Alencar – “A Viuvinha” e “Cinco Minutos”. A professora de português Zilda Diniz Fontes disse ao adolescente que, se queria aprender a escrever, deveria “ler livros, muitos livros”. “Dali em diante não parei mais de ler.”
No interior, livros eram escassos, entre as décadas de 1940 e 1970, e os meninos e adolescentes se tornavam leitores de gibis. Herondes Cezar se tornou colecionador. A banca de revistas ficava perto do Cine Hollywood. “Aguardávamos ansiosos a revista ‘Cinemin’, que veiculava filmes americanos quadrinizados e nos dava a ilusão de ter a posse dos filmes”.
Morando em Piracanjuba, Herondes Cezar visitava Claudir Alves de Souza em Goiânia com o objetivo ver filmes. O amigo apresentou-lhe a atriz Ivanilde Alves, que atuou no filme “Seara Vermelha”, de 1963, e vive hoje nos Estados Unidos. O governo de Mauro Borges deu-lhe uma bolsa para estudar no celebrado Actor’s Studio, em Nova York. Numa visita a Goiânia, Ivanilde Alves levou o jovem para assistir à peça “O Apocalipse Segundo São João”, escrita e dirigida por Carlos Fernando Magalhães. Noutro dia, Claudir, Ivanilde Alves e Herondes se encontraram com o teatrólogo Otavinho Arantes num bar.
Em 1965, como funcionário do Banco da Lavoura de Minas Gerais, Herondes Cezar, incentivado pelo chefe Roberto Valim de Andrade, começou a ler o francês Antoine de Saint-Exupéry, o romeno Stefan Baciu, o sueco Pär Lagerkvist e o libanês Gibran Kalil Gribran.
Em Goiânia, Herondes passou a frequentar a livraria Bazar Oió, que ficava entre a Rua 3 e a Avenida Anhanguera. De vez em quando, tomava livros emprestados de João Ferreira Machado e Antônio Batista Arantes. Leu, nesta época, o romance mais importante de Machado de Assis, “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. Tornou-se amigo do “culto” Luiz Afonso Arantes, funcionário do Banco do Brasil. Instado por ele, Herondes Cezar fez o curso Normal e se tornou professor no Colégio Estadual de Piracanjuba. Deu aulas de português, de literatura brasileira e de literatura portuguesa.
O agrônomo Creonon da Silva Moreira, chefe do escritório da Associação de Crédito e Assistência Rural (Acar), indicou Herondes Cezar para redigir textos para a “Coluna Municipalista”, do jornal “O Popular”, de Goiânia.
A freira espanhola Izabel López Serrano presenteou Herondes Cezar com o livro “O Fenômeno Humano”, do filósofo francês Teillard de Chardin. Depois, sugeriu que lesse “Liberdade Sem Medo”, de Alexandre Neill, da escola Summerhill.
Por ser amante de cinema, Herondes Cezar se aproximou de Reinaldo Silva, o Nadinho, projecionista do Cine Jubara que sabia muito de cinema.
Em 1969, Herondes Cezar se tornou funcionário do Banco do Brasil, trabalhando ao lado do amigo Antônio Luiz Pegorer. O BB teria “civilizado” o crítico de cinema. Primeiro, porque o ajudou a desenvolver suas aptidões. Segundo, porque lhe ofereceu recursos financeiros suficientes para adquirir bens culturais (livros, discos). Pôde, inclusive, viajar (sua visita a Nova York rende ótimas histórias – o que sugere que, sem querer, é um “antropólogo participante”).
Pegorer emprestou-lhe livros, como “O Obelisco Negro” e “Nada de Novo no Front”, do alemão Erich Maria Remarque, “O Ventre”, de Carlos Heitor Cony, e “Com a Morte na Alma”, do filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre.
O diretor do BB Álvaro Cardoso de Faria (“meu melhor amigo”) conseguiu a remoção de Herondes Cezar de Piracanjuba para Goiânia, em 1973. Depois, em 1979, levou o crítico para Brasília. Na capital do país, trabalhou em várias áreas. O que mais lhe agradou foi ter sido redator do “Boletim de Informação ao Pessoal”, o house organ do Banco do Brasil.
Certa feita, por ter se relacionado com uma pessoa de esquerda, Herondes Cezar quase foi preso. Escapou. São Cristóvão, de quem é devoto, o “protegeu”. Aliás, nesta e noutras vezes.
Ator de João Bennio
O Cine Jubara, de Moacir Elias Machado, exibiu, em 1970, filmes dos quais João Bennio (1927-1984) participara – como “Tempo de Violência”, “O Diabo Mora no Sangue” e “Simeão, o Boêmio”. Herondes Cezar, convocado pelo juiz de Direito Orimar de Bastos para homenagear João Bennio, não apareceu, porque o Banco do Brasil o “segurara”. No mesmo dia, encontrou-se com o ator e diretor mineiro. “Bennio disse que o cinema é uma forma de narrativa visual, conta a história através de imagens. Por isso, nem toda boa história resulta num bom filme.”
João Bennio disse que iria filmar cenas de “O Azarento” em Piracanjuba, com o diretor de fotografia Dib Lutfi. Herondes Cezar licenciou-se do BB, por cinco dias, e se tornou auxiliar do cineasta. Aliás, trabalhou até como ator, fazendo o papel de um engenheiro. Orimar Bastos foi escalado para representar o governador. “Sobre o método de direção de Bennio, posso dizer que ele nos dava o mínimo de orientações. Ele sabia todas as falas de cor.” O filme chegou aos cinemas nacionais em 1974.
Nasce o crítico de cinema
Morando em Goiânia, Herondes Cezar conheceu Roberto Fleury Curado, colega de banco e sobrinho de Jaime Câmara, um dos fundadores da Organização Jaime Câmara. Depois de ter sido aprovado para Letras Vernáculas, fez vestibular para Direito na Universidade Federal de Goiás e se formou.
Em 1973, Herondes Cezar assistiu os filmes “O Delator”, de John Ford, “Crimes d’Alma”, de Michelangelo Antonioni, e “Umberto D.”, de Vittorio de Sica. Os filmes foram exibidos no auditório da Faculdade de Medicina da UFG. “Eu não cabia em mim de tão contente que estava. Eu era um pinto no lixo.”
Durante a mostra, conheceu Romildo Sant’Anna, que fazia mestrado em literatura. Depois, Herondes Cezar participou de um curso de teatro dado por Sant’Anna e ganhou a maior nota – 8,5 –, empatado com Tahis, estudante de Jornalismo. O professor cinema da UFG Hélio Furtado do Amaral incentivou seus alunos de Jornalismo a fazerem o curso.
Hélio Furtado do Amaral, que tinha o hábito de andar com uma pilha de jornais no sovaco, convenceu uma rede de cinema a reservar uma sala para “filmes de arte”. O Cine Rio, em Campinas, começou a exibir filmes de qualidade, como “Persona”, de Ingmar Bergman, “A Bela da Tarde”, de Luis Buñuel, e “Morte em Veneza”, de Luchino Visconti.
Instigado por Hélio Furtado do Amaral, Herondes Cezar escreveu uma crítica a “Pocilda”, de Pier Paolo Pasolini. O professor publicou o comentário no “Caderno 2” de “O Popular”. Depois, recebeu cachê, o primeiro, por um texto sobre o cineasta Lima Barreto, autor de “O Cangaceiro”, filme de 1953. Nascia o crítico de cinema.
Em seguida, Herondes Cezar se tornou crítico de cinema do jornal “Top News”. Assinava os artigos – pelos quais era remunerado – como Nicola Palumbo.
Cineclube Antônio das Mortes
O estudante de Física Ricardo Musse – hoje filósofo e professor da USP – havia decidido fundar um cineclube e estava procurando parceiros. “Dois estudantes de Medicina, Leonardo de Camargo e Antônio Carlos Gusmão [hoje pediatra], vinham projetando filmes no auditório da Faculdade de Medicina da UFG, mas queriam descontinuar suas atividades cinéfilas. Ricardo Musse, Herondes Cezar, Joaquim de Moura Filho, Lourival Belém, Benedito de Castro Ribeiro, Mariângela Berquó e Judas Tadeu Porto decidiram criar o Cineclube Antônio das Mortes, em 1977. Ricardo Musse era diretor e projecionista. Herondes Cezar era o tesoureiro, o vendedor de ingressos e o coordenador dos debates. Lisandro Nogueira chegou depois e “se tornou o principal líder do cineclube”.
Mais tarde, Ricardo Musse, intelectual notável, redigiu o prefácio de “Era uma Vez o Cinema”, livro de Herondes Cezar.
O crítico de cinema perspicaz e muito bem informado “esconde” o prosador. Herondes Cezar é contista e participou da antologia “O Conto Candango”, editada pelo poeta, prosador e crítico literário Salomão Sousa, e da antologia “Todas as Gerações – O Conto Brasiliense Contemporâneo”, organizada pelo poeta, prosador e crítico literário Ronaldo Cagiano. Ele revisou livros de poesia de José Godoy Garcia.
O que faz de Herondes Cezar um grande crítico de cinema? Primeiro, o fato de ter visto centenas de filmes, e com atenção redobrada, percebendo detalhes que os cinéfilos não especializados deixam escapar. Segundo, o amplo conhecimento de como se produz e se dirige um filme. Terceiro, o fato de ser bem informado sobre os atores e diretores (e até sobre a música). Por fim, depois do conhecimento técnico, o que torna sua crítica soberba é a paixão pelo cinema. Não à toa o crítico Lisandro Nogueira costuma sugerir que se, ao nome de Herondes Cezar for acrescentado Cinema – Herondes Cezar do Cinema –, ninguém, nem o Ricardo Musse e o Lourival Belém, discordará.
Herondes Cezar escreveu críticas de cinema percucientes para o Jornal Opção, arroladas no final do livro. E certamente voltará a escrevê-las. Porque tem o quer dizer, e sempre o faz com extrema pertinência e, sim, prazer.
Há várias histórias belas no livro deste homem inteligente, sensível e modesto – todas muito bem contadas –, mas devo deixar a maioria delas para os leitores de suas memórias.
Algumas outras personalidades citadas no livro: o advogado Ismar Estulano Garcia, o crítico literário e poeta Antônio Geraldo Ramos Jubé, a poeta Cora Coralina, o médico, poeta e diretor de teatro Carlos Fernando Magalhães, o publicitário e escritor Hugo Brockes, a psicanalista Candice Marques de Lima, o bardo Carlos William Leite, o poeta e prosador Brasigóis Felício, o escritor Miguel Jorge, o escritor e historiador Modesto Gomes, a poeta Yêda Schmaltz, o professor Emanuel Augusto Perillo, o professor Sebastião Maia de Menezes, o editor Taylor Oriente, o humorista Phaulo Gonçalves, o poeta Luiz de Aquino.