A obra do acadêmico brasileiro, radicado nos Estados Unidos, abre picada para outros tantos livros que poderão testar premissas sobre o discurso político

Marcelo Franco

Escrever textão sem nexo tem suas vantagens: as (merecidas) críticas serão poucas…

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Li “Ele em Nós: Retórica e Antagonismo Político no Brasil do Século XXI”, de Idelber Avelar, e aqui confesso uns três ou quatro espantos.

Listo-os:

1 — é um livro que tenta compreender o Brasil recente pela análise do discurso político, categoria que, mesmo velhinha, parece ligeiramente esquecida aqui no Berço Esplêndido (há um bocado de livros sobre “análise do discurso” como teoria; não tantos, contudo, de estudos de caso com esse referencial, ou assim me parece quando miro o horizonte desde onde me encontro, no Planalto Central — ressalto, todavia, que sou míope a não mais poder —; como atestado de idade, pensemos apenas em Victor Klemperer e seu estudo da propaganda nazista a partir de uma linguagem própria, à qual chamou, em latim, “Lingua Tertii Imperii”);

2 — o fato de que Avelar, mesmo oriundo da academia, escreva sem aquele patoá acadêmico ininteligível, patoá que é doce herança frankfurtiana, nunca itabirana;

3 — evidentemente, como a análise se dá pela retórica, louvo a coragem de não se jogar para a plateia e os pares, descartando-se a assunção prévia de conceitos fixos e palavras-mantra como “golpe” e que tais (imagino que as redes sociais do autor recebam, por isso, um rosário de xingamentos diários);

4 — a lembrança, nem sempre presente em análises políticas, de que a existência de relação de causa e efeito apenas como consequência temporal não é algo com que se possa trabalhar de modo lógico (o que o faz evitar aquela falácia de nome curioso, “post hoc ergo propter hoc”, comum noutras pragas, digo, plagas).

Idelber Avelar: pesquisador brasileiro radicado nos Estados Unidos | Foto: Reprodução

Três ou quatro espantos, eu escrevi? Há mais, há mais:

5 — tudo somado, temos a construção de uma análise do período 2013-2020, e mesmo de épocas anteriores, muito mais coerente do que outras que se leem aqui e ali;

6 — a proeza de se escrever um livro durante a epidemia — não sou acadêmico, claro está, mas mesmo assim a minha produção no período me vexa: respirei, paguei impostos, assisti a filmes idiotas e bebi algum vinho. E, não menos assombroso, nota-se a gigantesca quantidade de reportagens, livros e artigos pesquisados para a obra final — desacostumei-me com isso, pois no meu métier, digamos assim, boa parte da produção acadêmica repete o que já se dissera antes, levando o dito e o repetido a se comunicarem e, num moto-contínuo de citações, lantejoulas, rapapés e salamaleques, justificarem-se a si mesmos.

O livro fez formigar em mim as células cinzentas adormecidas pelos filmes, impostos e vinhos; como “o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a voar”, cometi um tortuoso e enovelado brainstorming (não uma resenha, que demandaria mais certezas e menos dúvidas de minha parte). E é também brainstorming porque o livro bole com ideias que me são caras (“bole” é de lascar, mas minhas sinapses não encontrarão, hoje, algum sinônimo com mais eufonia). Antecipo-me, assim, às reclamações e cartinhas ao editor: provavelmente, escreverei (escrevi) mais sobre outros assuntos e não acerca do livro, usando-o como liga para amarrar pensamentos um tanto desconexos, tão desconexo quanto eu me sinto neste dia chove-não-chove, em que o bacalhau devorado ainda não me assentou bem.

O livro de Idelber Avelar, afirmo — agora com certeza —, é um marco teórico excepcional para outros tantos livros que poderão testar premissas semelhantes, baseadas na retórica política. Que ele siga o seu caminho e gere bons frutos, pois a seiva é boa.

(Ah, sim, como meus dois ou três leitores haverão de notar, quase não uso aí abaixo exemplos políticos brasileiros, isso para evitar os chutes abaixo da cintura e os dedos nos olhos que costumam acompanhar qualquer expressão mais clara de ideias e opiniões.)

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Pesado, medido e lido o danado do livro, admito: fosse eu acadêmico e houvesse menos vinho e filmes idiotas no mundo, talvez eu espalhasse uns poréns e todavias entre os espantos. Por exemplo, acerca da estrutura discursiva brasileira construída sobre hipérboles (“Brasil Grande”, entre outras), reconheço que gostaria de ler alguma comparação com outros países, porque hipérboles constituem o cimento normal de boa parte de qualquer exercício político, uma espécie de andaime retórico comum aos nossos representantes, da Austrália à Groenlândia e não só do Oiapoque à Marilena Chauí (eu sei, eu sei, o livro não se propôs a isso).

Já no capítulo sobre “lexicocídio”, neologismo cunhado por Idelber para narrar o esvaziamento de palavras por abandono ou sobreuso, “fascismo” é o termo que logo se destaca como exemplo (o lugar de honra não é imerecido, veremos adiante). Entretanto, algumas — poucas — palavras e expressões são igualmente postas de moldo solto no livro, como “extrema” (para qualificar parte da direita), “populismo” (usado à esquerda e à direita) e “fake news”, isso apesar de, logo na primeira página da introdução, lermos que “as palavras importam” e que há necessidade de rigor no trato com a linguagem, mesmo que isso signifique a perda de parte de interlocutores. Nada grave, claro: são manias minhas de quase-velho que costuma ler com lupa. E não há, ou não me recordo de ter lido, a palavra genocídio no livro, outra que se tornou um significante oco em busca de significados (para que me poupem de linchamentos, anuncio que pedir rigor no uso de “genocídio” não equivale a concordar com a gestão da crise epidêmica). “Populismo”, “extremo”, “bibliocida” (alegada característica da coalização vencedora da eleição de 2018), “fake news” (en passant, registre-se), “negacionismo” (também, creio, somente de passagem, no epílogo) e, por que não, “genocídio”: seis significantes vazios em busca, à moda de Pirandello, de um autor, ou seja, de quem lhes traga seus significados perdidos. Claro, eu bem o sei: se os significados com os quais concordo estivessem no livro, eu seria, no lugar de Idelber, o seu autor — sua proposta foi outra.

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“Bibliocida” merece um pouquinho de musculatura semântica. Um desvio, por assim dizer, porque o termo não é central em “Eles em Nós”. Sem problema: um bom livro também nos abre veredas de pensamento nem sempre antevistas pelo autor, justamente o que se dá aqui.

Se não equívoco, “bibliocida” é um termo redutor, tanto quanto “anti-intelectualismo”. Bem sabemos que há mesmo quem busque as trevas, o que não impede que exista quem reaja contra governos de tecnocratas, sinônimo de descarte da arena política, lugar próprio para que os desacordos morais se esmurrem e estapeiem. Ainda não chegamos ao ponto de desistir de eleições para entregar o governo ao Conselho Federal de Medicina e à Faculdade de Economia da USP.

Há então graus, infere-se, de bibliocídio, ou antes, nem todo anti-intelectualismo é bibliocídio. É aqui que também se percebe o descuido, em outros livros, com o termo “populismo”, que tomou a mesma direção de “fascismo”, uma estrada rumo à imprecisão que George Orwell já notara na década de 40. Para o sociólogo Frank Furedi, por exemplo, a democracia ganha com o que se chama populismo; o sentimento antipopulista de intelectuais e articulistas de jornais, bem notou Furedi em “Democracy Under Siege”, equivale ao pensamento antidemocrático de um aristocrata inglês da primeira metade do século 19, porque se acredita que a democracia seria apenas um meio e não também um fim em si mesma, daí vindo a crítica aristocrática contra os “excessos democráticos”, crítica hoje abrigada sob o manto menos chamativo da rejeição ao que dizem ser “os excessos populistas”. Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, à esquerda, também tentaram compreender o populismo (ou “populismos”) com bons olhos, por exemplo. Os jornais, não obstante, berram diariamente: está tudo errado, a democracia morrerá amanhã por uma morte de mil cortes (cortes populistas, ao que parece). Dito de outra maneira: como dar um sentido unívoco e sempre negativo a “populismo” se Jan-Werner Müller e outros teóricos estão longe de pisar em chão comum? Se existem “quatro peronismos” (Alejandro Horowicz) e “três kirchnerismos” (Matías Kulfas), vamos nos contentar apenas com esse populismo que nos empurram como uma das pragas bíblicas, bem ali entre gafanhotos e águas corrompidas? Não menos relevante, foi Millôr Fernandes quem apontou a nossa tendência de pretender “revogar o povo”?

Bola pra frente. O canadense Mathieu Bock-Côté também mostra, por outros meios (“O Império do Politicamente Correto”), que a reação contra alguns intelectuais pode ser um tipo de luta contra a promoção da infalibilidade de teorias gestadas sabe-se lá como — e as consequentes ações políticas delas advindas. Nas últimas décadas, a mídia e a academia transformaram o debate político num monólogo, e quem tem o poder de moldar o espaço cívico público e dele expulsar aquele que quebrar “códigos” exerce a real hegemonia ideológica. Não à toa, hoje ouvimos coisas como “lugar de fala”, “microagressão”, “cultura do cancelamento” e “apropriação cultural”, técnicas, em grande parte, para impedir qualquer discussão política não pré-formatada (por isso, dada uma população desconfiada, o poder prescritivo das mídias vai se perdendo com o aparecimento das redes sociais — e aqui fica explicada a virulência dos ataques contra as tais “fake news”, expressão imprecisa e larga o bastante para abranger notícias realmente falsas mas também qualquer fato ao qual a mídia tradicional não tenha imposto o seu selo de veracidade e respeitabilidade, bem como a criação de “fact checkers”, no fundo uma estratégia para garantir o monopólio da credibilidade). “Não é que os processos por bruxaria tenham desaparecido, apenas se modernizaram”, resume Bock-Côté — e ele ainda afirma: “A mídia distribui os papéis entre os heróis e os vilões, escolhe seus campeões, designa os que deverão sofrer de má reputação, distingue os políticos socialmente aceitáveis dos que não o são, os filósofos eminentes e os polemistas de categoria inferior, os intelectuais que inspiram confiança e aqueles cujas ideias são rançosas”. Lutar contra esse estado de coisas talvez seja um “bibliocídio” aceitável.

Vê-se que tudo conspira contra quem se engaje, pensa Bock-Côté, na contranarrativa prescrita por uma estrutura midiática que autoriza até mesmo quem deva ser o “oponente respeitável”, um tipo que nunca sairá das linhas traçadas à sua volta — quando se tem o poder de afirmar o que é ou não aceitável num debate, sair dos marcos regulatórios é garantia de ser tratado com desdém ou até mesmo como bufão. Não duvidemos: parte do que assistimos atualmente no mundo é uma tentativa de reestruturação do espaço público para expulsar a parcela da população que se fez audível (com ideias boas ou ruins, o que não vem ao caso aqui). Quer me parecer, então, que a mídia e a academia, em pânico, tentam redefinir os “códigos de respeitabilidade” que moldam o debate cívico — daí o motivo de se teorizar tanto sobre o espaço público, criando-se catracas morais para o acesso a ele. A conversa dita democrática é muito menos aleatória do que parece; quando ela foge das linhas demarcadas, ouve-se um berro de desespero: é preciso “recuperar a razão”, diz-se, justamente para colocar mais cal nas linhas do campo — e por “razão” deve-se entender apenas um único modo de compreender o mundo.

Por sua vez, Jeffrey K. Tulis, da Universidade do Texas, apontou, em “The Rhetorical Presidency”, que nos Estados Unidos, pelos menos desde Woodrow Wilson, os presidentes livraram-se das amarras formais de uma presidência “dignificada” e distante para conversarem ao pé do ouvido com o povo. A presidência, antes encarnada num paletó e numa gravata, transformou-se numa conversa ao pé da lareira, e foi Wilson, democrata (portanto não trazendo, para alguns, o pecado original de ser republicano), quem legitimou os meios que Donald Trump utilizou de modo exagerado e com certa eficiência — se a televisão tornou os presidentes mais sujeitos a roteiros previamente aprovados, os tuítes de Trump pareciam o mostrar tal como ele é, com alguma sinceridade, mesmo que se diga ser uma “falsa sinceridade” (para usar um oximoro — outra categoria estudada por Avelar), plenamente adequeada à ideia de que nossos líderes devam ser sempre populares; a linha entre ser popular e ser populista, não nos esqueçamos, depende da cabeça de cada cientista político e, obviamente, das preferências ideológicas de jornalistas. Vale dizer: também a “presidência retórica” torna borrado o que se entende por populismo.

Daí podermos afirmar que exista certa desconfiança ante tantas certezas que se despejam no rio político, e separar o esgoto tratado nem sempre é tarefa fácil. Como então ter “bibliocídio” como conceito conglobante de atividades distintas? De vez em quando, nunca é despiciendo lembrar, artigos deliberadamente absurdos, escritos para comprovar como parte da ciência foi deturpada pela ideologia, são aceitos por revistas antes sérias, cegas que estão ao mundo real. O mais famoso, hoje mitológico, foi o artigo do físico Alan Sokal propondo que a gravitação quântica seria uma construção social e linguística. Foi publicado sem cortes. Sokal mais tarde escreveria, com Jean Bricmont, “Imposturas Intelectuais: O Abuso da Ciência pelos Filósofos Pós-Modernos”, esticando a sua ideia inicial. Peter Boghossian, James Lindsay e Helen Pluckrose também conseguiram publicar vários artigos desse tipo; em um deles, afirmavam que o pênis, outra “construção social”, seria a força responsável pela mudança climática; em outro, abordaram a “cultura canina do estupro”. O campeão da categoria talvez tenha sido “Our Struggle is My Struggle”, publicado em “Affilia”, uma reescrita do capítulo 12 de “Minha Luta”, de Hitler, em que os autores substituíram “nacional-socialismo” por “feminismo” e “judeus” por “privilégio” — e o artigo foi igualmente publicado.

Evidentemente, Karl Popper já nos ensinou (“A Lógica do Conhecimento Científico”) sobre a falibilidade do conhecimento: uma teoria ainda não refutada está apenas corroborada, admitindo-se ainda que poderá ocorrer sua refutação por testes mais minuciosos. O curioso é que, justamente onde a possibilidade de testes mais minuciosos é menor, existam mais declarações de certeza — assim, se nas ditas ciências humanas ou sociais há tantas declarações de certeza, infere-se que talvez seja porque certezas trazem poder, algo que os ideólogos, inclusive aqueles instalados na casta administrativa, compreendem muito bem.

Disso decorre que, se antes se combatia a democracia até mesmo de forma armada, hoje se questiona a sua autoridade moral, pondo-se em cheque a capacidade de todos nós de pensar e agir responsavelmente. Furedi, com acerto, aponta que o pânico em relação a uma onda populista levando à “morte” ou ao “fim da democracia”, títulos comuns de livros neste nosso amedrontado século 21, é, no fundo, muito mais ansiedade pela perda da autoridade das elites — nós, cidadãos, seriamos incapazes de atuar de acordo com a sabedoria dos nossos superiores morais e intelectuais. E, lembrei-me agora, o jornalista David Halberstam descreveu, em “The Best and the Brightest”, como acadêmicos e intelectuais instalados nos governos Kennedy e Lyndon Johnson tiveram ideias “brilhantes”, geralmente contrárias ao bom senso, que pioraram bastante a situação dos Estados Unidos no Vietnã.

Sim, há perigo na esquina para a democracia; ele vem em parte, creio, da animosidade contra o “kratos” (poder) do “demos” (povo). Colecionador de livros antigos que sou, ainda assim tenho dificuldade em reduzir “bibliocídio” a um significado unívoco.

(Pois é: uma tema não central em “Eles em Nós” me trouxe até aqui: o pensamento parece uma coisa à toa…)

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Voltemos a “fascismo”, que Avelar usa corretamente como um exemplo de lexicocídio. Outro desvio que tomo, porque o termo é exemplificativo no livro e não um dos seus temas.

Nesse pântano de conceitos em que vivemos, é digno de nota que até Umberto Eco, logo ele, professor de semiótica, tenha confundindo alhos com bugalhos numa conferência que proferiu, creio que em 1995, na Columbia University, depois transformada em livro (“O Fascismo Eterno”, devidamente relançado, pós-Trump, em vários países). O italiano afirmou que o termo “fascismo” seria bastante adaptável porque podemos retirar algumas características de um regime fascista e ele permanecerá tão fascista quanto era antes. Eco fornece, assim, uma lista de características do “fascismo eterno” e nos assegura de que qualquer uma delas já cria uma “nebulosa fascista”. O “culto à tradição”, por exemplo, ou “o apelo às classes médias frustradas”. Notaram? Um conservador tradicionalista será ipso facto fascista. Uma crise econômica real, que gere frustrações reais na classe média, será utilizada por líderes fascistas com fins autoritários e divisivos. E o italiano, homem de seu tempo, não se esquece de Freud: os “jogos de guerra fascistas” se devem, escreve ele, a uma invidia penis permanente. Como Eco desenvolve as características que cita com exemplos quase sempre patológicos, é fácil imaginar o leitor impressionável encontrando ecos — digamos assim — fascistas em qualquer governo ou maluco de esquina. Para nos convencer dessa estranha tese, Eco, claro, logo de cara dá uma carteirada ocular: ele esteve lá, na Itália de Mussolini — uma forma não muito sutil de dizer que sabe mais.

O historiador Emilio Gentile, em “Chi è Fascista”, contrapõe-se a Umberto Eco. Na tradução espanhola: “Introducir la eternidad en la historia humana, atribuir la eternidad a un fenómeno histórico, aun con las mejores intenciones, implica una grave distorción del conocimiento histórico. Sin considerar, además, que este atributo de eternidad se ha reservado solo para el fascismo, porque no circulan tesis sobre el ‘jacobinismo eterno’, el ‘liberalismo eterno’, el ‘nacionalismo eterno’, el ‘socialismo eterno’, el ‘bolchevismo eterno’, el ‘anarquismo eterno’, etcétera. En realidad, la tesis del eterno retorno del fascismo se basa en la utilización de analogías, que por lo general solo producen falsificaciones del conocimiento histórico”. E dá o xeque: “Si existe un fascismo que vuelve perpetuamente, esto quiete decir que el antifascismo está destinado a una continua derrota”.

Desviei-me? Desviei-me. É hora de voltar à vereda principal do livro de Idelber Avelar.

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Dito tudo isso, o livro mostra a que veio e, assim, também confesso: houvesse em mim engenho e arte, eu partiria dele, de seus marcos teóricos, para outras análises que, tanto quanto a pita, abundam no exterior e resistem a dar as caras, de modo sistemático, entre nós — como escrevi, livros da qualidade de “Eles em Nós” abrem outras tantas veredas de possibilidades analíticas (todo conhecimento é cumulativo, pois não?). Retórica e medo na política brasileira, digamos — por exemplo, Frank Furedi, de novo ele (um tipo bastante polêmico, reconheço), escreveu o excelente “How Fear Works: Culture of Fear in the Twenty-First Century”), que poderíamos ter como marco para o estudo da nossa prática eleitoral. Talvez um dicionário de significantes vazios que teimam em se esvaziar ainda mais a cada novo artigo na mídia tradicional. Que tal o discurso jurídico brasileiro condicionado por variáveis políticas? “Pacto de amnésia”, expressão que está em “Eles em Nós”, ou supressão do discurso, para ficarmos com “discurso”, como algo nem sempre condenável no contexto nacional — eis outro tema. Mais: o papel das editoras que nos trouxeram, com anos de atraso, livros de pensadores liberais (no sentido clássico) e conservadores, gente como Roger Scruton, Russell Kirk, Thomas Sowell, Michael Oakeshott e mais outros tantos, na formatação de uma nova retórica política brasileira deste século 21. Ou ainda o léxico como campo de batalha em que vicejam tribunais de exceção na mídia (não no sentido jurídico, portanto) para “crimes” de fala instituídos depois das próprias falas serem proferidas. As possibilidades são várias, bem veem; contudo, eu sou, ai de mim, um pobre homem da Póvoa do Varzim, digo, de Palmeiras de Goiás — pensarei nesses temas apenas sob o chuveiro e jamais cometerei um livro sobre qualquer um deles.

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Pensemos no medo e no mencionado “How Fear Works: Culture of Fear in the 21st Century”, de Frank Furedi. O medo, escreve ele, tornou-se tão politizado que não nos perguntamos se devemos ou não recear algo, mas sim de quem ou do que temos de sentir medo. Em termos eleitorais, claro está, é um boa estratégia inculcar nos eleitores algum medo do adversário político. Os psicanalistas diriam que esse inculcado medo das políticas públicas do adversário seria um caso de introjeção. Façamos um teste e tentemos nos lembrar da última campanha eleitoral em que não ouvimos a palavra medo — eu não consigo me recordar. Obviamente, como vivemos numa época em que as campanhas são permanentes, é preciso incutir esse medo também de modo permanente.

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Dissecando um pouco mais essas tantas possibilidades, vejamos a retórica jurídica, base daquilo que se convencionou chamar ativismo judicial. O campo é fértil para o estudo da sua interseção com a política. Por exemplo, essa retórica trabalha com categorias sobre as quais se impõe algum grau de infalibilidade: nunca se pode deixar de obedecer uma constituição e é recomendável a existência de uma corte constitucional com poder de declaração de inconstitucionalidade de leis aprovadas por maiorias parlamentares (vale dizer: pelos representantes do povo democraticamente eleitos). Sem questionamentos? Não exatamente. Até juristas já duvidam dos poderes infalíveis das cortes constitucionais, como Jeremy Waldron. (A propósito: logo chegaremos a sete mil ações diretas de inconstitucionalidade e cerca de mil arguições de descumprimento de preceito fundamental, dois instrumentos com os quais o Supremo Tribunal Federal trabalha, ajuizadas desde 1988.) Quanto à obediência à Constituição, deixo aqui uma pergunta feita por Louis Michael Seidman em “On Consitutional Desobedience”: “The test for constitutional obligation arises when one thinks that, all-things-considered, the right thing to do is X, but the Constitution tells us to do not-X. It is only in this situation that constitutional obligation really has bite. It is only then that if we obey the Constitution, we are doing so for the sole reason that we are bound to obey. But who in their right mind would do this? If we are convinced after taking everything into account that one course of action is right, why should we take another course of action just because of words written down on a piece of paper more than two hundred years ago?”. O pensamento…

Na seara do discurso jurídico, não há somente essas veredas. Ainda está para ser escrita a história da sustentação dessa retórica que habilita juristas como jogadores do time político. Um roteiro da trajetória para tanto, seguido por muitos países a partir de 1945 (outro livro que não escreverei): 1) faça constituições longas;2) enche-as de princípios amplíssimos, como “dignidade”, uma categoria moral e até religiosa que tem contornos jurídicos borrados; 3) aumente-as com o que se chama “bloco de constitucionalidade”: tratados internacionais e afins; 4) dê ao tribunal constitucional inúmeros instrumentos de controle de constitucionalidade para aferir a validade de normas com esses padrões gigantescos; 5) junte uma pitada de Direito Constitucional comparado, hoje chamado “diálogo entre cortes constitucionais”, aos padrões decisórios nacionais; 6) crie técnicas de controle temporal e de conteúdo das decisões das cortes constitucionais, como modulação e sentenças aditivas (termos técnicos; ao Google, portanto); 7) transforme situações políticas em princípios jurídicos duvidosos, como “proibição do retrocesso”; 8) ensine aos estudantes de Direito que nada disso possa ser repensado.

Com uma pitada de pânico e outra de ânimo tíbio, aguardaremos, assim, que ações constitucionais nos salvem de nós mesmos e nos encaminhem para “o lado correto da História”, certos de que “não se pode tolerar a intolerância” (desde que “intolerância” seja definida de modo amplíssimo, claro) e de que o animal que criou o Renascimento, a polifonia e foi à Lua seja incapaz de funcionar sem um tutor judicial.

Um livro a ser escrito, não? Quem se habilita?

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Desviei-me novamente. De volta à vaca fria, então. Num dos capítulos do livro de Idelber Avelar, a retórica construída sobre oximoros é o alicerce para a análise do tratamento político da questão amazônica (“oximoro” sem acento mesmo, rimando com nome de juiz). Há achados preciosos, datas certas para a escalada de discursos contraditórios e consequências concatenadas. Quero crer, porém, que a forma como a ideia foi exposta dá a entender, talvez não de modo intencional, que estaríamos diante de fenômenos e epifenômenos eminentemente brasileiros, quando me parece que a retórica política não prescinde, em nenhum lugar, de certo chiaroscuro ambíguo e mesmo contraditório. Haverá sempre um “inimigo” a caçar pela manhã, daí o “medo” como categoria também discursiva, podendo o mesmo “inimigo” ser colega de caçada, e não um alvo, à tarde. Se alguns oximoros chegam à exaustão, como indica o livro, outros surgem para a manutenção de um sistema de antagonismo, sempre agravado pela ideia de política como uma luta pura entre Bem e Mal.

Assim como o senhor Jourdain de Molière, que famosamente se espantou ao descobrir que falara em prosa a vida toda, ainda há quem consiga “faire de la prose sans le savoir” e se espantar quando percebe que age de modo contraditório em política, porque, bem, porque a falta de coerência é tida como feia doença a ser escondida da família e de amigos.

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Adiante e pé na tábua que São Paulo não pode parar. Graças aos céus da Louisiana, onde o autor mora, não houve, em “Eles em Nós”, o já costumeiro chororô contra aquilo que se diz ser “polarização”, palavrinha que aparece em doze de cada dez livros da categoria “ciência política apocalíptica”, assim mesmo, rimada para que eu não tenha de escrever “ciência política escatológica”, pois a ambiguidade de “escatologia” nos levaria a longas vertentes da prática política neste nosso Impávido Colosso. O livro é perpassado pela ideia de “administração de antagonismos”, que pressupõe, vivas e alvíssaras!, a existência da afamada polarização — de certo modo, o exercício político é naturalmente polarizado.

Sendo polarizada, estranha-me (ou fica justificada?) a retórica política que, à moda de Robespierre e do Arroz Cristal, se creia pura e incorruptível (corrupção não somente em termos financeiros, bem entendido). Nesse sentido, se Trump foi errático, para alguns Obama era uma pose que discursava. Bill Clinton era dado a certa indisciplina priápica no Salão Oval, John Kennedy idem (e Kennedy também usava medicamentos não prescritos), Jimmy Carter microgerenciava toda a máquina do governo, Nixon abusava do álcool, Woodrow Wilson sofreu um derrame incapacitante no seu segundo mandato e deixou o governo meio que nas mãos da esposa, Ulysses Grant — o brilhante general da Guerra Civil — passou seu período como presidente entornando umas e outras. Somos nós todos umas carcaças defeituosas e costumamos calcular, na hora do voto, o preço da manutenção dos anéis e dos dedos, daí porque alguns governos, mesmo parecendo uma festa estranha e com gente esquisita, possam ser suportados estoicamente para que apenas os anéis nos sejam levados. Realpolitik na veia não consta do CID como doença psiquiátrica.

Mas a tal polarização é o alfa e ômega de todos os nossos problemas, dizem. Para que a minha caixa de comentários não se transforme num canal do Tietê, usarei novamente exemplos de outros países, não do Brasil. Nos Estados Unidos, essa utópica vertente apocalíptica lamenta o atual “bipartidarismo radicalizado”, como se todos devêssemos nos dar as mãos e cantar “Kumbaya” (música de acampamento) em torno de uma fogueira e sob o céu estrelado (e a imagem de quem nem sempre divergências se resolvem assim é — espanto! — de Obama). O problema: há os que dizem que o país esteja perigosamente dividido, os que dizem que essa divisão já existia nos anos 90, aqueles que a levam à década de 60 and so on. Todo têm razão, digo eu. Nos anos 60 e 70, houve os assassinatos de JFK, Martin Luther King, Robert Kennedy e Malcolm X, Watergate, dois juízes indicados por Nixon para a Suprema Corte rejeitados pelo Senado, bombas em bancos e correios explodidas pelos Weathermen e outros grupos, o país sem acordo sobre a Guerra do Vietnã, a crise do petróleo, uma grande degradação urbana e reféns no Irã (parte dessa história está contada em “Days of Rage: America’s Radical Underground, the FBI, and the Forgotten Age of Revolutionary Violence”, de Bryan Burrough). Na década de 50, o presidente republicano Dwight Eisenhower era criticado por seus colegas de partido e tachado de ser “liberal”, o que o fez entrar num casamento político de conveniência com alguns democratas moderados. Franklin Delano Roosevelt nunca teve o apoio total dos americanos à participação dos Estados Unidos na Segunda Guerra antes do ataque a Pearl Harbor; antes disso, travou uma violenta guerra com a Suprema Corte, vezeira em declarar inconstitucionais as leis do New Deal (elaborou então um plano para aumentar o número de juízes, o que foi visto como uma interferência extrema). Que tal a eleição de 1912? Temos Theodore Roosevelt, candidato por um terceiro partido, dividindo os votos republicanos e permitindo a vitória do democrata Woodrow Wilson. Ah, sim, a Guerra Civil de 1861-1865 foi o paroxismo da divisão política americana, evidentemente, e depois dela o presidente Andrew Johnson salvou-se do impeachment por um voto. Em 1800 ocorreu a disputa entre Thomas Jefferson, John Adams e Aaron Burr pela presidência; Burr e Jefferson, como se sabe, empataram no colégio eleitoral, o que levou a disputa à Câmara de Deputados, onde somente na 36ª votação Jefferson se elegeu (tem quem pense que essa escolha evitou uma guerra civil). Há mais: Michael J. Faber afirma que os debates sobre a Constituição americana de 1787 foram “a mais divisiva guerra de palavras na história dos Estados Unidos (“An Anti-Federalist Constitution: The Development of Dissent in the Ratification Debates”). A Europa, por sua vez, viveu crises e guerras cada vez maiores entre 1900 e 1945 e depois suportou a tensão da Guerra Fria até 1989 (em 1961, tanques russos e americanos se encararam durante três dias em Berlim); há mesmo quem diga que 1914-1989 foram os anos de uma guerra prolongada. Tempos plácidos jamais existiram, bem se vê; no entanto, lemos todos os dias frases como “os Estados Unidos jamais estiveram tão polarizados”, talvez porque a pregação para a união de gente com ideologias díspares costuma ser pele de cordeiro para que se acuse o lado oposto — qualquer um — de radicalismo.

O belo poema de Kaváfis “À Espera dos Bárbaros” sempre lembrado em situações de falsas emergências nacionais, talvez caiba aqui, ressalvada a diferença de que Aníbal — os bárbaros, portanto —, a julgar pelos berros de qualquer oposição, a atual, a de 2015 (impeachment) ou a de 2005 (Mensalão), não está “ad portas”, mas já dentro de nossos domínios (os bárbaros são, dizem-nos, a maioria que elege aquele em quem não votamos — na famosa frase de Hillary Clinton sobre os eleitores de Trump, “essa gente desprezível”, ecoando, sem o saber, os “salauds” de Sartre). Como Kaváfis, contudo, também temos de nos perguntar: “Sem bárbaros, o que será de nós? / Ah! Eles eram uma solução”.

(Aposto minha coleção completa de Freud que o número de livros “eis-aqui-toda-a-verdade” — não é o estilo de “Eles em Nós”, que fique claro — crescerá até as eleições de 2022, depois até 2026, 2030… Sem bárbaros, o que será de nós?)

Foi por isso, como crítica à hipérbole do adversário como inimigo a ser abatido e à outra hipérbole da afirmação da pureza de ideias na própria ideologia política que se adota, que Valéry Giscard d’Estaign disse ao seu adversário socialista François Mitterrand, nas eleições presidenciais francesas de 1974, uma frase que já nasceu famosa: “O senhor não tem o monopólio do coração”. Não tinha, mas cada campo político segue nos servindo os mesmos pratos utópicos como se fossem iguarias de uma nouvelle cuisine.

Assim somos e assim seremos, contudo. O historiador Richard Hofstadter escreveu um livro que é hoje bastante lembrado, “The Paranoid Style in American Politics”. Identificamo-nos, não? Ter uma crença política e não enxergar uns complôs no campo inimigo, algumas conspirações e reuniões em horas mortas, ora, isso nos impõe uma racionalidade excessiva. Sejamos, Drummond, docemente hiperbólicos, não pornográficos.

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“Eles em Nós” é um livro que nos faltava: traz-nos precisão semântica e inspeção retórica dos meandros da nossa política recente.

Talvez ele até mesmo nos ajude a reconhecer quem use a palavra “Führer” ou a expressão “filhote de Chávez” como quem diz “Hoje vai chover” e, junto com essa imprecisão discursiva, se intitule imbuído de intenções empáticas; imbuído de intenções empáticas, permita-se corrigir o semelhante humano por “pensar errado”, que se traduz apenas por “pensar diferente”. Permitindo-se a si mesmo querer corrigir o semelhante, até se pode escrever um artigo como aquele de um médico na “Folha”, semanas atrás, propondo-se algo que o articulista afirmou ser “o autoritarismo necessário”. Era prenhe de fins bonitos, o artigo, então o autoritarismo para corrigir quem tem um estar e agir no mundo distinto — os hereges! — estava (está) valendo.

Sim, voltemos à primeira página do livro: é preciso rigor no trato com a linguagem, em qualquer espectro político.

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Bom, alonguei-me e desviei-me do livro, distintos ouvintes da plateia, e portanto concluo (quanto aos desvios, a minha desculpa, dada láááá no início, é que este texto não é uma resenha, mas sim uma espécie de brainstorming).

Se “Imagine”, de John Lennon, subiu no telhado, o que faz parte do jogo político pendular, foi um alento ler um livro em que não há uma deslegitimação sistemática do pensamento político que praticou o ImagineAllThePeopleCídio: Avelar refaz, com perspectiva original e sem “a prioris”, os caminhos do nosso passado recente.

Por fim, já se viu que não escreverei os tais livros que sugeri ali acima e tampouco discorrerei a fundo sobre outros poréns que “Eles em Nós” me despertou, porque hoje fiquei de rever algum James Bond. Resta-me recomendar que o livro de Idelber Avelar seja adquirido, lido, sublinhado e destrinchado, pois é uma lufada de ar benfazejo na aragem do estado da arte da ciência política brasileira atual, que precisa(va) soltar amarras e inflar velas.

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Eu já havia mesmo encerrado, mas não gosto de números ímpares, então criei mais este item para nada acrescentar. Ademã.

Marcelo Franco, pedro-navista, é crítico literário.